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OS TRABALHOS DE HERCULES

Por

AGATHA CHRISTIE

«Obras Completas de Agatha Christie» estão a agrupar, por ordem cronológica, a ficção policiária da famosa escritora. Cada volume inclui sempre dois ou mais textos.

Em Arrastado na Torrente, o mesmo detective soluciona o problema de um assassínio cujo autor não teria, aparentemente, motivo para matar, visto apenas sofrer prejuízos com a morte da vítima.
Nestas «Obras Completas», cerca de oitenta títulos serão cuidadosamente publicados, numa edição estudada tendo em atenção a divulgação de um dos maiores artistas da ficção policiária e de um verdadeiro clássico da literatura de mistério. 
obras de AGATHA
CHRISTIE
OS TRABALHOS DE HÉRCULES

edição
LIVROS DO BRASIL Lisboa 
Tradução de TOMAS RIBAS
Capa de

ANTÓNIO PEDRO


Título da edição original

THE LABOURS OF HERCULES

Copyright 1989, 1940, 1944, 1945, 1947, by Agatha Christie


Reservados todos os direitos pela legislação em vigor


VENDA INTERDITA NA República Federativa DOS ESTADOS
UNIDOS DO BRASIL
Lisboa Junho de 2001 
Digitalização e arranjo:
Fátima Chaves
Esta obra destina-se ao uso exclusivo de portadores de deficiência visual.

_sec:PREFÁCIO_
O apartamento de Hercule Poirot estava mobilado em estilo essencialmente moderno. Brilhava com os cromados. As poltronas, embora confortavelmente estofadas, eram de irrepreensíveis contornos.

Hercule Poirot sentava-se com elegância numa dessas cadeiras. Noutra, em frente, sentava-se o Dr. Burton, beberrícando deleitadamente um copo de Chateau Mouton fíothsild.

Não havia elegância nem esmero no Dr. Burton. Era gordo, enxovalhado e um capacete de cabelos brancos cobria a sua gorducha e bonacheira fisionomia.

Respirava ruidosamente, tendo o hábito de cobrir-se a si próprio e a tudo o que o rodeava com a cinza do tabaco. Em vão Poirot o rodeava de cinzeiros.

O Dr. Burton fez uma pergunta:

Diga-me: porque se chama Hercule?

Refere-se ao meu nome de baptismo? Um nome ousadamente cristão.

Definitivamente pagão replicou o outro. Porquê?

Era o que eu desejava saber.

Fantasia do pai? Capricho da mãe? Razões de família? Lembro-me muito bem, se bem que a minha memória já não seja o que foi, que tinha um irmão chamado Aquiles, não se lembra?
O pensamento de Poirot recuou, percorrendo todos os detalhes da carreira de Aquilles Poirot. Tinha tudo aquilo 
acontecido? Somente após um curto espaço de tempo, ele quebrou o silêncio,
O Dr. Burton, ajuizadamente, deixou o assunto Aquilles Poirot.

As pessoas deviam ser mais cuidadosas ao escolher o nome das crianças, penso eu.

Eu sei, tenho afilhadas. Uma delas chama-se Branca, é escura como uma cigana. Outra Dreide dos Aborrecimentos, é alegre como um bobo. Assim como a jovem Paciência, que devia ter-se chamado Impaciência. E Diana, a clássica Diana. Falam na sua gordura de cachorrinho, mas não me parece que seja assim. Quiseram chamar-lhe Helena, mas pus os pés à parede. Sabendo do que os pais e a avó gostavam. Lutei para que fosse Marta, ou Dorcas, mas sem resultado. O cura, os amigos, os parentes...

Começou a respirar suavemente e a sua pequena face gorducha contraiu-se. Poirot olhou para si próprio interrogativamente.

Pensava numa imaginária conversação. Sua mãe e a última Sr.a Holmes, sentadas a costurar vestidos ligeiros, ou fazendo tricot. Aquilles, Hercule, Sherlock, Microft... Poirot acabou por tomar parte no divertimento do amigo.

Compreendo o que você pensa. O meu aspecto físico não se assemelha nada a Hércules, não é assim?

Os olhos do Dr. Burton percorreram Poirot de alto a baixo a sua pequena e asseada figura, o ataviado das calças listradas, o correcto casaco preto, a vistosa gravata, miraram-no desde os bem acabados sapatos de calf à cabeça calva como um ovo e ao imenso bigode que lhe adornava o lábio superior.

Francamente, Poirot, eu compreendo que você nunca tivesse tido muito tempo para estudar os clássicos.

Isso é verdade.

Foi uma pena, perdeu assim bastante. Todas as pessoas deviam ter estudado os clássicos como eu o fiz.

Poirot encolheu os ombros:

Está bem, mas tenho passado perfeitamente sem eles.
Passar sem eles, passar sem eles! Não se trata de passar sem eles! Esse é o errado ponto de vista de todos nós. Os clássicos não são como uma escada de mão para 
trepar rapidamente, semelhantes a um curso por correspondência. Não são as provas de trabalho de um homem que interessam, mas as suas horas de ócio. Esse é o erro que todos cometem. Observe-se a si próprio. Você acha-se bem, deseja sair-se bem de tudo, dominar as coisas facilmente; que vai fazer, então, nas horas de ócio? Poirot foi rápido na réplica:
Vou dedicar-me, seriamente, à cultura das abóboras.

O Dr. Burton insistiu.

Abóboras? Que quer dizer com isso? Aquelas grandes e inchadas coisas verdes que sabem a água?

Ah! exclamou Poirot com entusiasmo. Esse é o ponto que me interessa. Elas não necessitam de saber a água.

Oh! Eu sei! Salpique-as com queijo, cebola picada, ou molho branco.

Não, não, você está errado. É ideia minha que o actual sabor das abóboras pode ser modificado. Pode-lhes ser -dado um aroma.

Santo Deus, homem, isso não é vinho clarete! A palavra aroma recordou ao Dr. Burton o copo que tinha no braço da cadeira. Beberricou e saboreou.

Bom vinho, este! Muito saboroso disse movendo a cabeça aprovativamente.

Mas, sobre o negócio das abóboras você não fala a sério. Você não quer dizer que vai aviltar-se, que vai esgravatar a terra com a forquilha, estrumar, alimentá-la com fios de algodão mergulhados em água, e tudo o mais.

Você disse Poirot parece estar bem familiarizado com a cultura das abóboras.

Tenho visto os jardineiros quando estou no campo... Mas, seriamente, Poirot, que mania! Compare isso que quer fazer a uma confortável cadeira, em frente a uma lareira de boa lenha, num aposento ornamentado com estantes. Livros em toda a volta. Um cálice de Porto e um livro aberto na mão.

E traduziu:

Habilmente o piloto, num mar de vinho tinto, endireitou-se.
O veleiro, no rio, corria impelido pelo vento. 
Sem dúvida não podemos alcançar o sentido do original.
Naquele momento, tomado de entusiasmo tinha-se esquecido de Poirot.

E Poirot, observando-o, sentiu repentinamente uma dúvida, um desconfortável tormento. Era aqui, ali, qualquer coisa que tinha falhado. Alguma riqueza de espírito? A tristeza apoderou-se dele.

Sim, devia ter-se familiarizado com os clássicos... Há muito tempo. Agora, infelizmente, já era tarde.

O Dr. Burton interrompeu esta melancolia:

Você quer dizer que realmente está pensando em reformar-se?

Sim!

O outro conteve o riso.

Deseja fazer isso?

Asseguro-o. Alguns casos mais, especialmente seleccionados. Qualquer coisa que apresente, justamente, problemas que tenham especial interesse.

O Dr. Burton riu sardonicamente.

está no bom caminho. Um caso ou dois, outro mais e assim por diante. O espectáculo de despedida da prima-dona é sempre assim, Poirot.

Riu-se, e levantou vagarosamente os pés, como um gnomo.

Os seus trabalhos não são os de Hércules, mas sim trabalhos de amor... Verá se eu não tenho razão. Aposto que ainda aqui estará sossegado mais uns doze meses e as abóboras estarão sossegadas também.

Despedindo-se do amigo, o Dr. Burton deixou o austero compartimento quadrangular. Deixou estas páginas para não voltar sobre elas. Interessa-nos apenas o que ele deixou atrás de si, aquilo em que Poirot viu uma ideia.

Depois de ele ter partido, Poirot sentou-se outra vez, vagarosamente, como um homem num sonho, e murmurou:

«Os trabalhos de Hércules... Sim, é uma ideia!»

No dia seguinte Poirot pôs-se a ler um grande volume encadernado em coiro, outros trabalhos ligeiros e várias folhas de papel dactilografadas.
A sua secretária, Miss Lemon, fora encarregada de 
-coligir apontamentos a respeito de Hércules, Sem interesse, mas com impecável eficiência, Miss Lemon tinha cumprido a sua tarefa.
Hercule Poirot mergulhou num confuso mar de clássica sabedoria, com particular referência a Hércules, o celebrado herói que depois da morte foi colocado entre os deuses e recebeu honras divinas.

Durante duas horas Poirot leu diligentemente, tomando notas, franzindo o sobrolho, consultando as folhas de papel ou os livros de referência. Finalmente recostou-se na cadeira, meneou a cabeça. A sua disposição da tarde anterior tinha-se dissipado. Que povo! Escolher este Hércules, este Herói! Herói, sem dúvida! Mas uma criatura de vigorosos músculos, baixa inteligência e tendências criminosas. E Poirot recordou-se do Adolph Durant, um carniceiro que fora julgado em Lião, em 1895, uma criatura de força bovina, que tinha assassinado várias crianças. A defesa tinha sido exaltada, o juízo qual dos dois: grande mal ou pequeno mal?, tinha sido um argumento discutido durante vários dias. O Antigo Hércules, provavelmente, sofreu do grande mal. Não! Poirot abanou a cabeça; se aquilo era a ideia de um herói grego, avaliada pelos modernos padrões, certamente ele não poderia vir a ser herói. O clássico modelo chocou-o. Estes deuses e deusas parecia terem analogia com os modernos criminosos. Embriaguez, deboche, incesto, rapina, dissolução, homicídio. Na verdade, aparentavam ser definitivamente tipos criminosos. O suficiente para manter um juiz de instrução constantemente ocupado. Falta de decência na vida de família, nenhuma ordem, nenhum método, nem mesmo nos crimes,

Hércules, sem dúvida disse Poirot pondo-se em pé, desiludido, foi um criminoso.
Olhou em volta aprovativamente. Um compartimento quadrado, igual a uma boa peça de escultura moderna representando um cubo colocado sobre outro cubo, e acima disto um geométrico arranjo de fios de cobre, e no centro deste brilhante e ordenado quarto ele próprio. Aqui, então, estava um Hércules moderno, muito diferente daquele desagradável esboço de uma figura de salientes músculos, brandindo uma maça. Em vez disso, uma pequena figura sólida ataviada num correcto fato 
citadino e com um bigode um bigode como Hércules nunca sonhou possuir um bigode magnífico e bem tratado.
Contudo, havia entre o Hércules clássico e Hercule Poirot um ponto de contacto. Ambos eles, sem dúvida, tinham agido como instrumentos libertando o mundo de certas pestes. Cada um deles podia ser descrito como benfeitor da sociedade em que viviam. O que o Dr. Burton disse na última noite, quando saiu: «Os seus trabalhos não são os de Hércules...» Ah, como se enganava o velho fóssil. Aqui estariam, uma vez mais, os trabalhos de Hércules de um Hércules moderno. Um engenhoso e divertido conceito. No período que precedia a sua retirada definitiva, aceitaria doze trabalhos, nem mais nem menos. E estes doze trabalhos seriam seleccionados com especial referência aos doze trabalhos do Hércules da Antiguidade. Sim, não seria apenas divertido, seria artístico, seria espiritual.

Poirot pegou no dicionário e mergulhou uma vez mais na clássica sabedoria. Não pretendia seguir o modelo com absoluta justeza. Não haveria mulheres nem túnica de Nesso... Só os Trabalhos, os Trabalhos exclusivamente. O primeiro trabalho intitular-se-ia o do Leão de Nemeia.

«O Leão de Nemeia», repetiu, ensaiando a língua.
Naturalmente não esperava que se lhe apresentasse um caso envolvendo uma flecha e um leão ensanguentado. Seria demasiada coincidência ter de aproximar-se dos directores do jardim zoológico para resolver um problema que envolvesse um leão. Não, aqui tratava-se de um mero simbolismo. O primeiro caso devia referír-se a qualquer figura pública célebre. Devia ser sensacional e de primeira importância. Algum ás do crime ou alguém que fosse um leão aos olhos do público. Algum escritor conhecido, ou político, ou pintor, ou mesmo alguma pessoa de estirpe real. Uma pessoa real? Agradava-lhe a ideia de Realeza... Não tinha pressa; podia esperar, esperar por aquele caso de importância que seria o primeiro dos doze trabalhos que se impusera. 
_sec+Rom:1_ I
 O LEÃO DE NEMEIA 
Nada de interessante esta manhã, Miss Lemon? perguntou Poirot assim que entrou na sala, na manhã seguinte.
Confiava em Miss Lemon. Era uma mulher sem imaginação mas possuía instinto. Alguma coisa que ela lhe mencionasse como trabalho de especial importância era na verdade trabalho considerável. Era uma boa secretária.

Pouca coisa, M. Poirot. Apenas uma carta que penso poderá interessá-lo.

E de que trata? Deu um passo em frente interessado.

É de um homem que deseja investigar o desaparecimento do cão pekinois da esposa.

Poirot deteve-se ainda com o pé no ar, lançando um olhar de profunda reprovação a Miss Lemon. Ela não reparou. Começou a escrever à máquina. Escrevia com a velocidade e precisão de uma metralhadora. Poirot estava chocado. Chocado e amargurado. Miss Lemon deixava-o ficar mal. Um cão pekinois! E depois do sonho que tivera na noite anterior. Tinha deixado Buckingham Palace, depois de ter recebido agradecimentos pessoais, quando o criado chegou com o chocolate da manhã. As palavras tremiam-lhe nos lábios, satíricas e mordazes. Não as proferia, porque Miss Lemon, devido à velocidade com que escrevia, não poderia ouvi-las.
Com um gesto de aborrecimento tirou a carta do cimo 
do montão. Sim, é exactamente o que Miss Lemon disse: uma direcção na cidade, um pequeno negócio semelhante a uma grosseira reclamação. O assunto o furto de um pekinois uma destas frioleiras que preenchem os ócios de uma mulher rica.
O lábio de Poirot encrespou-se apenas leu. Nada de excepcional neste caso, nada fora do vulgar.

Mas sim, sim, um pequeno detalhe. Miss Lemon tinha razão. Num pequeno pormenor havia qualquer coisa de invulgar.

Hercule Poirot sentou-se, leu a carta vagarosa e cuidadosamente. Não era o caso que ele desejava, que tinha prometido a si próprio. Não se tratava de um importante caso sensacional, era supremamente banal. Não era propriamente um trabalho de Hércules.

Mas infelizmente ele era curioso, sim, bastante curioso.

Levantou a voz mais alto que o ruído da máquina para ser ouvido por Miss Lemon.

Telefone a Sir Joseph Hoggin ordenou. Escreva um apontamento para eu não me esquecer de ir vê-lo ao escritório, como ele pede.

Como de costume, Miss Lemon estava no bom caminho.

Sou um homem vulgar, M. Poirot disse Joseph Hoggin. Poirot fez um sinal de protesto com a mão direita. Exprimia se assim o quiserdes admiração pela cuidadosa modéstia com que Sir Joseph se referia a si próprio, ao seu sólido mérito. Podia também exprimir uma graciosa indecisão. Em qualquer dos casos não dava a menor indicação do pensamento que dominava o espírito de Hercule Poirot.

Poirot, no íntimo, pensava que Sir Joseph era um homem banal, na verdade, bastante vulgar.

Os olhos de Poirot fixaram-se pouco lisonjeiramente nas faces entumecidas, nos olhinhos de porco, no nariz achatado, nos espessos lábios de Sir Joseph.
O aspecto geral recordava-lhe alguém ou qualquer coisa, mas de momento não podia precisar o que era. Fez esforços de memória. Havia muito tempo, na Bélgica, 
alguma coisa, relacionada com sabão... Sir Joseph continuou:
Não trema por minha causa, eu não bati a mata. Muitas pessoas, M. Poirot, deixariam escapar este caso. Mas isso não é para Joseph Hoggin. Sou rico e gastar duzentas libras não é nada para mim.

Poirot interpôs suavemente.

As minhas felicitações.

Sir Joseph calou-se por minutos. Os seus olhos pequenos ficaram ainda mais pequenos. Disse asperamente:

Isto não significa que tenha o hábito de esbanjar o meu dinheiro. Desejo pagar, mas pagar o preço estabelecido, mas não mais.

Hercule Poirot perguntou:

O senhor imagina que os meus honorários são elevados?

Sim, sim, mas isto é um caso de pouca importância.

Hercule Poirot encolheu os ombros.

Não sou um negociante. Sou um perito e pelo trabalho de perito o senhor tem de pagar o que tal trabalho merece.

Sir Joseph respondeu naturalmente:

Eu sei que o senhor é um homem experimentado em assuntos desta natureza. Pedi informações e disseram-me que o senhor era a pessoa mais competente para tratar do caso. Penso chegar ao fim. Não choro o meu dinheiro. Por isso lhe pedi para vir aqui.
O senhor é um homem afortunado, excessivamente afortunado disse Poirot com firmeza. Estou, posso dizê-lo sem falsa modéstia, no cume da minha carreira. Penso aposentar-me brevemente, viver no campo, viajar de vez em quando para ver o mundo e, também, cultivar o meu jardim, experimentar com particular atenção o desenvolvimento das abóboras. São magníficos vegetais, contudo falta-lhes o sabor. Mas não se trata agora das abóboras. Desejava apenas explicar-lhe que antes de me reformar me impus a mim próprio uma tarefa. Decidi aceitar doze casos, nem mais nem menos. Impor a mim próprio os Doze Trabalhos de Hércules, se assim 
posso chamar-lhes. O seu caso. Sir Joseph, é o primeiro dos Doze Trabalhos de Hércules. Fui atraído suspirou pela sua chocante falta de importância.
Importância? perguntou Sir Joseph.

Falta de importância, foi o que eu disse. Tenho sido chamado para variadíssimos casos: investigar assassínios, mortes misteriosas, roubos, assaltos a joalharias. Foi esta a primeira vez que recorreram ao meu talento para investigar o desaparecimento de um cão pekinois..

Sir Joseph soltou um suspiro dizendo:

O senhor surpreende-me. Poderá assegurar-me que nunca foi maçado por nenhuma mulher por causa do desaparecimento de um dos seus cães de estimação?

Certamente que sim, mas é a primeira vez que sou chamado pelo marido para investigar um caso desta natureza.

Os olhinhos de Sir Joseph fecharam-se ainda mais:

Começo a perceber porque me foi recomendado. O senhor é um sujeito astuto.

Poirot murmurou:

Se o senhor dissesse agora os pormenores do caso? Quando desapareceu o cão?

Há exactamente uma semana.

E a sua esposa está, então, muito nervosa, presumo?

Sir Joseph fixou a vista dizendo:

O senhor ainda não sabe: o cão voltou.

Voltou? Então, permita-me perguntar o que tenho eu a fazer neste caso.

Sir Joseph corou:

Eu estava condenado se o cão tivesse sido roubado. Vou dizer-lhe tudo.

«O cão foi roubado nos jardins de Kensington enquanto passeava com a dama de companhia da minha mulher. No dia seguinte a minha mulher recebeu o pedido de duzentas libras. Eu pergunto: duzentas libras por um brutinho que anda sempre a arranhar tudo com as patas?»

O senhor não aprovou o pagamento de -tal soma, naturalmente?
Sem dúvida. Não teria sido paga se eu tivesse sabido alguma coisa. Milly, minha mulher, achou que estava bem. Nada me disse. Enviou o dinheiro como 
estava estipulado, em notas de uma libra, para a direcção indicada.
E o cão foi restituído.

Sim. Nessa mesma tarde a campainha tocou e o animalejo apareceu sentado à soleira da porta. Não se viu ninguém.

Perfeitamente. Continue...

Então, Milly confessou o que tinha feito e eu perdi um pouco as estribeiras. Acalmei pouco depois. Afinal o mal estava feito e o senhor não pode esperar que uma mulher pense com senso... e, confesso, teria deixado as coisas como estavam se não tivesse sido convocado para encontrar-me com o velho Samuelson no meu clube.

Sim?

Um caso danado. Esta coisa devia ser uma autêntica chantagem. Tinha-lhe sucedido exactamente o mesmo. Trezentas libras lhe roubaram, à esposa. Era um pouco mais. Decidi que o assunto devia parar. Fui então procurá-lo.

Perfeitamente, Sir Joseph, mas não acha que um caso desses devia antes ser mandado para a polícia?

Sir Joseph coçou o nariz e disse:

O senhor é casado, M. Poirot?

Não, não tenho essa felicidade respondeu Poirot.

Eu sou casado, mas não sei nada a respeito da felicidade. Se o senhor fosse casado, saberia que as mulheres são criaturas engraçadas. Minha mulher teve um ataque de histeria quando lhe falei na polícia e meteu-se-lhe na cabeça que alguma coisa poderia acontecer ao precioso bicho se eu me dirigisse à polícia. Nem quis ouvir falar em tal. Nem teve a ideia genial de o chamar, a si. Mas eu pus os pés à parede e ela por fim consentiu. Mas lembre-se de que ela não gostou.

Hercule Poirot murmurou:

Compreendo que é uma posição muito delicada. Não seria mau que eu fosse entrevistar a senhora sua esposa. Conseguiria que ela me dissesse mais pormenores e ao mesmo tempo garantir-lhe a futura segurança do precioso cão?

Sir Joseph inclinou a cabeça e levantou-se dizendo:
Posso levá-lo no meu carro. 
Numa espaçosa, aquecida e bem mobilada sala estavam sentadas duas senhoras.
Assim que Sir Joseph e Hercule Poirot entraram, um pequeno pekinois arremessou-se ladrando furiosamente e descrevendo perigosos círculos em volta dos tornozelos de M. Poirot.

Shan Tung vem cá, vem à tua mãe, amor. Levante-se e pegue-lhe, Miss Canaby.

A segunda mulher precipitou-se para a frente e Poirot murmurou:

Sem dúvida, é um verdadeiro leão. Algum tanto desconsolada a captora de Shan Tung concordou:

Sim, sem dúvida é como um bom cão de guarda. Não se assusta com ninguém nem com coisa alguma. É, pois, um bom rapaz.

Feitas as apresentações. Sir Joseph retirou-se dizendo:

Bem, M. Poirot, deixo-o a tratar do caso e com uma ligeira vénia abandonou a sala.

Lady Hoggin era uma mulher de formas avantajadas, arrogante aparência e cabelos avermelhados. A dama de companhia, a saltitante Miss Canaby, era uma pessoa amável, que devia andar entre os quarenta e os cinquenta anos. Tratava Lady Hoggin com grande deferência e tinha-lhe muito medo.

Poirot começou:

Agora, Lady Hoggin, conte-me todas as circunstâncias deste abominável crime.

Lady Hoggin corou:

Sinto-me muito satisfeita por ouvi-lo falar assim, M. Poirot. Porque foi um crime. Os pekinois são muito sensíveis, tão sensíveis como as crianças. O pobre Shan Tung podia ter morrido de medo.

Miss Canaby concordou, com a respiração entrecortada:

Sim, foi terrível, terrível!

Por favor, conte-me os factos.
Bem, foi assim: o Shan Tung saiu com Miss Canaby para o seu passeio habitual no parque... 
Valha-me Deus, a culpa foi minha interrompeu Miss Canaby. Como pude eu ter sido tão estúpida, e descuidada!
A Sr.a Hoggin respondeu asperamente:

Não quero censurá-la, mas parece-me que podia ter sido mais atenta.

Poirot pôs-se a olhar para a dama de companhia de Lady Hoggin:

Que aconteceu?

Miss Canaby começou a falar com volubilidade e ligeiramente agitada.

Bem, foi a coisa mais extraordinária! Tínhamos estado no passeio das flores: Shan Tung, preso à trela, já tinha dado as suas habituais corridinhas na relva e íamos mesmo a voltar para casa, quando a minha atenção foi distraída por um bebé. Um bebé tão bonito! Ria-se para mim, com as bochechas rosadas. Tinha uns caracóis tão lindos! Não pude resistir ao desejo de falar com a nurse e perguntar que idade ele tinha. Dezassete meses, disse a nurse. Tenho a certeza de que só estive a falar cerca de um minuto ou dois. De repente olhei para baixo e não vi o Shan Tung. A trela acabava de ser cortada, tinha sido cortada.

Lady Hoggin interveiu:

Se estivesse com atenção aos seus deveres ninguém teria aparecido furtivamente, ninguém teria cortado a trela do Shan Tung.

Miss Canaby quase ia rompendo em lágrimas. Poirot perguntou apressadamente:

Que aconteceu, depois?

Bem, claro que procurei por toda a parte. E chamei! E perguntei ao guarda do parque se tinha visto alguém com um pekinois, mas o homem não tinha visto nada no género. Eu não sabia que fazer, e depois de baldadas tentativas para encontrar Shan Tung, é claro, tive que regressar a casa.

Miss Canaby parou, cansada. Poirot vislumbrou a cena que se seguiu e interrogou de novo:

E depois recebeu uma carta, não é verdade? A Sr.a Hoggin tomou a palavra:
Pelo primeiro correio da manhã seguinte. Dizia que se quisesse tornar a ver o Shan Tung teria que mandar 
duzentas libras em notas de uma libra, num sobrescrito sem ser registado, dirigido ao capitão Curtis, 38 Bloomsbury Road Square. Dizia que se o dinheiro fosse marcado, ou a polícia informada, Shan Tung voltaria com a cauda e as orelhas cortadas.
Miss Canaby começou a fungar.

Horrívelmurmurou.Como há gente que possa ser tão diabólica!

A Sr.a Hoggin continuou:

Dizia que se eu mandasse o dinheiro imediatamente, Shan Tung regressaria a casa são e salvo, mas que, se depois fosse à polícia, seria o Shan Tung a sofrer.

Miss Canaby, murmurou chorosa:

Oh! meu Deus! Tenho tanto medo que mesmo agora... É claro, M. Poirot não é exactamente a polícia.

Lady Hoggin disse ansiosamente:

Como vê, M. Poirot, o senhor tem de ser muito cuidadoso.

Poirot foi pressuroso em acalmá-la.

Pode estar descansada, eu não sou da polícia. Os meus inquéritos são conduzidos muito discretamente. Pode estar certa, Lady Hoggin, que Shan Tung ficará perfeitamente a salvo. Posso garantir.

As duas senhoras pareceram aliviadas pela palavra mágica de Poirot.

Tem aqui a carta?

A senhora abanou a cabeça.

Não, ela dizia que a mandasse juntamente com o dinheiro.

E a senhora fez isso?

Fiz!

Mas eu tenho ainda a correia do cão. Vou buscá-la?

Sim.

Miss Canaby deixou a sala e Poirot aproveitou a sua ausência para fazer algumas perguntas a propósito.

Miss Canaby é boa pessoa?
É uma boa alma, embora um pouco apatetada. Tenho tido várias damas de companhia e todas têm sido completamente patetas. Mas Amy é muito devotada ao Shan Tung e ficou aborrecidíssima com tudo isto, como, aliás, era o seu dever, visto que se distraiu a conversar com desconhecidas e negligenciou o meu queridinho! 
Estas damas velhas são todas malucas com bebés. Estou certa de que ela não tem nada a ver com o caso. Não parece assim, mas como o cão desapareceu quando estava a seu cargo tem-se quase a certeza da sua sinceridade.
Há quanto tempo está ela ao seu serviço?

Quase há um ano. Tive excelentes referências a seu respeito. Esteve com a velha Sr.a Hartingfield até que ela morreu, há uns dez anos. Depois disso tomou conta de uma irmã doente. É uma excelente criatura, mas completamente parva, como disse.

Amy Canaby voltou neste momento quase sem respiração. Mostrou a correia do cão cortada, que entregou a Poirot com toda a solenidade olhando para ela na expectativa.

Poirot examinou-a cuidadosamente.

Mais oui disse ele, isto foi indubitavelmente cortado.

As duas mulheres continuaram na expectativa.

Guardo isto, disse Poirot e solenemente pôs a correia no bolso.

As duas mulheres suspiraram de alívio: Poirot tinha feito o que esperavam dele.

Era hábito de Poirot nunca deixar nenhum facto por comprovar. Embora não parecesse provável que Miss Canaby fosse mais do que a mulher apatetada que aparentava ser, Poirot arranjou maneira de entrevistar uma sobrinha da última Lady Hartingfield.

Amy Canaby disse Miss Maltravers. Pois claro, lembro-me perfeitamente dela. Era uma boa alma, e serviu muito bem a tia Julia. Devotada a cães, excelente para ler em voz alta, com imenso tacto também. Nunca contrariava um doente. Parou, e depois prosseguiu:

Que lhe aconteceu? Espero que não tenha havido nenhum aborrecimento. É que há um ano dei referências a seu respeito a uma senhora cujo nome começava por H.
Poirot explicou apressadamente que Miss Canaby ainda se conservava no seu posto. 
Houve um pequeno aborrecimento a respeito de um cão perdido.
Amy Canaby é muito dedicada a cães. A minha tia tinha um pekinois que deixou a Miss Canaby quando morreu. Miss Canaby gostava imenso do animal. Acredito que ela tivesse tido grande desgosto quando ela morreu. Sim, ela era uma boa alma, sem dúvida. Se bem que não fosse uma intelectual...

Poirot concordou.

O seu primeiro trabalho foi descobrir o guarda do jardim com quem Miss Canaby falou na fatídica tarde, o que conseguiu sem grande dificuldade. O homem recordava-se do incidente em questão:

Uma senhora de meia-idade, um pouco forte, que perdeu um cão, um pekinois. Conheço-a muito bem, de vista. Traz o cão aqui todas as tardes. Vi-a chegar com ele. Contra o costume, a senhora estava conversando quando o perdeu. Dirigiu-se logo a mim, para saber se eu tinha visto alguém com um pekinois. O jardim está cheio de cães de diversas raças: Pekes Germans, Borzois Terriers, temos aqui de todas as espécies. Não notei, não fixei um pekinois mais de que qualquer outro.

Hercule Poirot abanou a cabeça pensativamente.

Dirigiu-se ao número 38 de Bloomsbury Square.

Os números 38, 39 e 40 estavam incorporados no Balaclava Private Hotel. Poirot subiu a escada e empurrou a porta: foi saudado pela obscuridade e um cheiro de alface cozida, como reminiscência de um magro primeiro almoço. À esquerda, uma mesa de mogno com um vaso de crisântemos murchos. Por cima da mesa, uma espécie de bandeja coberta com uma flanela, dentro da qual se guardavam as cartas. Poirot estacou à porta, pensativamente, durante alguns minutos. Dirigiu-se a um compartimento onde havia pequenas mesas e algumas cadeiras com pretensões a confortáveis, forradas de cretone usado.

Três senhoras idosas e um velho mal-encarado levantaram a cabeça e fixaram o intruso com implacável desconfiança.
Poirot corou e afastou-se. Caminhou ao longo do aposento e chegou a uma escadaria. À direita abria-se um aposento que era evidentemente a sala de jantar. 
Um pouco mais longe uma porta onde estava escrito «ESCRITÓRIO». Poirot bateu. Não recebeu resposta, abriu a porta e olhou para dentro.
Havia na sala uma grande secretária coberta de papéis mas não se via ninguém. Retirou-se, fechando a porta de novo. Entrou na sala de jantar.

Uma rapariga de aspecto triste, com um avental sujo, arrastava-se com um cesto de talheres que ia colocando na mesa.

Hercule Poirot disse, energicamente:

Desculpe, posso ver a gerente da casa?

A rapariga olhou para ele com uns olhos sem brilho.

Não sei, não tenho a certeza.

Não está ninguém no escritório? perguntou Poirot.

A rapariga suspirou: aborrecidos, como ela, os dias corriam e agora ainda mais esta maçada.

Bem, vou ver o que posso fazer.

Poirot agradeceu e deslocou-se uma vez mais para a sala de entrada, para não enfrentar os olhares agressivos dos ocupantes da sala de visitas. Estacionava junto da bandeja dos papéis quando um aroma de violetas de Devonshire anunciou a chegada da gerente.

Mrs. Harte era bastante graciosa. Ao ver Poirot dirigiu-se-lhe exclamando:

Desculpe-me, não estava no escritório. Deseja algum quarto?

Não é precisamente isso o que procuro. Desejava saber se um amigo meu aqui tinha estado ultimamente. O capitão Curtis.

Curtis exclamou a gerente, capitão Curtis, esse nome não me é estranho...

Poirot não a ajudou a avivar a memória. Mrs. Harte abanou a cabeça desolada.

Não teve então nenhum capitão Curtis aqui hospedado?

Ultimamente não, por certo, mas o nome é-me, certamente, familiar. Pode descrever-me como é o seu amigo?
Será difícil disse Poirot. Penso que algumas vezes sucede serem as cartas dirigidas a pessoas que nunca aqui estiveram! 
Isso acontece, sem dúvida.
E o que fazem a essas cartas?

Bem, guardam-se durante algum tempo. Talvez signifique que a pessoa em questão chega brevemente. Sem dúvida, se as cartas se conservam sem ser reclamadas devolvem-se para o correio.

Poirot abanou a cabeça pensativamente, dizendo:

Compreendo, foi assim. Escrevi uma carta para aqui, para o meu amigo.

A face de Mrs. Harte iluminou-se:

Devia ter visto o nome no sobrescrito. Mas realmente temos aqui hospedados tantos militares afastados do serviço ou que passaram por aqui! Deixe-me ir ver.

Espreitou para a mesa.

Aqui não há nada. Devia ter voltado para o carteiro, suponho. Tenho muita pena, desculpe. Nada de importância? Espero que assim seja.

Assim que Poirot se dirigiu para a porta, Mrs. Harte perseguiu-o com o seu aroma de violetas.

E se o seu amigo chegar?

Não deve ser provável, devo estar errado.

As nossas diárias são moderadas, disse Mrs. Harte. O café a seguir ao jantar está incluído na diária. Gostava de mostrar-lhe um ou dois dos nossos quartos.

Dificilmente Poirot conseguiu escapar-se.

A sala de estar de Mrs. Samuelson era mais espaçosa, mais luxuosa e confortavelmente mobilada que a de Lady Hoggin.

Poirot abriu caminho por entre consolas doiradas e grande profusão de estatuetas.

Mrs. Samuelson era mais alta do que Lady Hoggin e de cabelo oxigenado. O seu pekinois chamava-se Nanki Poo. Os seus olhos redondos fixavam Poirot com arrogância. Miss Keble, dama de companhia de Mrs. Samuelson, era magra e, também, respirava com dificuldade. Ela também tinha ficado alarmada com o desaparecimento de Nanki Poo.
Realmente, M. Poirot, foi a coisa mais espantosa. 
Tudo sucedeu num segundo, à saída do Harrows. Uma nurse perguntou-me as horas... Poirot interrompeu:
Uma nurse, uma enfermeira?

Não, não. Uma nurse de crianças. Uma criança amorosa que dava gosto olhar. Sorridente, de adoráveis faces rosadas. Dizem que as crianças de Londres não parecem saudáveis, mas não sou da mesma opinião.

Ellen! disse Mrs. Samuelson.

Miss Keble corou, gaguejou e reduziu-se ao silêncio. Então, a Sr.a Samuelson disse com aspereza:

Enquanto Miss Keble se entretinha com um transeunte qualquer com o qual nada tinha que falar, um audacioso patife cortou a trela de Nanki Poo.

Miss Keble murmurou, por entre lágrimas:

Tudo sucedeu num segundo. Olhei em volta e o queridinho tinha desaparecido deixando a correia pendente da minha mão. Talvez gostasse de ver a correia, M. Poirot.

De modo algum disse Poirot asperamente. Não desejo coleccionar trelas de cães, cortadas. Eu sei, o cão desapareceu e a senhora depois recebeu uma carta?

Era a mesma história. Uma carta a ameaça de violência, de cortar as orelhas e a cauda do cão se o dinheiro não fosse enviado. Apenas duas coisas diferentes. A importância pedida trezentas libras e a direcção para onde devia ser enviado o dinheiro. Desta vez era para Commander Blackleigh, Harrigton Hotel, 76, Coronel Gardens, Kensington.

Mrs. Samuelson prosseguiu:

Logo que Nanki Poo regressou são e salvo fui eu própria à direcção indicada, porque trezentas libras, sempre são trezentas libras!

Certamente.

A primeira coisa que vi foi a minha carta, numa espécie de bandeja. Enquanto esperava pelos proprietários escondi-a na mala. Infelizmente...

Poirot disse:
Infelizmente, quando a abriu continha apenas folhas de papel em branco. 
Como o soube? Mrs. Samuelson virou-se para ele com respeito.
Poirot encolheu os ombros.

É natural, chère madame, o ladrão teria o cuidado de recolher o dinheiro antes de restituir o cão. Substituiu, então, as notas por papel branco e tornou a pôr a carta na bandeja antes que o seu desaparecimento fosse notado. Nenhum comandante Black tinha ali estado alguma vez.

Poirot sorriu.

Sem dúvida, o meu marido ficou aborrecidíssimo com tudo isto.

Poirot perguntou cautelosamente:

Porque não o consultou antes de mandar o dinheiro?

Poirot fez a pergunta e a senhora explicou:

Não me teria arriscado. Os homens são tão esquisitos quando se trata de dinheiro... Jack teria insistido para que se fosse à polícia. Não podia correr o risco. Tudo poderia acontecer ao meu querido Nanki Poo. E claro, tive que contar ao meu marido, tive que explicar por que razão fui levantar dinheiro ao banco.

Pois claro, pois claro murmurou Poirot.

Os homens disse Mrs. Samuelson brincando com a pulseira de diamantes e dando voltas aos anéis nos dedos. Os homens só pensam no dinheiro.

Poirot subiu no elevador e dirigiu-se ao escritório de Sir Joseph Hoggin. Mandou entregar um cartão mas disseram-lhe que Sir Joseph estava ocupado. Uma loira de aspecto altivo saiu do aposento com as mãos cheias de papéis. Deitou um olhar desdenhoso ao homenzinho.

Sir Joseph estava sentado por detrás de uma enorme secretária de mogno. Via-se uma mancha de baton no seu queixo.

Então, M. Poirot, tem algumas novidades para me dar?

Poirot respondeu:
O caso é de uma simplicidade encantadora. Ambas 
as vezes o dinheiro foi enviado para uma dessas pensões ou hotéis particulares onde não há porteiro e onde um grande número de hóspedes entra e sai, incluindo uma larga frequência de militares retirados do serviço. Nada seria mais fácil que entrar qualquer pessoa e tirar uma carta da bandeja. Depois seguir o seu caminho, ou então tirar o dinheiro e voltar a deixar a carta com as folhas de papel em branco. Todavia, em qualquer dos casos a pista termina sempre numa muralha branca.
Você quer dizer que não tem nenhuma ideia de quem seja o camarada?

Eu tenho algumas ideias, sim. Disporei de alguns dias para segui-las de perto.

Sir Joseph olhou para ele cheio de curiosidade:

Bom trabalho. Então quando tiver alguma coisa para relatar...

Relatá-la-ei em sua casa. Sir Joseph disse:

Se conseguir chegar ao fim deste caso terá realizado um trabalho interessante.

Hercule Poirot disse:

Não é questão de fracasso. Hercule Poirot nunca falha.

Sir Joseph olhou para o homenzinho e fez um trejeito.

Tem muita confiança em si próprio, não tem? perguntou ele.

Com toda a razão.

Oh, muito bem. Sir Joseph recostou-se na cadeira. O orgulho caminha à frente da queda, você sabe!

Hercule Poirot, sentado em frente do radiador eléctrico (e sentindo uma tranquila satisfação nas suas elegantes e correctas linhas) dava instruções ao criado e encarregado de todos os problemas.

Você compreende, George?

Perfeitamente, senhor.
De preferência um apartamento ou uma casa pequena. E isto pode ser dentro de certos limites. Sul 
do Parque, a oriente da igreja de Kensington, ocidente de Knitsbridge Barracks e norte de Fulham Road.
Entendo perfeitamente, senhor.

Um caso banal mas curioso. É evidente que há aqui um verdadeiro talento de organização. E isto é, sem dúvida, a surpreendente invisibilidade do principal actor o Leão de Nemeia. Sim, um casozinho interessante. Desejava sentir-me mais atraído pelo meu cliente, mas ele tem uma extraordinária semelhança com o fabricante de sabão de Liège que envenenou a mulher para casar com uma secretária loira. Um dos meus primeiros sucessos.

George abanou a cabeça e disse gravemente:

Estas loiras, senhor, são responsáveis por muitos aborrecimentos.

Tinham passado três dias quando o prestabilíssimo George disse:

É esta a direcção, senhor.

Hercule Poirot tirou-lhe o papel da mão e exclamou:

Excelente, meu bom George. E em que dia da semana?

quinta-feira, senhor.

quinta-feira. E hoje, afortunadamente, é quinta-feira. Portanto, não há necessidade de adiar.

Vinte minutos depois Poirot subia as escadas de um retirado bloco de apartamentos, aconchegado numa pequena rua, situada em frente de outra mais moderna. O n.° 10 de Rosholm Mansions ficava num terceiro andar, ao topo da escada e não tinha elevador. Poirot cansou-se a subir os inúmeros degraus de uma estreita escada em caracol. Deteve-se para retomar o fôlego, no patamar, e, vindo detrás da porta do n.° 10, um novo som quebrou o silêncio. Era o áspero ladrar de um cão.

Poirot abanou a cabeça, teve um radioso sorriso, e premiu o botão da campainha do n.° 10.

O ladrar redobrou, e uns passos aproximaram-se da porta, que foi aberta...
Miss Amy Canaby recuou apertando com a mão o seio. 
Permite-me que entre? perguntou Hercule Poirot, e foi entrando sem esperar pela resposta. Havia uma sala de visitas à direita e ele encaminhou-se para lá. Atrás dele, Miss Canaby seguia como se fosse num sonho.
O quarto era muito pequeno e atravancado. Por entre o mobiliário podia divisar-se uma pessoa, uma mulher mais velha, estendida num sofá perto do fogão de gás. Apenas Poirot chegou o cão pekinois saltou do sofá soltando alguns ásperos e suspeitos ladridos.

Ah!disse Poirot. Eis o principal actor. Os meus cumprimentos, meu amiguinho. Curvou-se para a frente estendendo a mão. O cão fungou e o seu olhar inteligente fixou-se na face do homem.

Miss Canaby murmurou timidamente:

O senhor sabe tudo? Hercule Poirot abanou a cabeça.

Sim, eu sei!Olhou para a mulher que estava deitada no sofá. É sua irmã, penso eu.

Miss Canaby respondeu maquinalmente:

Sim! Emily, apresento-te M. Poirot. Emily Canaby suspirou.

Augustus chamou Amy Canaby.

O pekinois olhou para ela, agitou a cauda e, então, recomeçou a sua investigação em volta de Poirot De novo agitou timidamente a cauda.

Gentilmente, Poirot pegou no cãozito. E sentou-se com Augustus no joelho, dizendo:

Assim capturei o Leão de Nemeia. A minha tarefa está acabada.

Amy Canaby perguntou num tom de voz duro

Na verdade, sabe tudo? Poirot abanou a cabeça:
Suponho que sim. Você organizou o caso tendo Augustus como auxiliar. Levou o cão que lhe estava confiado, para o passeio habitual, trouxe-o para sua casa e foi para o parque com Augustus. O guarda do parque viu-a com um pekinois como de costume. A nurse, se nós a encontrássemos, teria também dito que estava com um pekinois, enquanto falava com ela. Então, enquanto estavam conversando, você soltou a correia a Augustus, e este, ensinado por si, escapou-se e regressou, que nem 
uma seta, para casa. Poucos minutos depois você dava o alarme dizendo que o cão tinha sido roubado.
Fez-se um silêncio. Então, Miss Canaby avançou com certa dignidade e disse:

Sim, tudo isso é verdade. Não tenho mais nada a dizer.

A inválida, no sofá, começou a chorar em silêncio. Poirot perguntou:

Absolutamente nada, mademoiselle? Miss Canaby respondeu:

Nada! Sou uma ladra, e agora fui descoberta! Poirot murmurou:

A senhora não tem mais nada a dizer em sua própria defesa?

As faces brancas de Amy cobriram-se de rubor:

Não lastimo o que fiz. Julgo que o senhor é boa pessoa e que possivelmente compreenderá. Sabe, eu tenho tido tanto medo...

Medo?

Sim! É difícil, para um homem, compreender. Mas, como vê, eu não sou uma mulher esperta e não tenho experiência nenhuma. Estou a ficar velha e tenho tanto medo do futuro. Não tenho tido possibilidades de poupar nada. Como podia eu poupar qualquer coisa tendo a Emily a meu cargo? E como envelheço cada vez mais e cada vez me torno mais incompetente, não haverá ninguém que me queira. Só aceitam gente nova e desembaraçada. Conheço muitas pessoas nas minhas condições e ninguém as quere. Vivem num quarto sem aquecimento, sem conforto. Muitas vezes sem terem que comer, e por fim nem sequer têm para pagar a renda do quarto... Existem instituições, sem dúvida, mas é difícil entrar para lá, a não ser por intermédio de amigos influentes, e eu não os tenho.

Parou por momentos e depois prosseguiu:

Há um grande número de outras mulheres como eu: pobres damas de companhia, sem experiência, sem préstimo, sem nenhum futuro a não ser um medo pavoroso...

A sua voz tremia. Continuou, abatida:
E por isso algumas de nós juntaram-se e eu imaginei isto. Verdadeiramente foi a posse do Augustus que 
me inspirou esta ideia. Como sabe, para a maior parte das pessoas os pekinois são todos parecidos. (Como nós pensamos que os chineses o são.) Na verdade é ridículo. Ninguém que o conheça pode confundir Augustus com Nanki Poo ou Shan Tung ou qualquer outro pekinois. Ele é de longe mais inteligente do que qualquer outro e mais bonito, mas para a maior parte das pessoas um pekinois é sempre um pekinois. Augustus pôs-me esta ideia na cabeça. Isto combinado com o facto de que muitas mulheres ricas têm pekinois...
Com um sorriso desmaiado Poirot respondeu:

Deve ter sido um aproveitável truque! Quantas estão na quadrilha? Ou talvez seja melhor perguntar-lhe quantas operações se realizaram com sucesso?

Miss Canaby disse simplesmente:

Shan Tung foi a décima sexta. Poirot levantou as sobrancelhas:

Os meus parabéns. A vossa organização deve ter sido, sem dúvida, excelente!

Emily Canaby disse:

Amy foi sempre uma boa organizadora. Nosso pai, vigário em Kellington, no Essex, dizia que a Amy era um génio, para organizar. Ela arranjava sempre tudo para as festas de caridade, para os bazares, etc.

Poirot disse, com uma pequena inclinação de cabeça:

Concordo. Como criminosas, mademoiselle, estão ambas muito bem no primeiro plano.

Amy Canaby chorou:

Uma criminosa! Meu Deus! Suponho que o sou. Mas nunca senti que o era. É claro que tem razão. Foi violar a lei. Mas como posso eu explicar? Geralmente todas estas mulheres que nos empregam são muito desagradáveis. Lady Hoggin, por exemplo, o senhor nem pode supor. Há dias disse-me que o seu tónico sabia mal e praticamente acusou-me de lhe ter mexido. É realmente muito desagradável. Como não sou capaz de lhe dizer qualquer coisa ou de responder-lhe mal ainda faz pior. O senhor sabe o que eu quero dizer!

Compreendo muito bem o que a senhora quer dizer disse Poirot.
E então vendo esbanjar assim o dinheiro... Aquilo é mesmo deitá-lo à rua. E Sir Joseph costuma contar, às 
vezes, algum golpe que fez, na City. Algumas vezes qualquer coisa que me parece (é claro, eu sei que apenas tenho cérebro de mulher e não entendo de finanças) francamente desonesta. Bem, o senhor sabe, M. Poirot. Tudo isto, tudo isto me influenciou. Pensei que tomar para mim algum dinheiro desta gente a quem ele não faz falta, e que, na realidade, foi tão pouco escrupulosa na maneira de o adquirir... Tive a ousadia de pensar que não seria um crime. Poirot murmurou:
Um moderno Robin Wood. Diga, Miss Canaby, alguma vez cumpriu as ameaças que fazia nas suas cartas?

Ameaças?

Alguma vez mutilou os animais da forma que dizia?

Miss Canaby olhou-o horrorizada:

Nunca! Eu nunca sonhei fazer semelhante coisa. Aquilo era apenas, apenas um artístico truque.

Muito artístico! Deu resultado!

Já sabia que daria. Sabia o que sentiria se se tratasse de Augustus, e é claro que tinha de ter a certeza de que estas mulheres nada contariam aos maridos senão depois. O plano deu sempre óptimo resultado. Em nove casos de dez, elas davam o dinheiro às damas de companhia dentro de um sobrescrito para pôr no correio. Geralmente abríamos os sobrescritos ao vapor de água, tirávamos as notas e substituíamo-las por papel. Uma ou duas vezes uma das senhoras deitava a carta no correio. Nessa ocasião, a dama de companhia teria que ir ao hotel e tirar a carta. Mas isso era também muito simples.

E a parte da nurse? Havia sempre uma nurse?

Bem, como sabe, M. Poirot, as senhoras de idade são conhecidas por serem doidas por bebés. Por conseguinte pareceria natural que se distraíssem com o bebé e não notassem nada mais.

Poirot suspirou e disse:
A sua psicologia é excelente, a sua organização de primeira classe e a senhora é também uma finíssima actriz. O seu aprumo, no outro dia, quando entrevistei Mrs. Hoggin, foi irrepreensível. Nunca pensei que tivesse que suspeitar de si. Pode ser que a senhora seja uma 
mulher indisciplinada ou de mau feitio, mas não no que diz respeito ao seu espírito ou à sua coragem.
Miss Canaby, com um fraco sorriso, acrescentou:

E assim me têm considerado, M. Poirot.

Apenas eu. O que era inevitável. Quando entrevistei Mrs. Samuelson concluí que o furto de Shantung era um da série. Eu já sabia que lhe tinha sido deixado um pekinois e que tinha uma irmã inválida. Apenas pedi ao meu precioso criado para vigiar um pequeno apartamento, numa determinada área, ocupado por uma senhora inválida que tinha um pekinois e uma irmã que a visitava uma vez por semana no dia de saída. Era simples.

Miss Canaby disse:

O senhor é muito amável. Atrevo-me a pedir-lhe um favor. Eu sei que não posso escapar da condenação pelo que fiz. Serei enviada para a prisão, suponho eu. Mas se puder, M. Poirot, evite a publicidade. Seria uma mortificação para Emily e para os velhos amigos. Não posso ir para a prisão com um falso nome? Ou é errado pensar assim?

Penso poder fazer mais do que isso. Mas antes disso devo dizer-lhe uma coisa que tem de atender: esta história parou. Não devem desaparecer mais cães. Tudo isto acabou.

Sim! Oh, claro que sim!

E o dinheiro que extorquiu a Lady Hoggin deve ser restituído.

Amy Canaby atravessou a sala, abriu a gaveta da secretária e voltou com um maço de notas, que passou para as mãos de Poirot.

Vou devolver isto ainda hoje!

Poirot pegou nas notas, contou-as e levantou-se.

Penso ser possível, Miss Canaby, persuadir Sir Joseph a não proceder.

Oh! M. Poirot!

Amy Canaby juntou as mãos, Emily soltou um grito de alegria. Augustus ladrou e agitou a cauda.
Quanto a ti, meu amigo disse Poirot, dirigindo-se ao cão há uma coisa que eu desejo e que não me podes dar. É do teu manto de invisibilidade que eu necessito. Ninguém suspeita que em todos estes casos está 
envolvido um segundo cão. Augustus possuía a pele de invisibilidade do Leão.
Sem dúvida, M. Poirot; segundo a lenda, os pekinois outrora foram leões. E ainda têm coração de leões.

Augustus é, suponho, o cão que lhe foi deixado por Lady Hartingfield. Nunca teve medo que ele viesse para casa só, no meio de tanto tráfico?

Oh! Não, M. Poirot. Augustus é muito esperto. Treinei-o o mais cuidadosamente possível. Foi sempre instruído nas ruas principais.

Nesse caso disse Hercule Poirot ele é superior a muitas pessoas.

Sir Joseph recebeu Poirot no seu estúdio:

Muito bem, M. Poirot. Realizou já o seu trabalho?

Deixe-me, primeiro, fazer-lhe uma pergunta disse Poirot e sentou-se. Já sei quem é o criminoso e penso possuir provas suficientes para o convencer. Mas nesse caso duvido de que alguma vez possa recuperar o seu dinheiro.

Não trouxe o meu dinheiro? Sir Joseph tornou-se escarlate.

Hercule Poirot continuou:

Mas eu não sou um polícia. Estou actuando neste caso, somente no seu interesse. Posso, penso eu, recuperar o seu dinheiro intacto se o senhor não proceder.

Eh! disse Sir Joseph. Preciso pensar um pouco. Rigorosamente falando, suponho que deve proceder no interesse público. A maioria das pessoas diria isso.

«Eu desafio-os a dizerem o que quiserem, continuou Sir Joseph asperamente. Não será o dinheiro deles que desaparece. Se alguma coisa detesto é ser logrado. Jamais alguém me logrou e se foi embora.»

Bem, então, que decide?

Sir Joseph bateu na mesa com o punho:

Que ninguém diga que se foi embora com duzentas libras do meu dinheiro.
Hercule Poirot levantou-se, dirigiu-se para a secretária, 
assinou um cheque de duzentas libras e passou-o ao outro homem, dizendo:
Bem, estou condenado. Quem é este diabo de camarada?

Poirot abanou a cabeça:

Se aceitou o dinheiro não deve fazer perguntas. Sir Joseph dobrou o cheque e meteu-o no bolso.

É uma pena, mas o dinheiro é que interessa. E quanto lhe devo eu, M. Poirot?

Os meus honorários não são elevados. Trata-se, como lhe disse, de um caso de pouca importância. Fez uma pausa e acrescentou. Presentemente, quase todos os meus casos são casos de assassínio.

Sir Joseph estremeceu ligeiramente e disse:

Deve ser interessante!

Algumas vezes é bastante curioso. O senhor recorda-me um dos meus primeiros casos passados na Bélgica, há muitos anos. O principal protagonista parecia-se muito consigo. Era um bom preparador de sabão. Envenenou a mulher, para ficar livre e casar com a secretária. Sim, a semelhança é notável.

Um fraco som saiu dos lábios de Sir Joseph. Tornou-se azul, toda a cor lhe desapareceu das faces. Com os olhos dilatados encarou Poirot. Resvalou um pouco na cadeira. Então remexeu na algibeira. Tirou o cheque e colocou-o em cima da mesa.

Está tudo acabado, vê? Considera isto o seu pagamento?

Mas, Sir Joseph, o meu pagamento não pode ser assim tão elevado.

Está bem, guarde-o.

Enviá-lo-ei para fins de caridade.

Poirot inclinou-se para a frente e disse:Julgo necessário fazer-lhe notar, Sir Joseph, que na sua posição, deveria ser excessivamente cuidadoso.

Sir Joseph respondeu com voz quase inaudível:

Não é preciso aborrecer-se, serei cuidadoso. Hercule Poirot deixou a sala. Enquanto descia os degraus ia dizendo para com os seus botões:
Greta pode deslizar. Não vou arriscar o meu pescoço por qualquer loira platinada. 
Oh! Amy Canaby contemplou incredulamente o cheque de duzentas libras que tinha na mão e gritou:
Emily, Emily, olha para isto.

Cara Miss Canaby

Permita-me incluir a contribuição para a sua Fundação antes que esteja definitivamente esgotada.

Seu dedicado Hercule Poirot.

Amy disse Emily Canaby, foste incrivelmente afortunada. Pensa onde poderias estar agora: em Wormwood Scrubbs ou Holloway murmurou Emily.

Mas tudo isso passou, não é verdade, Augustus? Não haverá mais passeios no parque com a mãe ou as suas amigas e uma pequena tesoura.

Olhou fixamente e suspirou:

Sim, eu tinha razão.

Lady Hoggin disse para o marido:

É engraçado, este tónico tem um sabor diferente. Porque será que já não amarga tanto?

Sir Joseph resmungou:

Coisas dos farmacêuticos, que às vezes são pouco cuidadosos. De cada vez preparam as coisas de sua maneira.

Lady Hoggin, pensativamente, concluiu:

Suponho que deve ser isso.

Que outra coisa poderia ser?

O homem encontrou alguma pista a respeito de Shan Tung?

Sim, restituiu-me o dinheiro!

Quem foi?

Não disse. Hercule Poirot é muito reservado. Mas não te aborreças. É um tipo curioso, não é?
Sir Joseph teve um ligeiro estremecimento e dirigiu 
o olhar para todos os lados, como se sentisse a invisível presença de Hercule Poirot por detrás do ombro direito.
É um diabinho danado e esperto!

Querido Augustus, até faz pena! É tão esperto... Tudo se lhe pode ensinar, tudo aprende!

_sec+Rom:2_ II

A HIDRA DE LERNA

Hercule Poirot olhou encorajadoramente para o homem sentado no lado oposto.

O Dr. Charles Oldfield era um homem de cerca de quarenta anos. Tinha um bonito cabelo, brilhante e grisalho nas fontes e uns olhos azuis de expressão macerada. Parou um pouco e os seus modos eram excitantes. Parecia ter dificuldade em entrar no assunto.

Balbuciando disse:

Vim procurá-lo, M. Poirot, com extraordinário interesse e agora, que estou aqui, parece-me um caso sem saída. Porque vejo muito bem, é uma coisa em que não há nada a fazer.

Quanto a isso cabe-me a mim julgar.

Não sei porquê, penso que talvez... Parou de falar. Hercule Poirot terminou a frase:

Que talvez eu possa ajudá-lo? Está bem, talvez consiga. Conte-me o seu problema.

Oldfield ficou embaraçado.

Poirot notou como ele estava pálido. Oldfield começou a falar e na sua voz havia um tom de desespero:

O senhor vê, não vale a pena ir à polícia... Eles não podem fazer nada. E cada dia as coisas vão de mal a pior.

Que é o pior?

Os rumores... Oh, é muito simples, M. Poirot. Há justamente um ano a minha mulher morreu. Era uma inválida há muitos anos e toda a gente diz que a envenenei!

Olá! exclamou Poirot. E envenenou-a?

M. Poirot! O Dr. Oldfield deu um salto.
Acalme-se disse Hercule Poirot, e sente-se outra vez. Partamos do princípio que não envenenou a sua 
mulher. A sua clínica, suponho, está situada numa terra de província.
Sim. Market Loughborough, no Berkshire. Sempre pensei que era um lugar onde o povo criticava tudo, mas nunca imaginei que chegasse a este ponto! Desviou a cadeira um pouco para trás.

M. Poirot, não faz ideia do que eu tenho feito. A princípio nada sabia acerca do que corria. Notei apenas que o povo parecia menos amável, mas não fiz grande reparo. Mas depois o caso tornou-se mais notado. Na rua, as pessoas afastavam-se a distância para evitar falar-me. A minha clínica começou a decair. A toda a parte onde chego me apercebo dos mais baixos rumores, dos olhares hostis, das maliciosas línguas que espalham sobre mim o seu imenso veneno. Recebi uma ou duas cartas com coisas vis.

Depois de uma pausa continuou:

E... e não sei o que hei-de fazer. Não sei como lutar contra este emaranhado de mentiras e suspeitas. Como pode alguém refutar o que não lhe é dito abertamente, cara a cara? Estou arrasado, apanhado numa armadilha e lenta e cruelmente sendo destruído.

Poirot abanou pensativamente a cabeça dizendo:

Sim, um boato é sem dúvida a Hidra de Lerna que não podia ser exterminada, porque assim que se lhe cortava uma cabeça logo outra crescia no seu lugar.

O Dr. Oldfield concordou: é isso mesmo. Não há nada que eu possa fazer, nada. Procurei-o como último recurso, mas não penso nem um minuto que alguma coisa o senhor possa fazer.

Hercule Poirot calou-se por momentos e então disse:

Não tenho a mesma certeza. O seu problema interessa-me. Agradava-me destruir a hidra de sete cabeças. Antes de mais nada, diga-me qualquer coisa mais a respeito das circunstâncias que deram origem a esse malicioso boato. Disse-me que a sua esposa tinha morrido justamente há um ano. Qual foi a causa da morte?

Úlcera gástrica.

Fizeram autópsia?
Não! Havia muito tempo que ela sofria de perturbações gástricas. 
Os sintomas da inflamação gástrica e do envenenamento pelo arsénico são absolutamente iguais. Toda a gente sabe isso hoje em dia. Nos últimos dez anos tem havido vários casos de assassínio, e em cada um deles a vítima tem sido enterrada com certificado de úlcera gástrica. Sua esposa era mais velha ou mais nova que o senhor?
Era cinco anos mais velha.

Há quantos anos estavam casados?

Há quinze anos.

Ela tinha fortuna?

Sim, era uma mulher abastada. Deixou cerca de trinta mil libras. Uma boa soma.

Deixou-as ao Dr. Oldfield?

Sim!

O senhor e a sua mulher davam-se bem?

Certamente.

Nem discussões, nem brigas?

Bem Charles Oldfield hesitou. Minha mulher era o que se chama uma pessoa difícil. Era uma inválida, muito preocupada com a saúde e inclinada a ser rabugenta e difícil de contentar. Havia dias em que nada estava bem para ela.

Poirot abanou a cabeça dizendo:

Ah, sim, eu conheço o género. Mrs. Oldfield queixava-se possivelmente de que era abandonada, mal compreendida, que o marido estava cansado dela e que ficaria satisfeito com a sua morte.

A expressão do Dr. Oldfield confirmava a verdade de que Poirot desconfiava.

Disse com um sorriso forçado:

O senhor compreendeu bem o que eu quero dizer. Poirot continuou:

Teve uma enfermeira para a tratar, uma dama de companhia, ou uma criada dedicada?

Uma enfermeira muito sensível e competente.
Sempre as enfermeiras sensíveis e competentes têm sido boas línguas mas, Deus me valha, nem sempre empregam as línguas como deve ser. Não tenho dúvida de que a enfermeira falou, que as criadas falaram, que toda a gente falou. Têm aqui todos os dados para a origem 
de um delicioso escândalo de aldeia. Agora, pergunto-lhe mais uma coisa: Quem é a senhora?
Não o compreendo!O Dr. Oldfield corou de raiva.

Poirot insistiu amavelmente:

Julgo que me entende. Qual é a senhora a quem o seu nome anda associado? O Dr. Oldfield levantou-se. A sua face estava lívida e fria:

Não há nenhuma mulher no caso. Lamento ter-lhe tomado tanto tempo.

E dirigiu-se para a porta.

Eu também lamento respondeu Hercule Poirot, mas o seu caso interessa-me. Contudo não posso fazer nada enquanto não souber toda a verdade.

Eu disse-lhe toda a verdade.

Não...

O Dr. Oldfield estacou, depois rodou nos calcanhares:

Porque insiste em dizer que existe uma mulher ligada ao caso?

Mon cher docteur!

Pensa, então, que eu não conheço a mentalidade feminina? A tagarelice das terras pequenas é baseada sempre nas relações dos sexos. Se um homem envenenou a sua mulher para ir passear para o Pólo Norte ou para levar vida de solteiro, isso não interessa, não interessa aos camaradas de aldeia, nem um minuto sequer. É apenas porque estão convencidos de que o assassínio foi cometido para que o homem case com outra mulher que o assunto cresce e se espalha. Isto é psicologia elementar. Não sou responsável pelo que um grupo de linguareiras possa pensar.

É claro que não! Poirot continuou:

Então, sente-se outra vez e responda à pergunta que acabo de lhe fazer.

Vagarosamente, quase com relutância, Oldfield voltou atrás e, corando até às orelhas, começou:

É possível que se tenha falado a respeito de Miss Jane Moncrieffe. É a minha governanta e sem dúvida uma rapariga muito fina.
Há quanto tempo ela trabalha para si? 
Há três anos!
E a sua esposa gostava dela?

Bem, não! Não gostava lá muito.

Ela era ciumenta?

Era uma coisa absurda! Poirot sorriu e disse:

O ciúme das mulheres é proverbial. Tenho experiência, por isso posso dizê-lo. No ciúme, por mais inverosímeis e extraordinárias que as desconfianças pareçam têm quase sempre um fundo de verdade. Não diz um ditado que o cliente tem sempre razão? Pois bem, o mesmo acontece com o ciúme do marido ou da mulher. Pequenos indícios podem ser, são fundamentalmente certos.

O Dr. Oldfield ripostou energicamente:

Talvez, mas isso não altera a verdade do que eu afirmei!

Poirot inclinou-se para a frente; a sua voz era rápida, persuasiva:

Dr. Oldfield: vou fazer tudo que puder para resolver o caso. Mas devo usar para consigo de toda a franqueza sem atender a conveniências nem aos seus sentimentos pessoais. É ou não verdade que deixou de tratar da sua mulher algum tempo antes dela morrer?

Oldfield calou-se, por momentos.

Este assunto mata-me. Mas devo ter esperança. Seja como for, eu sinto que o senhor seria capaz de fazer alguma coisa por mim. Serei franco. Eu não me importava muito com minha mulher. Fui o que se chama um bom marido, mas nunca um marido apaixonado.

E essa Miss Jane?

Pequenas gotas de suor cobriram a fronte do Dr. Oldfield, que suspirou:

A rapariga... Ter-lhe-ia pedido para se casar comigo senão fosse este escândalo das más-línguas.

Finalmente começamos a entrar nos factos verdadeiros! Eh bien, Dr. Oldfield, encarregar-me-ei do seu caso. Mas lembre-se disto: é a verdade que eu desejo esclarecer.

Oldfield murmurou:
Não é a verdade que me causa dano. Hesitou e disse: Encarei a possibilidade de uma acção, por 
difamação! Se eu pudesse na verdade apanhar alguém, estaria justificado? Umas vezes penso isso... Outras penso que ainda seria pior. Dar maior publicidade ao caso poderia ter como resultado o povo vir a dizer: Não há fumo sem lume. Olhou para Poirot:
Diga-me, francamente. Existe algum meio de me libertar deste pesadelo?

Há sempre uma saída!concluiu Poirot.

Vamos para o campo disse Poirot ao criado.

De verdade, senhor?

E o fim da nossa jornada é destruir um monstro com sete cabeças.

Isso é assim? Alguma coisa parecida com o monstro de Lockness?

Menos acessível do que ele. Não me referi a nenhuma flecha nem a nenhum monstro ensanguentado, George.

- Não o compreendo, senhor.

Seria mais fácil se fosse isso. Nada há mais intangível, mais difícil de prender do que a origem de um rumor.

Oh, sim, isso é verdade. É difícil saber como as coisas aparecem, muitas vezes.

Exactamente!

Hercule Poirot não se alojou em casa do Dr. Oldfield. Preferiu a estalagem da terra. Na manhã seguinte à sua chegada teve a primeira entrevista com Jane Moncrieffe.

Era uma rapariga alta de cabelos acobreados e resolutos olhos azuis. Ela deitou em volta um olhar desconfiado como de alguém que quer pôr-se em guarda.

Então o Dr. Oldfield chamou-o?... Já sabia que ele
Pensava fazer isso.

Havia pouco entusiasmo no seu tom de voz.

A senhora não aprova?
Os seus olhares encontraram-se e ela perguntou friamente: 
Que pode o senhor fazer?
Posso encontrar um caminho para resolver a situação.

Ah! abençoada franqueza!

Serei franca como deseja. Quando tive conhecimento de que o povo dizia que Charles se tinha desembaraçado da mulher para casar comigo, pareceu-me que se nos casássemos iríamos dar-lhe razão. Esperava que as más-línguas, não vendo nenhum casamento, acabassem com o escândalo.

Mas não foi assim?

Não, tal não aconteceu.

Na verdade disse Poirot, isso é singular. Jane acrescentou com tristeza:

Eles não têm aqui muito com que se divertir.

E deseja casar com o Dr. Oldfield? A rapariga respondeu com frieza:

Sim, desejo. É o meu desejo desde que o conheci.

Então a morte da esposa foi conveniente para si?

Mrs. Oldfield era uma mulher muito desagradável. Francamente, fiquei radiante quando ela morreu.

Sim disse Poirot, a senhora é verdadeiramente sincera!

Ela teve o mesmo sorriso insolente.

Tenho uma sugestão a fazer disse Poirot.

Sim?

São necessárias medidas drásticas. Sou de opinião que alguém, talvez a senhora, deve escrever ao Home Office.

Que quer dizer com isso?

Quero dizer que o melhor processo de acabar com esta história de uma vez para sempre é conseguir que o corpo seja exumado e feita uma autópsia.

Ela recuou um passo. Abriu os lábios mas não chegou a falar. Poirot observava-a:

Então, mademoiselle?
Que ideia!a rapariga falava com aspereza. Pensa acercar-se de todas estas maldosas velhas faladoras e dizer-lhes: Façam favor de se calar com isso. Vejam que é muito prejudicial para o pobre Dr. Oldfield. Elas não lhe responderiam:Na verdade nós nunca acreditámos nessa história! E o pior de tudo é que elas 
não diriam: Meu caro, ocorreu-lhe alguma vez que a morte da Sr.a Oldfield não foi bem como pareceu? Não, elas diriam: Meu caro: não acreditamos nessa história a respeito do Dr. Oldfield e da mulher. Temos a certeza de que ele não fez uma coisa dessas, se bem que seja verdade que nos últimos tempos a abandonou um pouco. Não parece lá muito bem ter uma rapariga tão nova como governanta, mas isso não quer dizer que exista alguma coisa de mal entre eles. Oh, não! Temos a certeza de que tudo está muito bem.
Parou de falar, corou e o peito arfou-lhe mais rapidamente.

Poirot exclamou:

A senhora parece estar muito bem informada do que andam a dizer.

Eu sei tudo respondeu ela com aspereza.

E qual é a sua solução? Miss Moncrieffe respondeu:

O melhor que ele tinha a fazer era passar a clínica e recomeçar noutro lado qualquer.

Não pensa que a história pode segui-lo? Miss Moncrieffe encolheu os ombros:

Ele deve correr o risco.

Poirot conservou-se calado durante alguns minutos. Depois disse:

Vai casar-se com o Dr. Oldfield, Miss Moncrieffe?

Ele não me pediu em casamento!

Porque não?

Os seus olhares encontraram-se outra vez por segundos e então ela respondeu:

Porque eu recusei!

Jane Moncrieffe, mudando de assunto, disse calmamente:

Não concordo consigo!

Mas porque não? Um veredicto de morte natural não poderia fazer calar todas as más-línguas?

Se se conseguisse esse veredicto, sim!

Sabe o que está insinuando, mademoiselle?
Eu sei o que digo. O senhor está. pensando no envenenamento pelo arsénico. Pode-se provar que ela não foi envenenada pelo arsénico. Mas há outros venenos, os alcalóides vegetais. Duvido que passado um ano 
possa encontrar algum vestígio destes, se eles tiverem sido usados. Eu sei o que são estes peritos oficiais. São capazes de fazer um relatório, um veredicto, dizendo que não podem apresentar nada que tivesse causado a morte. E então os boatos podiam ir ainda mais longe.
Hercule Poirot calou-se por um ou dois minutos, dizendo depois:

Qual é, na sua opinião, a mais perversa língua da terra?

Penso que a velha Miss Leatheran; é a pior ovelha do rebanho.

Ah! Poderia apresentar-ma de uma maneira natural, se fosse possível?

Nada mais fácil. Todas estas velhas mexeriqueiras a esta hora da manhã, andam por aí fazendo compras. Basta apenas descermos à rua principal.

Tal como Jane dissera não houve dificuldades a este respeito. Junto do edifício do correio Jane parou e falou a uma mulher de meia-idade, alta, magra, de nariz comprido e penetrante olhar.

Bom dia, Miss Leatheran.

Bom dia, Jane. Está um dia muito bonito não é verdade? E olhou cheia de curiosidade para o companheiro de Miss Jane Moncrieffe.

Permita-me que lhe apresente M. Poirot, que vem aqui passar uns dias.

Debicando delicadamente um scone e equilibrando uma chávena de chá nos joelhos, Hercule Poirot permitiu-se entrar em confidências com Miss Leatheran. Esta tinha sido amável ao ponto de convidá-lo para tomar chá. Tinha decidido saber o que andava a fazer no seu meio aquele pequeno estrangeiro.

Durante algum tempo aparou-lhe os golpes com destreza, para lhe aguçar a curiosidade. E quando julgou o momento oportuno inclinou-se para a frente dizendo:
Ah, Miss Leatheran, já vi que a senhora é muitíssimo esperta! Já descobriu o meu segredo. Desloquei-me até aqui requisitado pelo Home Office. Peço-lhe o favor e baixou a voz de não fazer uso disto. 
É claro, é claro Miss Leatheran estava lisonjeada. O Home Office não quer dizer que se trata da pobre Mrs. Oldfield?
Poirot abanou vagarosamente a cabeça mais de uma vez e disse:

Bem, Miss Leatheran... e pôs nesta única palavra a mais agradável emoção. É um assunto muito delicado, a senhora compreende... Fui requisitado para averiguar se é ou não necessário fazer uma exumação.

Miss Leatheran exclamou:

Vai desenterrar a pobre criatura? É terrível!

Se em vez de terrível ela tivesse dito é esplêndido a sua voz teria tido a mesma entoação.

Qual é a sua opinião, Miss Leatheran?

Bem, sem dúvida que tem havido grande falatório. Mas eu nunca dou atenção ao que se diz. Os boatos quando correm aumentam sempre muito as coisas. É verdade que o Dr. Oldfield tem andado com estranhas maneiras desde que isto aconteceu, mas eu tenho dito repetidas vezes que não necessitamos de atribuir o facto a uma consciência culpada. Pode ser o desgosto. É certo, sem dúvida, que ele e a mulher não se entendiam muito bem. Isto sei eu de fonte segura. A enfermeira Harrison que estava com Mrs. Oldfield há três anos, conhecia a intimidade do casal. Eu sempre pensei que nurse Harrison tinha as suas suspeitas. Não que alguma vez ela tenha dito qualquer coisa, mas não é verdade que se podem tirar deduções das maneiras de qualquer pessoa?

Poirot disse com tristeza:

Isso não basta!

Sim, eu sei que não é suficiente, mas se o corpo for exumado, então o senhor ficará sabendo!

Sim concordou Poirot, então nós saberemos tudo.
Tem havido casos, é claro... continuou Miss Leatheran, dilatando as narinas com agradável excitação. Armstrong, por exemplo, e outro homem, de cujo nome não me recordo, e Crippen, é claro! Sempre tive curiosidade de saber se Ethel Le Neve estava ou não com ele. É claro, Jean Moncrieffe é uma boa rapariga, tenho a certeza... E não posso dizer que ela o tenha levado a isso, mas os homens costumam fazer-se parvos com as 
raparigas, não é verdade? E, é claro, eles eram vistos muitas vezes juntos! Poirot não falava. Olhava para ela com uma inocente expressão de curiosidade, com o fim de arranjar mais um assunto para a conversa.
Interiormente divertia-se contando o número de vezes que ela empregava a expressão é claro.

E, é claro, com uma exumação e tudo o mais, muitas coisas viriam à superfície. Os criados e tudo. Os criados sabem sempre muitas coisas, não é assim? E, é claro, é impossível impedi-los de falar. A criada Beatriz foi despedida logo a seguir ao funeral. Sempre me pareceu que era estranho, com a falta de criadas que há hoje em dia. Parece que o Dr. Oldfield receava que ela soubesse de qualquer coisa.

Certamente parece haver bases suficientes para um inquérito concluiu Poirot solenemente.

Miss Leatheran fez um trejeito de relutância:

Não posso pôr isso na ideia. A nossa pacata terra posta em foco nos jornais. Toda a publicidade!

Isso vai afectá-la? perguntou Poirot.

Um pouco. O senhor sabe, sou uma pessoa antiga.

E, como a senhora diz, tudo isto, provavelmente, não passa de um boato.

Bem, eu não posso conscienciosamente afirmá-lo. Penso no ditado que diz: Não há fumo sem lume.

Eu penso exactamente o mesmo replicou Poirot. Levantou-se.

Conto com a sua discrição, mademoiselle.

Oh, é claro. Eu não direi uma palavra seja a quem for.

Poirot sorriu e despediu-se.

No patamar da escada disse à criadita que lhe segurava a gabardina e o chapéu:

Eu vim aqui para fazer um inquérito sobre a morte de Mrs. Oldfield e fico-lhe muito agradecido se não disser isto a ninguém.

Gladys, a criada de Miss Leatheran, recuou quase ao ponto de esbarrar com o bengaleiro. Ficou excitadíssima:
Então, o doutor fez isso? 
Pensam assim de há um tempo para cá, não é verdade?
Bem, senhor, não sou eu. Foi Beatriz. Ela estava em casa do Dr. Oldfield quando a senhora morreu.

E ela pensa então que tenha sido... Poirot usou uma voz dramática...assassinada?

Sim, ela diz isso. Assim como também diz a mesma coisa a enfermeira Harrison que estava lá nessa altura. Miss Harrison estava bastante aflita quando Mrs. Oldfield morreu. E Beatriz sempre disse que ela sabia alguma coisa, porque era incorrecta para o doutor e não o seria, certamente, se não soubesse alguma coisa, não é verdade?

Onde está a enfermeira Harrison, agora?

Está cuidando da velha Miss Bristow. No fim da povoação. Não tem que errar. Basta seguir pelas colunas do pórtico.

Pouco tempo depois Hercule Poirot encontrava-se sentado em frente da mulher que mais coisas devia saber a respeito das circunstâncias que tinham dado origem aos boatos que corriam.

A enfermeira Harrison era ainda uma bela mulher com cerca de quarenta anos. Tinha o aspecto de uma madona de grandes olhos escuros. A enfermeira olhou para Poirot com atenção e paciência, dizendo vagarosamente:

Sim, eu sei que correm desagradáveis histórias. Fiz tudo que podia para conseguir que se calassem, mas sem resultado. Como sabe, o povo gosta de coisas que o excitem. Mas deve ter havido qualquer coisa para dar origem a esses boatos.

Notava-se que ela tinha uma expressão de profunda tristeza.

Talvez sugeriu Poirot o Dr. Oldfield e a esposa não se dessem bem na intimidade e isso deu origem ao boato.
A enfermeira Harrison abanou a cabeça com decisão: 
Oh, não! O Dr. Oldfield foi sempre muito amável e paciente para a esposa.
Ele gostava realmente dela? A enfermeira hesitou:

Não, eu não digo bem isso. Mrs. Oldfield era uma mulher muito difícil. Nada a contentava e exigia constantes manifestações de simpatia que nem sempre se justificavam.

Parece-lhe que ela exagerava a sua situação? A enfermeira concordou:

Sim, a sua falta de saúde era muitas vezes produto da sua imaginação.

E todavia disse Poirot gravemente ela morreu...

Oh, eu sei, eu sei...

Olhou para ela durante um ou dois minutos, para a sua perturbada perplexidade, para a sua palpável incerteza.

Eu penso, tenho a certeza de que a senhora sabe o que em princípio deu origem a que se levantassem todas estas histórias.

A enfermeira Harrison corou:

: Bem, posso talvez fazer uma suposição. Convenço-me de que foi a criada Beatriz que levantou todos estes rumores e penso saber por que razão isto se lhe meteu na cabeça.

Sim?

O senhor vê, sucedeu algumas vezes eu surpreender fragmentos de conversação entre o Dr. Oldfield e Miss Moncrieffe, e tenho quase a certeza de que Beatriz também os escutou. Somente suponho que ela não admite que se diga isso.

Que espécie de conversação?

A enfermeira fez uma pausa como que para concentrar na memória os acontecimentos. Depois respondeu:
Foi cerca de três semanas antes do último ataque, que matou Mrs. Oldfield. Eles estavam na sala de jantar. Eu vinha a descer as escadas quando ouvi Miss Moncrieff dizer: E daqui a quanto tempo isso poderá ser? Não posso esperar por muito mais tempo! E o doutor respondeu: Agora já falta pouco, querida. E ela disse outra vez: Eu não posso suportar esta demora. Pensas 
que tudo correrá bem? E ele disse-lhe: Sem dúvida, nada pode correr mal. Desta vez, dentro de um ano estaremos casados. Foi o primeiro aviso que eu tive, M. Poirot, de que entre o doutor e Miss Moncrieffe alguma coisa existia. Sabia que ele a admirava, que eram bons amigos, mas nada mais. Voltei para trás. Isto tinha-me chocado, mas não reparei que a porta da cozinha estava aberta e que Beatriz poderia estar escutando. E o senhor sabe muito bem que esta conversa poderia ser tomada em dois sentidos. Podia significar que o Dr. Oldfield conhecia muito bem o estado em que a esposa se encontrava e que não poderia durar muito tempo; não duvido que assim fosse. Mas para uma pessoa como Beatriz as coisas podiam ser interpretadas de maneira diferente. Podia parecer que o doutor e Jane estavam planeando acabar definitivamente com Mrs. Oldfield.
E a senhora o que pensa a esse respeito?

Nada, sem dúvida. Nada...

Poirot olhou para ela interrogativamente:

Enfermeira Harrison, a senhora sabe mais alguma coisa? Mais alguma coisa que não me tenha dito?

Ela corou intensamente:

Não, não! Certamente que não. Que mais poderia saber? Não sei, mas penso que poderia ser alguma coisa...Abanou a cabeça e parecia novamente perturbada.

Hercule Poirot disse:

É possível que o Home Office mande exumar o corpo de Mrs. Oldfield.

Oh, não! A enfermeira estava horrorizada. Que terrível coisa!

A senhora pensa que seria má ideia?

Eu penso que seria terrível! Penso nas críticas a que isso poderia dar origem. Penso que seria terrível para o pobre Dr. Oldfield.

E não pensa que poderia ser uma coisa boa para ele?

Porquê?

Porque se ele está inocente... a sua inocência pode ser provada.
Calou-se. Reparou que este pensamento criava raízes no espírito de Miss Harrison, viu-a franzir as sobrancelhas 
e depois desanuviar-se-lhe a fronte e suspirar profundamente e olhar para ele.
Não tinha pensado em tal. Sem dúvida é a única coisa a fazer!

Então, ouviu-se uma série de pancadas no tecto. Nurse Harrison levantou-se.

É a senhora. Despertou da sesta. Tenho de ir instalá-la confortavelmente antes que lhe tragam o chá, depois vou dar o meu habitual passeio. Sim, penso, M. Poirot, que o senhor está na razão. Uma autópsia pode acabar de vez com toda esta história. Pode esclarecer-se o caso e acabar com todos estes rumores contra o Dr. Oldfield.

Apertaram as mãos e Poirot precipitou-se para fora do aposento.

Hercule Poirot encaminhou-se para o correio e fez uma chamada telefónica para Londres. Respondeu-lhe uma voz petulante:

Parece-lhe que deve fazer barulho com esse assunto, meu caro Poirot? Tem a certeza de que é um caso que possa interessar-nos? Você sabe que grande parte dos boatos das terras pequenas são coisas sem importância.

Este disse Hercule Poirot é um caso especial.

Muito bem! É você quem o diz. Você tem o aborrecido hábito de ser recto. Mas se isso não passa de um pesadelo, não ficaremos satisfeitos consigo, já sabe.

Poirot sorriu e murmurou:

Serei eu o único a ficar satisfeito.

Que está dizendo? Não consigo ouvir!

Nada, absolutamente nada!

E desligou. Entrando no correio inclinou-se para o balcão e disse no mais aliciante tom de voz:

Pode, por acaso, dizer-me, madame, onde está agora uma rapariga chamada Beatriz, que foi criada do dr. Oldfield?
Beatriz King? Depois disso já esteve em duas casas. Agora está com Mrs. Marley, por cima do edifício do banco. 
Poirot agradeceu. Comprou dois postais, um livro de selos e uma peça de louça regional.
Durante a compra conseguiu introduzir na conversa o assunto da morte de Mrs. Oldfield.

Rapidamente percebeu a expressão particular que apareceu na face da empregada do correio.

Foi de repente, não foi? Isso deu origem a grande falatório.

Um clarão de interesse brilhou nos olhos da empregada:

É por isso que deseja ver Beatriz King? Todos nós achámos estranho ela ter saído tão depressa. Toda a gente pensa que ela sabe alguma coisa. E pode ser que saiba. Ela fez algumas insinuações bem claras.

Beatriz King era uma rapariga baixa. Aparentava sólida estupidez, mas o olhar era mais inteligente do que havia a esperar do seu aspecto. Parecia, todavia, que não se podia tirar nada de Beatriz King.

Eu não sei nada, nada... Não me compete falar no assunto... Não sei o que possa o senhor pensar de uma conversa que surpreendi entre o doutor e Miss Moncrieffe. Não sou pessoa que espreite às portas. Não sei nada.

Nunca ouviu falar em envenenamento por meio de arsénico?

Um furtivo interesse aflorou à face rabugenta da rapariga:

Era isso que estava na garrafa do remédio?

Qual garrafa de remédio?

Uma garrafa de medicamento que Miss Moncrieffe trouxe para Missus. A enfermeira deitou-a fora. Isso vi eu. Provou, cheirou e depois deitou na pia e encheu a garrafa com água da torneira. Era um medicamento branco que parecia água. E uma vez, quando Miss Moncrieffe trouxe uma chávena de chá para Missus, a enfermeira atirou-o fora, dizendo que não tinha sido feito com água a ferver e fez outro de novo.

E gostava de Miss Moncrieffe, Beatriz?
Nem posso pensar nela... Um bocado orgulhosa. Sem dúvida, eu sempre percebi Quanto ela era amável 
para com o doutor. E vi a maneira como ela olhava para ele.
Outra vez Poirot abanou a cabeça, e retirou-se para a hospedaria.

O Dr. Allan Garcia, o analista do Home Office, esfregou as mãos e piscou os olhos a Poirot, dizendo:

Bem, isto agrada-me Poirot, você é o homem que tem sempre razão. Que é que o meteu nisto? Algum boato?

É como diz: um boato espalhado por muitas línguas.

No dia seguinte Poirot, uma vez mais, tomou o carro para Market Loughborough.

Market Loughborough zumbia como um enxame de abelhas. Estava assim agitado desde que se procedera à exumação. Agora que os resultados da autópsia eram conhecidos a excitação tinha chegado ao mais alto grau.

Poirot estava na hospedaria havia mais de uma hora e tinha justamente acabado um suculento almoço de bifes e pudim, regado com cerveja, quando lhe disseram que uma senhora estava esperando por ele.

Era a enfermeira Harrison. O seu rosto estava pálido e abatido quando se aproximou de Poirot.

É verdade, é realmente verdade, M. Poirot?

Sim, foi encontrado arsénico mais do que suficiente para provocar a morte.

A enfermeira chorava:

Eu nunca pensei, nem por um momento e debulhou-se em lágrimas.

Soluçando perguntou:

E vão prendê-lo?

Faltava provar muita coisa: Oportunidade. Qual o veneno. A maneira como foi ministrado.

Mas suponha, M. Poirot, que não há nada a fazer, nada.

Nesse caso Poirot encolheu os ombros, ele será detido.
Há ainda uma coisa, alguma coisa suponho, que 
eu devia ter dito primeiro, mas não pensava que interessasse. Era muito estranho...
Eu sabia que ainda havia mais alguma coisa. Será melhor dizer tudo agora.

Não é muito. Justamente um dia em que fui à despensa Miss Moncrieffe estava a fazer uma coisa muito singular.

Sim?

Pareceu-me uma porcaria. Estava enchendo a caixa de pó-de-arroz.

Sim?

Mas não a estava enchendo com pó-de-arroz. Estava-lhe pondo qualquer coisa tirada de uma das garrafas que estão no armário dos venenos. Quando me viu parou, fechou a caixa de pó-de-arroz e escondeu-a na mala. Depois colocou a garrafa apressadamente no armário de forma a que eu não pudesse ver o que era. Isto pode não significar nada, mas agora que eu sei que Mrs. Oldfield foi envenenada...

Poirot perguntou: Dá-me licença?

Foi lá fora e telefonou para o detective Sargent Grey, de Berkshire Police.

Poirot fixava a face de uma rapariga de cabelos avermelhados e ouvia uma voz clara, dizendo: Eu não concordo: Jane Moncrieffe não desejava a autópsia. Tinha dado uma desculpa bastante plausível mas o facto permanecia. Uma rapariga cativante, activa, resoluta. Apaixonada por um homem que estava cansado de uma esposa inválida que podia viver ainda alguns anos. Segundo a enfermeira Harrison, ela tinha qualquer relação com o caso.

Hercule Poirot assinalou o facto.

E, agora, que está pensando? perguntou a enfermeira.

Que tudo isto é para lamentar.

Não acredito, nem por um momento, que ele soubesse alguma coisa.

Poirot interrompeu-a:

Não! Tenho a certeza de que não.
A porta abriu-se e o detective Sargent Grey apareceu trazendo na mão um objecto embrulhado num lenço 
de seda. Desembrulhou-o cuidadosamente. Era uma caixa esmaltada de compacto cor-de-rosa vivo.
É a mesma que eu vi disse a enfermeira. Grey disse:

Encontrei isto no fundo da gaveta do lado direito da secretária de Miss Moncrieffe. Dentro de um sachet para lenços. Tanto quanto eu pude ver não há marca de dedos mas serei cuidadoso. Cobrindo a mão com o lenço premiu a mola, a caixa abriu-se e Grey disse:

Isto não é pó-de-arroz.

Mergulhou um dedo e provou ligeiramente com a ponta da língua.

Não tem nenhum sabor especial. O arsénico branco não sabe a nada.

Então, Poirot, interveio:

Será analisado e olhou para a enfermeira.

Pode jurar que é o mesmo?

Sim, positivamente. É a mesma caixa que eu vi na despensa, na mão de Miss Moncrieffe, uma semana antes da morte de Mrs. Oldfield.

Sargent Grey tomou nota. Olhou para Poirot e abanou a cabeça. Este tocou a campainha.

A senhora identificou este pó compacto como sendo o que viu na posse de Miss Moncrieffe há um ano! Ficará surpreendida por saber que esta caixa foi comprada há umas semanas no Woolworth e que, se bem que tenha o mesmo modelo e a mesma cor, foi manufacturada apenas há três meses.

A enfermeira abriu a boca num suspiro e sobressaltou-se olhando para Poirot com os seus olhos escuros.

Já tinha visto antes esta caixa, George?
Sim, senhor. Vi a enfermeira Harrison comprar esta caixa no Woolworth, na sexta-feira passada, dia 18. Segui esta senhora no caminho. Tomou um autocarro para Darnington no dia que eu mencionei e comprou este compacto. Levou-o para casa. Depois, no mesmo dia, foi à casa onde está alojada Miss Moncrieffe. Segundo as suas instruções eu já lá me encontrava. Vi-a entrar no quarto de cama de Miss Moncrieffe e esconder a caixa na parte de trás da gaveta da secretária. Vi perfeitamente pela fechadura da porta. Depois retirou-se convencida de que ninguém a observara. 
Poirot voltou-se para a enfermeira e num tom de voz áspero e insidioso perguntou:
Pode explicar estes factos, enfermeira Harrison? E insistiu:

Não havia arsénico na caixa quando saiu da loja, mas havia quando a deixou em casa de Mrs. Bristow.

Finalmente acrescentou:

Não era prudente conservar uns restos de arsénico em seu poder. A enfermeira escondeu a face nas mãos e confessou em voz baixa e lenta:

É verdade! É tudo verdade! Matei-a. £ tudo... Por nada, nada... Eu estava doida!

Jane Moncrieffe, contritamente pediu:

Peço-lhe que me perdoe, M. Poirot. Fui muito áspera para si, terrivelmente áspera.

Foi assim que principiei. Isto parece-se com a velha lenda da Hidra de Lerna. Cada vez que se lhe cortava uma cabeça duas nasciam em seu lugar. Assim eu principiei com isto. Os rumores cresceram e multiplicaram-se. Mas, veja que a tarefa dos meus Trabalhos de Hércules foi enriquecida com a primeira cabeça. Quem tinha levantado este boato? Não demorei muito em descobrir que a origem da história era a enfermeira Harrison. Fui procurá-la. Apareceu-me como se fosse uma mulher agradável, inteligente e simpática. Mas logo de entrada ela cometeu um erro: repetiu-me a conversa que se tinha passado entre a senhora e o doutor, e que nessa conversa havia mal. Foi pouco psicológica. Se a senhora e o doutor tivessem combinado matar Mrs. Oldfield, por menos inteligentes e de cabeça no ar que fossem, não iam ter tal conversa num compartimento com a porta aberta e podendo ser ouvidos por qualquer pessoa que estivesse na escada ou na cozinha. E as palavras que lhe atribuiu não condiziam nada com a sua mentalidade. Eram palavras de uma mulher mais velha e de diferente temperamento. Eram as palavras que podiam ser ditas por ela própria nas mesmas circunstâncias.
Parou, e depois prosseguiu: 
Reparei ainda que todo o assunto era muito simples. A enfermeira Harrison era nova e ainda bastante aproveitável. Tinha vivido perto do Dr. Oldfield durante três anos. Ele nunca a procurou nem lhe deu provas de especial simpatia. E ela teve a impressão de que se Mrs. Oldfield morresse ele poderia provavelmente casar com ela. Em vez disso ela soube que depois da morte de Mrs. Oldfield ele casaria consigo. Levada pela inveja e pelo ciúme levantou o boato de que o Dr. Oldfield tinha envenenado a esposa.
E, após nova pausa, continuou:

Foi assim que de início eu encarei os factos. Mas a velha frase não há fumo sem lume veiu-me à ideia. Então pensei se acaso a enfermeira Harrison teria feito mais alguma coisa do que espalhar um boato. Certas coisas que ela contou pareceram-me estranhas. Disse-me que a doença de Mrs. Oldfield era em parte imaginária, que ela não sofria tanto como queria fazer acreditar. Mas o próprio doutor não tinha dúvidas acerca dos reais sofrimentos da esposa. Ele não tinha ficado surpreendido com a sua morte. Além disso tinha chamado outro médico à pressa, pouco antes de ela morrer, e o outro tinha confirmado a gravidade do caso.

«A título de experiência falei na possibilidade de uma exumação... A enfermeira Harrison ficou chocadíssima com a ideia. Mas, quase ao mesmo tempo, deixou-se dominar pela inveja e pelo ciúme. Deixá-los encontrar arsénico: nenhuma suspeita recairia sobre ela. Seriam o doutor e Miss Moncrieffe a sofrer com isso.

«Era a única esperança. Levar a enfermeira Harrison a denunciar-se a si própria. E se houvesse a felicidade de Jane poder escapar, veio-me à ideia que a enfermeira empregaria todos os esforços para a envolver no crime. Dei instruções ao meu prestável George, o último dos homens de quem ela poderia desconfiar. E, assim, tudo acabou bem.»

Jane Moncrieffe, entusiasmada, exclamou:

O senhor foi maravilhoso! E o Dr. Oldfield concordou:

Sem dúvida! Nunca me passou pela cabeça que fosse tão extraordinário. Que cego que eu estava!
Poirot, então, perguntou cheio de curiosidade? 
Ouviu-se outra pancada, uma pancada diferente e Poirot disse:
Entre!

E aprovou com o olhar o jovem que ali estava, embaraçadamente, torcendo o boné.

Aqui, pensou ele, está um dos mais belos especímenes da humanidade, um jovem simples com o aspecto de um deus grego.

O rapaz disse numa voz baixa e áspera:

É acerca do carro, senhor; já o trouxemos e descobrimos o mal. É caso para uma hora de trabalho.

Poirot perguntou:

Qual é o mal?

O rapaz entrou arrebatadamente em detalhes. Poirot abanava a cabeça gentilmente mas não o ouvia. Um físico perfeito era uma coisa que ele admirava. Pensou consigo mesmo: sim, um deus grego, um jovem pastor da Arcádia.

O rapaz calou-se abruptamente. Poirot franziu as sobrancelhas por alguns segundos. A sua primeira reacção foi estética, depois mental.

Compreendo; sim, compreendo. Fez uma pausa e acrescentou: O meu motorista disse a mesma coisa que o senhor acaba de me dizer.

Viu um rubor subir às faces do outro e os dedos apertarem o boné nervosamente. O rapaz gaguejou:

Sim, senhor; eu sei!

Hercule Poirot continuou calmamente:

Mas pensou em vir você mesmo dizer-me isso.

É verdade senhor, pensei que o devia fazer.

Isso disse Poirot foi muito consciencioso da sua parte. Obrigado!

Havia na sua voz um tom fraco mas compreensível de despedida. No entanto, não esperava que o outro se fosse embora e acertou.

O rapaz não se moveu. Mas os seus dedos moveram-se convulsivamente amarrotando o boné enquanto dizia numa voz ainda mais baixa e embaraçada:

Desculpe-me, senhor, mas é verdade que o senhor é um detective? É verdade que é M. Hercule Poirot? Pronunciou o nome cuidadosamente.
É verdade! respondeu Poirot. 
O rapaz corou de novo e disse:
Eu li um artigo a seu respeito, no jornal.

Sim?

O rapaz fez-se novamente escarlate. Havia tristeza no seu olhar, tristeza e ansiedade. Hercule Poirot foi em seu auxílio, dizendo gentilmente:

Que deseja perguntar-me?

As palavras saíam-lhe num tom de voz rouca; apesar disso o rapaz disse:

Receio que seja atrevimento da minha parte. Mas a sua chegada aqui foi uma felicidade. É demasiado bom para que me tenha enganado. Nada melhor do que poder dirigir-me directamente a si. Não faz mal falar-lhe aqui?

Hercule Poirot levantou a cabeça perguntando:

Deseja que o ajude nalguma coisa?

O outro abanou a cabeça respondendo com uma voz áspera e embaraçada:

É a respeito de uma senhora jovem. Se... se pode procurá-la.

Procurá-la? Então ela desapareceu?

É verdade, senhor!

Poirot acomodou-se melhor na cadeira e respondeu:

Posso ajudá-lo, talvez! Mas era preferível ter-se dirigido à polícia. Isso faz parte das suas atribuições e a polícia tem mais recursos que aqueles de que eu posso aqui dispor.

O rapaz respondeu com tristeza:

Não posso fazer isso, senhor. Prefiro falar consigo. Poirot olhou-o com atenção e indicou-lhe uma cadeira.

Eh, bien, então sente-se; como se chama?

Williamson! Ted Williamson!

Sente-se, Ted, e conte-me tudo!

Obrigado! O rapaz aproximou-se da cadeira e sentou-se à beira, cuidadosamente.

Poirot disse com amabilidade:

Então, conte lá.

Ted Williamson soltou um suspiro e, depois, começou:
Bem, senhor! O caso passou-se assim. Só a tinha visto uma vez. Mas tudo isto me parece singular! A minha carta voltou para trás... 
Comece pelo princípio, e não se enerve. Conte-me justamente tudo o que ocorreu.
Bem... Talvez o senhor conheça Grasslawn, aquela casa grande que se encontra quando se desce o rio, depois da ponte.

Não conheço.

Pertence a Sir George Sanderfield. Serve-se dela no Verão, para fins-de-semana. Tem dado ali grandes festas, com actrizes e tudo. Bem, no passado mês de Junho mandou-me chamar para ver a instalação eléctrica, que não estava boa.

Poirot abanou a cabeça.

Eu fui lá. Sir George não estava, fora para o rio. A cozinheira e o cozinheiro e todas as criadas tinham ido com o patrão para servir as bebidas e o almoço. Só ficara em casa uma rapariga. Era a criada de uma das visitas. «Deixe-me entrar e mostre-me o quadro eléctrico e deixe-se ficar aqui enquanto trabalho», disse-lhe. E começámos a falar um com o outro. Chamava-se Nita, segundo me disse. E era criada de uma bailarina russa que ali estava também. «Qual é a sua nacionalidade, inglesa?», perguntei-lhe. E ela respondeu: «Não. Sou francesa, penso eu.» Tinha um sotaque muito engraçado, mas falava correctamente o inglês. Ela era muito amável e passado um bocado perguntei-lhe se podia ir comigo, naquela noite, ao cinema. Mas ela disse que a senhora podia precisar dela. No entanto, disse-me que de tarde podia sair mais cedo uma vez que tinham ido todos para o rio e lá ficariam até tarde. Não lhe perguntei mais nada e fomos dar um passeio ao longo do rio.

Calou-se e um sorriso assomou-lhe nos lábios. O olhar tornou-se-lhe sonhador. Poirot perguntou:

Ela era bonita, não é verdade?

Era a coisa mais bonita que se pode imaginar. O cabelo parecia ouro e levantado dos lados como asas. Tinha uma graciosa maneira de andar. Eu, eu... bem, pensei logo nela com as melhores intenções. Não pretendia mais nada.

Poirot abanou a cabeça. O rapaz continuou:
Ela disse-me que a senhora ausentar-se-ia, outra vez, dentro de quinze dias e combinámos novo encontro. Fez uma pausa. Mas não voltou mais. Esperei por ela 
até ao prazo que me tinha marcado mas nem sinais dela. Por último tomei coragem e fui procurá-la. Perguntei por ela. A senhora russa ainda ali estava e a criada também, foi o que me disseram. Foram chamá-la mas quando ela apareceu vi que não era Nita. Pelo contrário, era uma rapariga que parecia um gato preto e com maneiras provocantes. Chamava-se Maria. «Você deseja ver-me?», perguntou com um sorriso afectado. Devia ter notado que não fiquei satisfeito.
«Disse-me que era criada da senhora russa e mais algumas coisas, a seu respeito, afirmando que não era aquela a primeira vez que me via. Então, pôs-se a rir e disse-me que a última criada tinha sido despedida de repente. «Despedida? Por que motivo?», perguntei. Encolheu os ombros e esfregou as mãos dizendo: «Como posso eu saber? Eu não estava aqui!» Bem... Isto chocou-me e naquele momento nada me ocorreu para dizer. Mas depois enchi-me de coragem, procurei essa Maria outra vez e pedi-lhe que me desse a direcção de Nita. Que Nita não a tinha deixado e ela não sabia qual era o seu último nome. Prometi-lhe uma lembrança se ela satisfizesse o meu pedido. Era da qualidade de só fazer alguma coisa por interesse. Bem, ela deu-me uma morada no norte de Londres. Escrevi para aí mas pouco depois a carta veio devolvida por intermédio do correio tendo escrito no sobrescrito: esta morada não existe aqui.»

Ted Williamson calou-se. Os seus olhos, aqueles olhos azuis tão profundos e doces, olharam para Poirot. Depois disse:

Está o senhor a ver como as coisas se passaram? Isto é caso para polícia. Mas eu desejo encontrá-la. E não sei que fazer para isso. Se... se o senhor pudesse encontrá-la por mim... empalideceu um pouco: Eu, eu tenho pouco dinheiro, mas posso dispor de cinco ou dez libras.

Poirot disse gentilmente:

Não há necessidade de discutir, agora, esse assunto. Primeiro reflicta neste ponto: essa rapariga, essa tal Nita, não sabia o seu nome nem o lugar onde você trabalha?
Oh, sim, sabia muito bem. 
Podia ter comunicado consigo se desejasse fazê-lo?
Sim.

Então, não pensa que talvez... Ted interrompeu-o:

O senhor quer dizer é que eu gosto dela mas ela não gosta de mim? Pode ser uma razão... Mas ela gosta de mim. Ela gosta de mim! Isto não foi uma brincadeira para ela... E eu tenho pensado que talvez haja outra razão para tudo isto ter acontecido assim. Pode estar metida em qualquer coisa desagradável. O senhor sabe o que eu quero dizer.

Você quer dizer que ela está para ter alguma criança?

Ted corou.

Não se passou nada de mal entre nós.

Poirot olhou para o rapaz pensativamente e murmurou:

E se isso que você sugere for verdade, ainda deseja encontrá-la?

O rapaz tornou a corar.

Sim, isso é indiscutível. Desejo casar-me com ela e não há nada que possa fazer-me mudar de ideias. Se o senhor a procurasse, se tentasse encontrá-la.

Poirot sorriu murmurando para consigo próprio: «Cabelo semelhante a asas douradas! Sim, creio

que é o terceiro Trabalho de Hércules... Recordo-me

muito bem, passou-se na Arcádia...»

Hercule Poirot olhou pensativamente para a folha de papel na qual Ted Williamson tinha escrito com dificuldade um nome e uma direcção: Miss Valetta, 17, Upper Renfrew Lane, n.° 15.

Poirot desejou saber se ele tinha alguns dados mais sobre esta direcção. Não sabia nada. A direcção era a única indicação que Ted podia prestar-lhe.

Acima de Renfrew Lane fica uma rua barulhenta mas bem frequentada. Uma mulher forte de olhos claros veio abrir a porta quando Poirot bateu.
Miss Valetta? 
Há muito tempo que se foi embora! respondeu a mulher.
Talvez possa dar-me a sua direcção.

Não sei se posso, não tenho a certeza; ela não a deixou quando se foi embora.

Quando é que se foi embora?

No Verão passado!

Pode dizer-me exactamente quando?

O agradável ruído de duas coroas na mão direita de Poirot puseram a mulher com mais amável disposição. O seu olhar claro tornou-se mais suave, tornou-se gracioso até.

Bem, não tenho a certeza de poder ajudá-lo. Deixe-me ver. Agosto, talvez Julho. Sim deve ter sido por essa altura. Cerca da primeira semana de Julho. Saiu muito à pressa. Regressou à Itália, creio eu.

Era, então, italiana?

Isso mesmo, senhor!

E não era uma das criadas de uma bailarina russa?

Era, sim! Madame Semoulina ou outro nome qualquer. Dançava no Thespineste Ballet aonde vai toda a gente. Era uma das estrelas.

Sabe porque é que Miss Valetta abandonou o lugar?

Não sei, não tenho a certeza.

Foi despedida, não foi?

Bem, creio que houve qualquer coisa pouco limpa. Mas Miss Valetta não se preocupou muito com isso. Ela era daquelas que deixam correr as coisas... Ao princípio parecia muito irritada com isto. Com o temperamento que tinha: uma verdadeira italiana. Tinha uns olhos negros e perfurantes como se fossem punhais. Não gostava de me encontrar com ela quando ela estava mal disposta.

E tem a certeza de que não sabe a nova direcção de Miss Valetta?

As moedas soaram outra vez encorajadoramente. A mulher falava com sinceridade:

Desejava poder dizer-lha, mas ela saiu de uma maneira tão precipitada!

Poirot pensou:
Sim, deve ser assim... 
Ambrose Vandel, distraído do entusiasmo que punha nos cenários de um ballet que estava para aparecer brevemente, prestou informações com toda a facilidade:
Sanderfield, George Sanderfield? O Cavalo Preto? Homem sem vergonha! Nadando em dinheiro mas um depravado! Negócios com uma bailarina? Sem dúvida, meu caro, teve entendimentos com Katrina, Katrina Samousenka. O senhor já deve ter ouvido falar nela. Grande artista! Não viu o Swan of Tuoela? Devia ter visto! Decoração minha. E a outra coisa de Debussy e Manine: La Biche au Bois? Devia ter visto. Dançava com Michael Noving. Ele também é maravilhoso, não é verdade?

E é amiga de George Sanderfield?

Sim, costuma passar os fins-de-semana com ele na sua casa de campo. Creio que ele dá festas maravilhosas.

Seria possível, meu caro, apresentar-me a Mademoiselle Samousenka?

Mas, ela já há muito tempo que aqui não está. Partiu para Paris ou para outro lado qualquer repentinamente. Sabe? Diziam que ela era uma espia bolchevista ou qualquer coisa no género. Nunca acreditei, mas sabe como é o povo para inventar estas coisas. Katrina sempre pretendeu dar a entender que era russa branca e que o pai era um grão-duque ou um príncipe. A história de sempre.

Vandel fez uma pausa e voltou ao assunto:

Agora, é como quem diz, se deseja alcançar o espírito de Betsabé encaminhe-se para as tradições semíticas. Parece que me faço compreender concluiu alegremente.

A entrevista que Hercule Poirot conseguiu de Sir George Sanderfield, não começou muito auspiciosamente.
O Cavalo Preto, como Ambrose Vandel lhe tinha chamado, era difícil de tratar. Sir George era um homem baixo e atarracado, de cabeleira preta e com uma prega de gordura no pescoço. 
Finalmente perguntou:
Bem, M. Poirot, que posso eu fazer por si? Nunca nos tínhamos encontrado antes, penso eu.

Não, nunca nos tínhamos encontrado.

Bem, de que se trata? Confesso, estou cheio de curiosidade!

Oh, é muito simples. Trata-se apenas de pedir uma informação.

O outro teve um sorriso contrafeito.

Deseja que lhe dê alguns esclarecimentos, ah? Não sabia que se interessava por finanças.

Não se trata de negócios, trata-se de uma certa senhora.

Oh, uma mulher! Sir George enterrou-se na cadeira de braços. A sua voz tomou um tom mais ligeiro.

Poirot disse:

O senhor conhece, suponho, Mademoiselle Katrina Samousenka?

Sanderfield riu-se:

Sim. É uma criatura encantadora! É pena que tenha deixado Londres.

Por que razão deixou ela Londres?

Meu caro amigo, não sei. Brigou com o empresário, creio eu. Tinha temperamento, sabe! Era uma verdadeira russa. Tenho pena de não poder auxiliá-lo mas não faço a mais pequena ideia do lugar em que ela se encontra. Não soube mais nada a respeito dela.

Havia um tom contrafeito na sua voz. Pôs-se de pé. Ao mesmo tempo Poirot disse:

Mas não é Mademoiselle Samousenka que eu estou ansioso por encontrar.

Não?

Não! Trata-se da criada desta.

A sua criada? Sanderfield estacou. Poirot prosseguiu:

Talvez o senhor se lembre dela.

Toda a frieza de Sanderfield voltou; por isso disse:
Santo Deus! Como posso eu lembrar-me? Mas, sim, lembro-me que ela tinha uma criada; por sinal não era nada boa. Posso dizer-lhe que era curiosa e gostava de espreitar. Se eu estivesse no seu lugar não daria crédito a nada do que ela me dissesse. É muito mentirosa! 
Poirot murmurou:
O senhor agora já se lembra dela muito bem! Sanderfield respondeu duramente:

Apenas uma impressão, eis tudo... Já não me lembro sequer do seu nome. Deixe-me ver: Maria ou qualquer coisa assim parecida. Não, tenho receio de não poder prestar-lhe informações úteis acerca dela... Desculpe!

Poirot respondeu com amabilidade:

Já tinha conhecimento do nome de Marie Helin. Soube-o no Thespian Teatro. E a direcção. Mas eu refiro-me, Sir George, à criada que Mademoiselle Samousenka teve antes dessa. Refiro-me a Nita Valetta.

Sanderfield estacou dizendo:

Não me lembro nada. Maria é a única de que eu tenho ideia. Uma rapariga morena de olhar duro.

A rapariga a que eu me refiro esteve na sua casa de Grasslawn em Julho passado.

Sanderfield disse com impaciência:

Bem, posso dizer-lhe que não me lembro nada. Penso que o senhor está enganado.

Marie Helin deitou um rápido olhar a Poirot. Com os seus olhos inteligentes disse num tom calmo e suave:

Mas eu lembro-me perfeitamente, senhor. Eu fui contratada por Mademoiselle na última semana de Junho. A criada antecedente tinha saído à pressa.

Ouviu dizer alguma coisa acerca do motivo por que ela se foi embora?

Ela saiu de repente, é o que toda a gente sabe. Talvez fosse doença, ou qualquer coisa parecida. A madame não disse nada.

E a sua senhora era fácil de aturar? A rapariga encolheu os ombros:
Tinha uns ares de grande dama. Chorava e ria alternadamente. Algumas vezes estava tão desanimada que não falava nem comia. Outras vezes estava muito alegre. São assim mesmo estas bailarinas. É o seu temperamento! 
E Sir George?
A rapariga olhou desconfiada. Uma expressão desagradável inundou-lhe os olhos.

Ah, Sir George Sanderfield? O senhor deseja saber alguma coisa a seu respeito? Talvez seja o que na realidade o senhor quer saber. Ah, Sir George? Posso contar-lhe algumas coisas curiosas a seu respeito.

Poirot interrompeu:

Não é necessário!

Ela estacou de boca aberta, mostrando, no olhar desapontado, um leve despeito.

Eu sempre disse que o senhor sabia alguma coisa, Alex Pavlivitch. Poirot murmurou estas palavras com a mais lisonjeira entoação. Reflectiu que este trabalho de Hércules exigia mais deslocações e mais entrevistas do que ele tinha pensado. Este simples assunto da saída de uma criada era um dos mais complicados e difíceis problemas que lhe tinham aparecido. Cada investigação, bem examinada, em nada adiantava.

Naquela tarde tinha ido ao Restaurante Samovar, em Paris, cujo proprietário, o conde Alexis Samousenka, se mostrara muito orgulhoso por saber tudo o que se passava no meio artístico de todo o mundo. Abanava a cabeça complacentemente e dizia:

Sim, sim, meu amigo. Eu sei, eu sempre soube. Pergunta-me para onde foi a pequena Samousenka, a esquisita bailarina? Ah, ela era um autêntico valor, essa pequena. E beijou a ponta dos dedos. Que fogo, que abandono! Poderia ter ido longe, poderia ter sido a primeira bailarina dos nossos dias! E então, subitamente, calou-se, para pouco depois prosseguir: Poderia muito bem ter vencido, vencido em toda a parte, e cedo! Ah, tão cedo que a esqueceram!

Onde está ela, então? perguntou Poirot.
Na Suíça! Em Vagray-les-Alpes. É para aí que vão todos aqueles que têm uma tosse seca e emagrecem cada vez mais. Pode morrer, sim, ela pode morrer. E traz consigo a fatalidade. Sim, ela morrerá. 
Poirot pigarreou para acabar com o trágico assunto:
Desejo uma informação. Pode, por acaso, lembrar-se da criada que ela tinha? Uma criada chamada Nita Valetta?

Valetta? Valetta? Eu lembro-me de ter visto uma vez uma criada, quando Katrina deixou Londres. Era uma italiana de Pisa, não era? Uma italiana que ela mandara vir de Pisa. Sim, tenho a certeza!

Poirot suspirou. Nesse caso tenho, agora, de viajar até Pisa! ]

Poirot parou no cemitério de Pisa, em frente de uma sepultura.

Sim, era ali que aquele caso terminava: um humilde monte de terra! Ali repousava a alegre criatura que tinha inflamado o coração do jovem mecânico inglês.

Era esse, talvez, o melhor remate para aquele breve romance.

Agora, a rapariga viveria sempre na memória daquele jovem que a tinha visto, naquela encantadora tarde de Junho. O embate de nacionalidades opostas, de diferentes hábitos, a desilusão, tudo tinha acabado para sempre.

Hercule Poirot abanou a cabeça com tristeza. Recordou a conversação com a família de Valetta. A mãe, com a sua larga face de camponesa: o pai, direito, com um ar pesaroso; a irmã, de lábios grossos.

Foi de repente, foi inesperadamente. Penso que há mais de quinze anos que ela sofria daquelas dores... O médico deu-nos a escolher. Disse que ela devia ser operada de urgência à apendicite. Levou-a para o hospital então, e aqui... Sim. Sim, morreu sob a acção do anestésico. Nunca mais recuperou a consciência!

A mãe soluçava murmurando:

Branca era uma rapariga muito esperta. Foi pena que tivesse morrido tão nova...

Sim, ela morreu muito nova...

Era esta a mensagem que ele teria de levar ao jovem que tão confiadamente lhe tinha pedido que o ajudasse:
Ela não é para si meu amigo, ela morreu! 
O seu inquérito tinha terminado ali onde se desenhava a silhueta da torre inclinada e as flores da Primavera ainda pálidas com a promessa de alegria e vida que estava para vir.
Era o aparecer da Primavera que o fazia sentir com tanta revolta este final veredicto? Ou era alguma coisa mais? Alguma coisa que surgia no fundo do seu cérebro palavras, uma frase, um nome? Poderia isto terminar tão singelamente, tão rapidamente?

Hercule Poirot assentou: devia dispor de um dia mais para saber todas as coisas que lhe fosse possível saber. Devia ir a Vagray-les-Alpes.
Aqui, pensou ele, é o verdadeiro fim do mundo! Estes montes de neve, estes pavilhões espalhados, abrigando cada um deles um sensível ser humano, lutando com uma insidiosa morte!

Assim, conseguiu chegar junto de Katrina Samousenka. Quando a viu ali deitada, com as faces encovadas e em cada uma delas uma vermelha roseta de febre, as mãos pálidas e descarnadas saindo da colcha, agitou-se-lhe a memória. Ele não se lembrava do nome mas tinha-a visto dançar, tinha ficado suspenso e arrebatado por aquela suprema arte que não se podia esquecer jamais. Recordou Michael Moving, o caçador saltando e dando voltas naquela majestosa e fantástica floresta que o cérebro de Ambrose Vandel tinha concebido. E recordou a graciosa corça eternamente perseguida, eternamente desejável, uma belíssima criatura dourada, com chifres na fronte e brilhantes pés de bronze. Recordava a queda final, alvejada e ferida, e Michael Noving desorientado com o corpo da corça morta nos braços.

Katrina Samousenka olhava para ele com curiosidade:

Nunca o tinha visto pessoalmente. Que deseja de mim?

Hercule Poirot inclinou-se levemente:
Em primeiro lugar, madame desejo agradecer-lhe 
a sua arte, que foi para mim, uma vez, a revelação da beleza.
Ela teve um fraco sorriso.

Mas também estou aqui por motivos de serviço. Procuro, há muito tempo, uma certa criada que teve, chamada Nita.

Nita?

Katrina estacou. O seu olhar era sobressaltado:

Que deseja saber a respeito de Nita?

Posso dizer-lhe.

Poirot, então, falou-lhe da tarde em que o carro se tinha avariado e em que Ted Williamson, amarrotando o boné entre os dedos, lhe contara a sua paixão e a sua dor. Ela ouviu-o com profunda atenção e disse quando ele terminou:

Faz ternura, não é verdade?

Poirot concordou, com um sinal de cabeça.

Sim disse ele, é uma história da Arcádia. Que pode a senhora dizer-me a respeito desta rapariga?

Eu tive uma criada, Juanita. Era muito gentil, alegre, de bom coração. Aconteceu-lhe o que acontece muitas vezes àqueles que os deuses favorecem. Morreu jovem.

Tinham sido palavras de Poirot, palavras definitivas, irrevogáveis. Agora ele ouvia-as de novo e insistia perguntando:

Ela morreu?

Sim, morreu!

Hercule Poirot calou-se por minutos, dizendo a seguir:

Ainda há uma coisa que eu não compreendo. Perguntei por esta rapariga a Sir George e ele pareceu-me assustado. Por que razão?

Uma expressão de desgosto apareceu na face da bailarina.

O senhor falou-lhe numa das minhas criadas e ele pensou que se referia a Maria, que esteve ao meu serviço depois de Juanita. Procurava aborrecê-lo sempre que ele se aproximava. Era uma rapariga odiosa. Muito curiosa, sempre a olhar para as cartas e para as gavetas.
Juanita morreu de uma operação de apendicite, em Pisa, não é verdade? 
Notou a hesitação da bailarina, antes de esta curvar a cabeça em sinal de assentimento. Sim, é verdade! Poirot perguntou imediatamente:
Há ainda uma pequena coisa: a gente da sua terra chama-lhe Branca e não Juanita.

A bailarina encolheu os ombros dizendo:

Branca ou Juanita que é que isso importa? Creio que na realidade se chama Branca, mas ela achou que o nome de Juanita era mais romântico e resolveu adoptá-lo.

Ah, a senhora pensa isso? Para mim existe outra explicação.

Qual?

Poirot inclinou a cabeça para a frente, dizendo:

A rapariga que Ted Williamson viu tinha o cabelo como ele descreve, semelhante a umas asas douradas. E o seu dedo tocou as duas ondas do cabelo brilhante da bailarina. Depois, novamente, prosseguiu:

Asas de oiro? Chifres de oiro? Se a senhora é o que aparenta qualquer pessoa pode ver em si um anjo ou um demónio. Ou são apenas os chifres doirados da corça amedrontada?

Katrina murmurou:

A corça amedrontada? E a sua voz era a voz de alguém que tinha perdido a esperança.

Poirot acrescentou:

A descrição de Ted Williamson aborreceu-me, trouxe qualquer coisa ao meu espírito que por vezes me parece ser a senhora dançando com os brilhantes pés de bronze, através da floresta. Dir-lhe-ei o que penso, mademoiselle! Penso que havia uma semana que não tinha criada, e que foi sozinha para Grasslawn, por Branca Valetta ter regressado à Itália e ainda não ter arranjado outra. Que já começava a sentir a doença que viria a atacá-la, quando os outros foram todo o dia para a excursão ao longo do rio. Bateram à porta, a senhora foi abrir e viu, poderei dizer-lhe o que viu? Viu um jovem simples como uma criança e formoso como um deus. E a senhora inventou para ele uma rapariga não Juanita, mas Incógnita
e durante algumas horas passeou com ele na Arcádia... Fez-se um silêncio. Então Katrina disse em voz baixa e rouca: 
Numa coisa, aliás, eu disse-lhe a verdade. Contei-lhe o fim da história. Nita morrerá jovem.
Eh, non! Hercule Poirot estava transtornado. Bateu com o punho na mesa. Tornou-se, de repente, prosaico, mundano, prático, dizendo:

Isso não é necessário. Não necessita de morrer. Não pode lutar pela sua vida como qualquer outra pessoa?

Ela abanou a cabeça com tristeza e desesperadamente:

Que vida é agora a minha?

Não a vida do teatro, bien entendu. Mas pense: há outra vida! Diga-me, mademoiselle, seja sincera, o seu pai é na realidade um príncipe, um grão-duque ou mesmo algum general?

Ela riu-se e respondeu:

Meu pai conduzia uma camioneta em Leninegrado!

Muito bem! E porque não há-de ser a esposa de um mecânico numa terra de província? E ter filhos tão bonitos como deuses e talvez com pés que possam um dia dançar como a senhora dançou?

Katrina susteve a respiração.

Mas essa ideia é fantástica!

Todavia disse Hercule Poirot satisfeito consigo próprio; eu creio que vai tornar-se uma realidade!

_sec+Rom:4_ IV

 O JAVALI DE ERIMANTO

Como o final do terceiro trabalho de Hercule Poirot o levou à Suíça, decidiu ele que, já que ali estava, visitaria aquela região desconhecida para ele.

Passou dois dias agradáveis em Chamonix. Esteve um ou dois dias em Montreux e depois foi até Aldematt de que vários amigos seus já lhe tinham falado. Aldematt, contudo, desagradou-lhe. Estava situada no fundo de um vale rodeado de montanhas de neve. Por isso sentia, sem razão, que lhe era difícil respirar!
Impossível ficar aqui disse Poirot para si mesmo. Nesse momento o seu olhar fixou-se no funicular. Decididamente, tenho que subir! 
O funicular observou ele subiu primeiro a Lês Avines, depois a Caurouchet e finalmente a Rochers Neiges, a dez mil pés de altitude.
Poirot não se propunha subir tão alto. Até Lês Avines seria suficiente.

Mas, ali, não contou com aquele elemento de chance que tão grande importância tem na vida. O funicular tinha começado a mover-se quando o condutor se aproximou de Poirot para lhe pedir o bilhete. Depois de ter furado o bilhete devolveu-lho, fazendo uma vénia. Ao mesmo tempo, Poirot sentiu um pequeno papel introduzido na mão juntamente com o bilhete.

As sobrancelhas de Poirot ergueram-se um pouco. Vagarosamente desdobrou o papel. Via-se que tinha sido escrito a lápis, apressadamente.

Impossível confundir-se esses bigodes. Cumprimento-o, caro colega. Se quiser pode prestar-me um grande auxílio. Tem, sem dúvida, ouvido falar acerca daquele caso Salley? Acredita-se que o assassino, Marrascaud, tem uma entrevista marcada com os membros do seu bando em Rochers Neiges. Pode ser mentira, mas podemos fiar-nos em quem nos informou. Há sempre um que atraiçoa, não é verdade? Assim, tenha os olhos abertos, meu amigo. Ponha-se em contacto com o inspector Drouet, que se encontra aqui. É importante, meu amigo, que Marrascaud seja apanhado, mas vivo. Não é um homem, é um javali selvagem, um dos mais perigosos assassinos destes tempos. Não se arrisque a falar comigo em Aldemaud, porque podia ser observado e você terá mais facilidades se pensarem que é um turista vulgar. Boa caçada. Seu velho amigo LEMENTEUIL.»
Pensativamente, Poirot acariciou o bigode. Sim, na verdade era impossível esquecer o bigode de Hercule Poirot! Que vinha a ser toda aquela história? Tinha lido, nos jornais, o caso Salley, assassínio, a sangue-frio, do conhecido parisiense apostador nas corridas de cavalos. Marrascaud era membro de uma quadrilha muito conhecida, que andava metida em assuntos de corridas de cavalos. Era suspeito por ser o autor de outros assassínios, mas desta vez a sua culpabilidade provara-se completamente. Tinha saído de França, mas toda a polícia da Europa estava alerta. 
Assim, Marrascaud dissera ter uma reunião em Rochers Neiges... Hercule Poirot abanou a cabeça vagarosamente. Estava embaraçado. Rochers Neiges era acima da linha de neve. Havia, ali, um hotel, mas comunicava com o mundo apenas por meio do funicular, parando numa estreita cadeia de rochedos sobranceira ao vale. O hotel abria em Junho, mas não era frequentado por ninguém antes de Julho ou Agosto. Era um lugar com poucas entradas e saídas e se um homem fosse apanhado ali cairia numa armadilha. Parecia um lugar escolhido para as reuniões de um bando de criminosos.
E se acaso a informação de Lementeuil fosse digna de confiança, Lementeuil devia ter razão. Hercule Poirot respeitava o comissário da Polícia Suíça; tinha-o na conta de um homem são e de confiança.

Alguma razão desconhecida tinha levado Marrascaud àquele lugar tão distante da civilização. Hercule Poirot suspirou. Esta caçada a um criminoso célebre não era o que mais lhe agradava para um período de descanso. Estar meditando numa cadeira de braços, reflectiu, era muito mais agradável que ter de apanhar um javali selvagem no cume de uma montanha.

Um javali selvagem fora o termo que Lamenteuil usara. Era certamente uma coincidência... Pensando, disse para consigo: Eis que se me depara o quarto Trabalho de Hércules: O Javali de Erimanto.

Sossegadamente, sem dar nas vistas, tomou nota dos seus companheiros de funicular.

No lugar oposto sentava-se um turista americano. Desde o modelo do fato, da gabardina e do saco, até ao seu amável interesse e à sua ingénua absorção na paisagem, sempre com o guia na mão, tudo indicava tratar-se de um americano da província que visitava a Europa pela primeira vez. Poirot pensou que dentro de poucos minutos o americano quebraria o silêncio. A expressão do seu olhar, de cão meigo e atento, não podia enganar.
No outro lado da carruagem, um homem alto, de distinta aparência, cabelo grisalho e nariz aquilino, lia um livro alemão. Tinha os dedos ágeis e fortes de um músico ou de um cirurgião. Um pouco mais longe sentavam-se três homens com o mesmo tipo. Homens com as pernas arqueadas e uma indescritível sugestão de 
estarem familiarizados com cavalos. Jogavam as cartas. Naquele momento, talvez sugerissem que o estrangeiro tomasse parte no jogo. Primeiro, o estrangeiro ganharia. Depois, a sorte virar-se-ia ao contrário.
Nada de especial acerca destes três homens. A única coisa estranha era o local onde se encontravam.

Qualquer deles podia ser visto no comboio, a caminho das corridas, ou num paquete de segunda categoria. Mas num funicular quase vazio, não!

Havia, ainda, outro ocupante da carruagem; era uma mulher. Tinha uma cara bonita, uma cara que podia expressar uma gama de emoções mas que, em vez disso, estava gelada numa estranha indiferença.

Nessa altura, como Poirot esperava, o americano começou a conversar. Segundo disse, chamava-se Schwartz. Era a sua primeira visita à Europa. Ficara verdadeiramente impressionado com o castelo de Chillon. Não pensava grande coisa a respeito de Paris de renome exagerado, tinha estado no Follies Bergères, no Louvre e em Notre-Dame e tinha notado que nenhum dos restaurantes e cafés de Paris tocaria jazz com o necessário calor. Pensava que os Campos Elísios eram um bonito lugar, e gostou das fontes, especialmente quando estavam iluminadas.

Nenhum dos passageiros saiu em Lês Avines ou no Caurouchet. Era claro que todos os ocupantes do funicular se dirigiam a Rochers Neiges.

Mr. Schwartz explicou as suas razões. Sempre desejara ver a mais alta montanha de neve. Ouvira dizer que àquela altitude era difícil cozer um ovo. Na inocente franqueza do seu coração, Mr. Schwartz esforçou-se por entabular conversa com o homem alto de cabelos grisalhos, mas este olhou-o friamente por cima das lunetas e continuou a ler o livro.

Mr. Schwartz, então, propôs à senhora morena trocarem os lugares. Ela, assim, poderia ver melhor a paisagem, explicou ele. Era duvidoso crer que a senhora entendesse o inglês. Fosse como fosse, ela apenas abanou a cabeça e encolheu-se agasalhando-se na gola de peles do casaco.

Mr. Schwartz murmurou para Poirot:
Não me parece bem ver uma senhora viajar só, 
sem ter alguém que lhe tome conta das coisas. Uma senhora necessita de muitas atenções quando viaja.
Lembrando-se de certas americanas que tinha encontrado no continente, Poirot concordou.

Mr. Schwartz suspirou. Achava a humanidade muito pouco amável. E os seus olhos diziam o mesmo. Havia algum mal em espalhar em volta um pouco de afabilidade?

Ser recebido pelo gerente de um hotel, enfarpelado numa sobrecasaca e de brilhantes sapatos de cabedal, pareceu-lhe ridículo naquele lugar fora do mundo, ou melhor, acima do mundo.

O gerente era um homem perfeito, com ares de importância. Era muito enfatuado.

Tão cedo, nesta estação!... O sistema de aquecimento ainda não está em ordem... Estas coisas levam tempo a arranjar... Naturalmente farei o que puder... Que ainda não tinha o pessoal suficiente... Estava bastante confuso com tão grande número de visitantes.

E continuou expondo tudo aquilo com profissional urbanidade. Mas pareceu a Poirot que por detrás daquela amável fachada espreitava um clarão de expectante ansiedade. Aquele homem, com todo o seu desembaraço, não estava à vontade. Estava preocupado com qualquer coisa.

O almoço foi servido numa grande sala que dava para o vale. O criado, conhecido pelo nome de Gustavo, era hábil e correcto. Andava de um lado para o outro informando a ementa, mostrando a lista dos vinhos. Os três cavaleiros sentaram-se na mesma mesa. Riam e falavam em francês, erguendo a voz.

Bom velho Joseph! E o que há acerca de Denise, mon vieux? Lembram-se daquele ordinário cavalo que nos deitou abaixo em Auteuil?

Tudo aquilo era chocante, falho de elegância e incompatível com o lugar.
A mulher bonita sentou-se só, a uma mesa do canto. Não olhava para ninguém. 
A seguir, como Poirot tivesse ido sentar-se na sala, o gerente dirigiu-se-lhe, dizendo em confidência:
O senhor não deve julgar muito mal do hotel. Estamos fora da estação. Ninguém costuma vir antes do fim de Julho. Aquela senhora, não reparou nela, talvez? Essa vem aqui todos os anos nesta época. O marido morreu, numa escalada, há três anos. Tem-lhe sido bastante devotada. Vem aqui, sempre, antes de começar a estação, para ficar mais tranquila. É uma peregrinação sagrada. Aquele senhor mais velho é o famoso Dr. Karl Lutz, de Viena. Vem aqui, segundo diz, para estar sossegado e repousar.

Isto é sossegado concordou Poirot. E, ali, aqueles senhores? E indicou os três cavaleiros. Também necessitam de repouso, não lhe parece?

O gerente encolheu os ombros. De novo lhe apareceu no olhar uma expressão de aborrecimento. Disse vagamente:

Ah, turistas, desejam sempre uma experiência nova... A altitude, este isolamento, é uma nova sensação.

Não é, pensou Poirot, uma sensação muito agradável. A altitude fazia-lhe acelerar o bater do coração.

As rimas que vira escritas numa nurserie ocorreram-lhe estupidamente ao espírito. Up above the world so high, Like a tea tray in sky (tão alto acima do mundo, semelhante a um tabuleiro de chá no céu).

Schwartz foi para a sala. Os olhos brilharam-lhe quando viu Poirot e aproximou-se logo dele.

Estive a conversar com o doutor. Fala inglês à sua maneira. É judeu, escorraçado da Áustria pelos nazis. Convenço-me cada vez mais de que aquele povo é muito estúpido. Este Dr. Lutz é um grande homem, um especialista de doenças nervosas, um psicanalista. Que raça de gente!

Os seus olhos dirigiram-se para a mulher alta que estava olhando pela janela, para as montanhas. Soube o nome dela pelo criado:
É Madame Grandier. O marido morreu quando escalava a montanha. É por isso que ela aqui vem. Há uma coisa que o senhor, que todos nós devemos fazer: Procurar distraí-la. 
Poirot disse:
Eu, no seu lugar, não me metia nisso.

Mas a amabilidade de Schwartz era infatigável. Poirot viu-o fazer várias avançadas, viu o caminho ingrato em que se tinha metido. Os dois ficaram de pé, por minutos; a sua silhueta desenhava-se contra a luz. A mulher era mais alta que Schwartz. Virou a cabeça para trás e a sua expressão era fria e hostil.

Poirot não ouviu o que ela lhe disse, mas viu Schwartz voltar para trás, com um ar desanimado.

Nada feito disse ele. E acrescentou sentenciosamente: Parece-me que se todos somos seres humanos, não há razão para nos tratarmos com menos amabilidade. Não concorda, senhor...? Ainda não sei o seu nome.

O meu nome disse Poirot é Poirot. E acrescentou: Sou negociante de sedas, em Lião.

Aqui tem o meu cartão, e se for alguma vez a Fountain Springs, asseguro-lhe que será bem recebido.

Poirot aceitou o cartão, introduziu a mão na algibeira e murmurou:

Tenho muita pena, mas neste momento não tenho comigo os meus cartões.

Naquela noite, quando foi para a cama, Poirot tornou a ler a carta de Lementeuil, voltando a colocá-la cuidadosamente dobrada dentro da pasta. Meteu-se na cama dizendo para consigo próprio:

É curioso... Admirava-me se...

Gustavo, o criado, levou a Poirot o pequeno-almoço: café e pão de rosca. E pôs-se a falar com ênfase a respeito do café:

O senhor não repare, mas nesta altitude é difícil conseguir ter o café bem quente. Infelizmente ferve muito depressa mas logo arrefece.

Poirot contestou:

Devemos aceitar com filosofia estes caprichos da natureza.

Gustavo perguntou:

O senhor é filósofo?
Dirigiu-se para a porta, mas em vez de deixar o quarto, deitou uma olhadela para fora, fechou a porta de novo e voltou para o lado da cama, dizendo: 
EM. Poirot? Eu sou Drouet, inspector da polícia.
Ah disse Poirot, já o havia suspeitado, há muito.

Drouet baixou a voz:

M. Poirot, aconteceu qualquer coisa de muito grave. Deu-se um acidente no funicular.

Poirot saltou da cama:

Um acidente? Que espécie de acidente?

Ninguém foi atingido. Foi durante a noite. Teve origem, talvez, em causas naturais, uma pequena avalanche que deitou abaixo fragmentos de rocha. Mas é possível que ali houvesse a mão do homem. Ninguém sabe. Em qualquer dos casos, o resultado é que levará muitos dias a reparar. E neste espaço de tempo ficaremos aqui encurralados. Nesta altura da estação, quando a neve ainda está tão espessa, é impossível comunicar com o vale.

Hercule Poirot disse com volubilidade:

Isso é muito interessante! O inspector concordou:

Sim, isto prova-nos que as informações do nosso comissário eram certas. Calou-se, e pouco depois, no mesmo tom de voz, acrescentou: Marrascaud tem aqui uma reunião, e fez tudo para que essa reunião não seja interrompida.

Poirot exclamou com impaciência:

Mas isso é fantástico!

Concordo! O inspector Drouet esfregou as mãos. Isto não faz sentido, não tem senso comum, mas é assim. Este Marrascaud, o senhor sabe, é uma criatura fantástica! Eu penso, para mim, que ele é doido.

Poirot disse:

Um doido e um assassino! Drouet, irritado, corroborou:

Concordo que isto não é nada divertido! E Poirot acrescentou vagarosamente:

Mas se ele tem uma reunião, aqui, nesta cadeia de rochedos, no topo do mundo e cobertos de neve, então, segue-se que o próprio Marrascaud já aqui esteve, visto que as comunicações estão cortadas.

Drouet respondeu calmamente:
Eu sei! 
Os dois homens calaram-se por minutos. Depois, Poirot perguntou:
O Dr. Lutz? Será que ele seja o Marrascaud? Drouet respondeu:

Não sou dessa opinião! Deve ser o verdadeiro Dr. Lutz. Tenho visto fotografias dele, nos jornais. Um homem distinto e muito conhecido. E aquele homem parece-se exactamente com o mesmo das fotografias.

Poirot murmurou:

Se Marrascaud for artista no disfarce pode representar com sucesso este papel.

Sim, mas terá ele essa habilidade? Nunca ouvi falar nele a esse respeito. Não tem a astúcia nem a habilidade de uma serpente. É um javali selvagem, feroz, terrível, que ataca às cegas.

Poirot, naturalmente, disse:

São todos o mesmo... Drouet concordou imediatamente:

Sim, é um fugitivo da justiça. Portanto é obrigado a disfarçar-se. De facto, deve estar, mais ou menos disfarçado.

Sabe como ele é?

O outro encolheu os ombros.

Ligeiramente apenas. As fotografias e as medidas de Bertillon devem ser-me enviadas hoje. Sei apenas que é um homem excêntrico, perto dos trinta anos, um pouco acima da estatura mediana e de tipo moreno. Não tem sinais particulares.

Poirot encolheu os ombros.

Isso pode aplicar-se a qualquer pessoa. E que pensa acerca do americano Schwartz?

Eu ia precisamente perguntar-lhe o mesmo. Falei com ele e tenho convivido muito com americanos e ingleses. À primeira vista parece ser o vulgar turista americano. Tem o passaporte em ordem. É, talvez, estranho que tivesse escolhido este ponto, mas os americanos quando viajam são originais. E que pensa o senhor?

Poirot abanou a cabeça, indeciso, e disse:
Superficialmente, aparenta ser um homem simples, ingenuamente amável. Pode ser um bandido, mas parece difícil considerá-lo perigoso. E continuou: Mas, há aqui ainda, mais três visitantes. 
O inspector mostrou-se curioso:
Sim, ainda aqui está o tipo que nós estamos vigiando. Aposto, M. Poirot, que estes três homens pertencem ao bando de Marrascaud. É gente que aposta nas corridas e quem sabe se um deles não será o próprio Marrascaud!

Poirot reflectiu e recordou aquelas três caras. Um tinha as faces redondas, as sobrancelhas arqueadas e uma barbela de gordura. Uma cara grosseira, bestial. Outro era magro e curvado, de rosto esguio e olhar duro. O terceiro era um indivíduo de face balofa e ares de dandy. Sim, um deles podia muito bem ser Marrascaud; mas, nesse caso, qual deles era? Por que razão outros dois membros do seu bando tinham subido juntos até à montanha? Podiam reunir-se num lugar menos estranho, numa estação de caminho-de-ferro, num cinema concorrido, num jardim público ou em qualquer lado em que as saídas fossem fáceis, não ali, no cimo do mundo, numa solidão coberta de neve! Aquilo era fantástico, não tinha o menor senso!

Drouet, aborrecido, disse:

Também podemos fazer uma segunda suposição. Estes homens fazem parte do bando de Marrascaud e vêm aqui encontrar-se com ele. Mas nesse caso quem é Marrascaud?

Poirot perguntou:

E o pessoal do hotel?

Não há ninguém que desperte suspeitas. Uma velha cozinheira e o marido, velho também. Já aqui estão há quinze anos, penso eu. Há, ainda, o criado do hotel, cujo lugar eu tomei.

Poirot perguntou:

O gerente sabe sem dúvida quem o senhor é?

Naturalmente! Necessitei da sua colaboração!

Não reparou que ele parece aborrecido?

Este reparo pareceu impressionar Drouet, que disse pensativamente:

Sim, isso é verdade!
Pode ser que seja apenas por susto, por se ver envolvido em assuntos com a polícia. Mas creio que pode ser mais do que isso. Não pensa que ele possa saber alguma coisa? Ocorreu-me isto, eis tudo! 
Drouet disse sombriamente:
Estou admirado!

Fez uma pausa e continuou:

Será fácil saber por ele alguma coisa?

Parece-me que será melhor respondeu Poirot não lhe dar a conhecer as nossas suspeitas e mantê-lo sob vigilância.

Drouet dirigiu-se para a porta.

Não tem nenhuma ideia, M. Poirot? Conheço a sua reputação. O senhor é bem conhecido em todo o nosso país.

Poirot respondeu perplexo:

De momento não me ocorre nenhuma sugestão. Há uma razão que não compreendo: esta reunião neste lugar.

Dinheiro disse Drouet secamente.

Ele, então, roubou e assassinou o pobre Salley?

Sim, desapareceu uma larga soma de dinheiro.

E a reunião será com o fim de fazerem a partilha! É isto que o senhor pensa?

Talvez seja uma ideia acertada! Poirot abanou a cabeça pouco satisfeito:

Sim, mas por que razão aqui? Precisamente aqui, o pior lugar para uma reunião de criminosos! Esta terra é o local ideal para um encontro com uma mulher!

Drouet deu um passo para a frente, arrebatado, e perguntou com excitação:

O senhor pensa que...?

Eu penso disse Poirot que Madame Grandier é uma bonita mulher. E penso que qualquer pessoa pode subir a esta altitude por sua causa. Isto é, se ela pudesse sugerir tal ideia.

Sabe que isso é interessante? Nunca pensei em qualquer relação que ela possa ter com o caso. Afinal, ela vem aqui há muitos anos.

Poirot insinuou:

Sim, e por isso a sua presença não pode dar origem a comentários. Talvez seja esta a razão por que Rochers Neige tenha sido o lugar escolhido?
O senhor teve uma bela ideia disse Drouet excitado. Temos que ponderar esse aspecto do caso. 
O dia passou-se sem incidentes. Afortunadamente o hotel estava bem fornecido. O gerente explicou que não havia razão para preocupações. A alimentação estava assegurada.
Hercule Poirot procurou entabular conversa com o Dr. Karl Lutz, mas teve mau acolhimento. O doutor disse claramente que era um profissional em psicologia e que não perdia tempo a discutir com amadores. E sentou-se a um canto, lendo um grande livro alemão sobre o subconsciente ao mesmo tempo que fazia anotações.

Poirot saiu e rondou em volta da cozinha. Meteu conversa com o velho Jacques, que era seguramente um desconfiado. A mulher, a cozinheira, felizmente era mais acessível. Explicou a Poirot que existia uma larga reserva de conservas mas que ela não dava nada pelas comidas em latas. Era bastante dispendiosa, e que podia alimentar? O bom Deus nunca tinha aconselhado as pessoas a viverem de latas.

A conversação encaminhou-se para o pessoal do hotel. Que no princípio de Julho costumavam chegar as criadas de quarto e os criados de fora. Mas que nas três semanas que se seguiam não haveria ninguém ou quase ninguém. Que a maior parte das pessoas só almoçava e depois ia-se embora. Ela, Jacques, e mais uma criada, poderiam encarregar-se de tudo sem dificuldade.

Poirot, então, perguntou:

Mas não estava aqui um criado, antes de Gustavo?

Sim, uma espécie de criado. Sem habilidade nem experiência, não tinha classificação.

Há quanto tempo Gustavo está a substituí-lo?

Apenas há poucos dias, cerca de uma semana! Naturalmente foi despedido. Nós não nos admirámos.

Ele não reclamou?

Ah, não, ele saiu muito calmo. Que tinha ele a esperar? Isto é um hotel de primeira classe e-temos de ter aqui pessoal competente.

Para onde foi ele? perguntou Poirot.
O senhor refere-se ao Roberto? A mulher 
encolheu os ombros. Sem dúvida que regressou ao obscuro café de onde tinha vindo.
E foi no funicular?

Ela olhou para ele com curiosidade:

Naturalmente, senhor! Que outro caminho podia tomar?

Poirot perguntou:

Alguém o viu partir?

Ambos olharam fixamente para Poirot.

Ah, então parece-lhe possível que alguém tivesse ido assistir à partida de semelhante animal? Ir alguém despedir-se dele! Cada um de nós tem mais que fazer!

Precisamente! rematou Poirot.

Afastou-se vagarosamente parando a olhar as construções. Um grande hotel presentemente apenas com uma ala a funcionar. Nas outras alas havia mais quartos fechados nos quais ninguém podia entrar...

Deu uma volta a um dos cantos do hotel e aproximou-se do quarto dos três jogadores de cartas. Viu o homem da face balofa. Este olhou para Poirot sem expressão. Apenas entreabriu os lábios deixando ver uns dentes que pareciam de cavalo. Poirot passou por ele e continuou a andar.

Viu, em frente, a graciosa figura de Madame Grandier e dirigiu-lhe a palavra.

Este acidente do funicular é muito aborrecido! Espero, madame, que isto não lhe traga inconvenientes.

É-me indiferente disse ela, numa profunda voz de contralto.

Nem sequer olhou para Poirot. E, afastando-se, entrou para o hotel por uma pequena porta lateral.
Hercule Poirot foi cedo para a cama. Pouco depois da meia-noite ainda estava acordado. Alguém remexia com uma chave na fechadura. No mesmo instante a fechadura cedeu e a porta abriu-se. Apareceram três homens, os três jogadores de cartas. Estavam, pensou Poirot, completamente embriagados. Notou que a expressão dos 
seus rostos era desvairada e maldosa. E viu o brilho de uma navalha de barba.
O homem gordo avançou dizendo com uma voz mal-humorada:

Maldito porco de detective! Bah!

Saiu-lhe dos lábios uma torrente de blasfémias. O terceiro deles avançou propondo-se defender o homem que estava na cama.

Nós podemos trinchá-lo, rapazes. Eh!, cavalinhos! Esfaquearemos monsieur detective com lealdade. Não é o primeiro, esta noite!

E avançaram operando, propositadamente... A navalha de barba brilhava... E então, elevando-se com o seu acento estranho, uma voz disse:

Suspendam!

Os homens olharam em volta. Schwartz, vestido com um garrido pijama de cores, surgiu na soleira da porta. Na mão segurava uma automática.

Suspendam, rapazes! Eu gosto de uma boa caçada. Premiu o gatilho e uma bala zumbiu perto do ouvido do homem mais alto e foi alojar-se no caixilho de madeira da janela.

Três pares de mãos se ergueram repentinamente. Schwartz disse:

Venho incomodá-lo, M. Poirot?

Poirot saltou da cama como uma flecha. Rapidamente, o outro recolheu as três brilhantes armas ofensivas e passou as mãos pelo corpo dos três homens para se assegurar de que eles não tinham mais nenhuma arma.

Agora marchar!

Havia um grande armário ao longo do corredor. Mas nenhuma janela; só o armário. Obrigou-os a entrar e fechou-os à chave. Girou em volta de Poirot, dizendo com a voz velada de emoção:

Sabe, M. Poirot, que houve pessoas em Fountain Springs que se riram de mim quando lhes disse que trazia comigo uma arma? Para onde pensa você que vai?, Perguntavam eles. Embrenhar-se na selva? Mas eu disse-lhes que isso era cá comigo. Já viu um molho de brutos tão feio?

Poirot encarou-o e respondeu:
Meu querido Schwartz, você apareceu precisamente 
no momento oportuno. Isto podia ter sido um grande drama. Tenho para consigo uma grande dívida.
Não me deve nada. Onde vamos agora? Temos de entregar estes rapazes à polícia; é o que nós devemos fazer. É um problema embaraçoso. Talvez seja melhor consultar o gerente.

Hercule Poirot disse:

Ah, o gerente! Penso que é melhor consultar o criado, o Gustavo, aliás inspector Drouet. Sim, Gustavo é realmente um detective.

Schwartz encarou Poirot:

Aqui está a razão por que aqueles fizeram isto!

Que foi que eles fizeram?

Este molho de brutos tinha-o posto a si em segundo lugar na lista. Já tinham esfaqueado o Gustavo.

Que diz?

Venha comigo! O médico está junto dele, neste momento.

O quarto de Gustavo era um pequeno quarto no topo do edifício. O Dr. Lutz, vestido num roupão, ligava o rosto ferido do homem. Virou a cabeça quando os outros dois entraram.

Ah, é o senhor, Mr. Schwartz? Um negócio sujo, este. Que carniceiros, que monstros desumanos!

Drouet estava deitado, lamentando-se num tom de voz fraca.

Está em perigo? perguntou Schwartz.

Não morrerá disto se é isso o que estão pensando. Mas não devemos falar aqui para não o excitar. Desinfectei as feridas; assim, não poderá haver risco de infecção.

Os três homens saíram juntos. Schwartz voltou-se para Poirot e perguntou:

O senhor disse que Gustavo pertencia à polícia? Poirot abanou a cabeça, em sinal de assentimento.

Mas, então, que estava ele a fazer aqui em Rochers Neiges?

Estava encarregado de prender um perigoso assassino.

Em poucas palavras Poirot explicou a situação. O Dr. Lutz disse:
Marrascaud? Eu li qualquer coisa a esse respeito 
no jornal. Gostava de encontrar esse homem. Há nele qualquer coisa de profundamente anormal! Gostava de conhecer determinadas particularidades acerca da sua infância.
Quanto a mim, gostava de saber onde ele se encontra neste momento disse Poirot.

Schwartz aproximou-se e perguntou:

Será algum daqueles que se encontram no armário?

Poirot respondeu pouco satisfeito:

É possível, mas eu, eu não tenho a certeza... Tenho uma suspeita de que...

Interrompeu-se espreitando para debaixo do tapete que era de brilhante pele curtida mas tinha profundas marcas de ferrugem castanha. E, pausadamente, elucidou:

Pegadas. Pegadas aqui marcadas com sangue e que partem da ala desabitada do hotel. Venham! Temos de ir depressa.

Os outros seguiram-no através de uma porta e ao longo de um sujo corredor. Contornaram o ângulo, sempre seguindo as marcas dos passos, até se lhes deparar uma porta entreaberta. Poirot empurrou a porta e entrou. Soltou uma estridente e horrorizada exclamação. Era um quarto de cama. A cama estava desfeita e em cima da mesa via-se um tabuleiro com comida. No meio do chão estava estendido o corpo de um homem. Era de estatura média e tinha sido atacado com selvagem e incrível ferocidade. Schwartz soltou uma vociferação abafada e voltou para trás com medo de se sentir mal.

O Dr. Lutz também gritou horrorizado.

Quem é este homem? perguntou Schwartz com voz fraca. Ninguém o conhece!

Suponho disse Poirot que era aqui conhecido como Roberto, um criado desajeitado e incompetente...

Lutz aproximou-se mais, inclinando-se para o corpo. E apontou com o dedo. Havia um papel espetado com um alfinete no peito do homem. Tinha algumas palavras rabiscadas:
Marrascaud não matará mais, nem roubará mais os seus amigos! 
Marrascaud! Então este era Marrascaud. Mas o que o trouxe a este lugar? E porque disse ele chamar-se Roberto? perguntou Schwartz.
Estava mascarado de criado. E era um mau criado!

Tão mau que ninguém ficou surpreendido quando ele se foi embora. O tipo saiu, naturalmente, para voltar para Andermatt. Mas ninguém o viu sair.

Lutz disse numa voz baixa e abafada:

Então, que pensa que sucedeu? Poirot respondeu:

Penso que temos aqui a explicação daquelas expressões de aborrecimento do rosto do gerente. Marrascaud deve ter-lhe oferecido um grande suborno para lhe permitir que se conservasse na parte desabitada do hotel... E acrescentou pensativamente: Mas o gerente não se sentia nada feliz com este estado de coisas.

E Marrascaud continuou a viver na parte desabitada do hotel sendo o gerente o único a saber?

Assim parece! Pode ser muito possível. O Dr. Lutz, então perguntou:

E porque foi ele morto? E quem o matou? Foi Schwartz quem lhe respondeu:

Isso é fácil de supor: ele veio aqui para repartir o dinheiro com o seu bando. No entanto, não procedeu assim. Veio para aqui porque pensava que era o único lugar onde poderia estar sossegado. Pensou que era o único lugar do mundo onde não seria descoberto. Mas enganou-se. Os outros foram avisados por qualquer pessoa e seguiram-no. Tocou com a ponta do sapato no corpo do homem e prosseguiu: E apanhou a sua conta como se está vendo.

Poirot, reflectindo, acrescentou:

Sim, era a espécie de reunião que nós suspeitávamos.

O Dr. Lutz disse irritado:
Estes comos e porquês podem ser muito interessantes, mas eu refiro-me à nossa actual posição. Temos aqui um homem morto. Eu tenho um homem doente a meu cargo e uma limitada reserva de medicamentos. E estamos afastados de todo o mundo! Por quanto tempo? 
Schwartz acrescentou:
E temos três assassinos fechados num armário. Isto é o que se chama uma situação interessante!

Que vamos, então, fazer? perguntou o Dr. Lutz. Poirot respondeu-lhe:

Primeiro vamos prender o gerente. Não é um criminoso, mas apenas um homem ávido de dinheiro, e um cobarde também. Pode fazer alguma coisa. O meu amigo Jacques e a mulher também podem ajudar-nos. Os nossos três bandidos podem ser colocados aqui e nós podemos mantê-los em segurança, enquanto não vier qualquer auxílio. E penso que a automática de Mr. Schwartz será eficaz para efectuarmos os planos que estamos combinando.

O Dr. Lutz, fixando-o, perguntou-lhe:

E eu? Que faço eu?

O senhor tem de fazer tudo o que lhe for possível pelo seu doente. E os restantes serão mantidos em incessante vigilância. E esperemos.

Não há mais nada que se possa fazer.

Passados três dias um grupo de homens apareceu em frente do hotel, nas primeiras horas da manhã.

Foi Hercule Poirot quem lhes abriu a porta da frente do hotel.

Seja bem-vindo, mon veux! Monsieur Lementeuil, comissário da polícia, apertou ambas as mãos de Poirot:

Ah, meus amigos, que estupendos acontecimentos, que grandes emoções por que passámos! E nós, lá em baixo, a nossa ansiedade, o nosso susto, sem sabermos de nada, receando tudo. Nem sequer a rádio, nenhum meio de comunicação! O heliógrafo foi um golpe de génio da nossa parte!

Não, não! Poirot esforçava-se por parecer modesto. Depois de tudo, quando falham os inventos do homem, recorre-se à natureza. Há, sempre, sol no céu.
O pequeno grupo entrou no hotel. Lementeuil disse: 
Não éramos esperados? O seu sorriso era um pouco cruel.
Poirot sorriu também:

Mas não acreditávamos que o funicular fosse reparado tão depressa!

Lementeuil olhou-o comovido:

Ah, este é um grande dia! Mas pensa que este é realmente Marrascaud? Venham comigo, por favor!

Subiram as escadas. Abriu-se uma porta e Schwartz apareceu em roupão. Estacou quando viu os homens.

Eu ouvi vozes explicou. Quem são e que é isto?

Hercule Poirot respondeu grandiloquentemente:

O auxílio chegou! Acompanhe-nos senhor. Este é um grande momento!

Deteve-se no outro lanço das escadas. Schwartz perguntou:

Vai ver Drouet? Como está ele, vai melhor?

O Dr. Lutz diz que ele passou melhor a noite passada.

Chegaram à porta do quarto de Drouet. Poirot precipitou-se para abri-la e anunciou:

Aqui está o nosso javali selvagem, meus senhores. Tomem-no vivo e vejam que ele não engana a guilhotina.

O homem que estava deitado na cama, com a face ligada, levantou-se. Mas os agentes da polícia seguraram-no pelos braços e não o deixaram mover-se.

Schwartz gritou excitadíssimo:

Mas este é Gustavo, o criado, o inspector Drouet.

É Gustavo, sim, mas não é Drouet. Drouet era o primeiro criado, o criado Roberto que estava preso na parte não habitada do hotel, e que Marrascaud matou na mesma noite em que eu fui atacado.

Durante o almoço Poirot faz-se explicar ao desorientado americano:
O senhor compreende, há certas coisas que nós sabemos... sabemos, em virtude da nossa profissão. 
Qualquer de nós sabe, por exemplo, a diferença que existe entre um detective e um assassino! Gustavo não era criado; suspeitei-o logo de entrada, mas também não era um polícia. Logo, na primeira vez que o vi fiquei desconfiado. Nessa tarde não bebi o café. Fui prudente. Mais tarde o homem foi ao meu quarto, fazer-me confidências. Parou e foi-se abeirar do americano.
Espreitou para os meus papéis e viu a carta que eu tinha ali deixado propositadamente para ele ver. Na manhã seguinte voltou ao meu quarto, com o café. Saudou-me pelo meu nome e procedeu com toda a segurança. Mas andava cheio de ansiedade, porque na polícia tinham dado com o seu refúgio. Sabiam onde ele estava e isto seria para ele um grande desastre. Seria caçado como um rato numa ratoeira.

Schwartz, então, disse:

Mas que condenável loucura ele ter vindo para aqui! Porque teria ele feito isso?

Não foi tão louco como parece! Necessitava urgentemente de um lugar retirado, longe de tudo, onde pudesse encontrar uma certa pessoa e onde um determinado acontecimento poderia ter lugar.

Que pessoa?

O Dr. Lutz. É também um artifício?

O Dr. Lutz é na verdade Dr. Lutz, mas não é um especialista de doenças nervosas. É um cirurgião especializado em cirurgia facial. Está pobre e está exilado da sua terra. Ofereceram-lhe uma alta quantia para se encontrar aqui com um homem e modificar-lhe o aspecto por meio de uma operação de cirurgia estética. Pode ter descoberto que o homem é um criminoso, mas nesse caso ele fechou os olhos. Realizar isso, não se arriscava ele a fazê-lo numa enfermaria, num país estrangeiro. E então, aqui, onde nesta estação do ano ninguém aparece a não ser por acaso e com um gerente de hotel facilmente subornável era o lugar ideal para realizar tal trabalho.
Mas as coisas correram-lhe mal. Marrascaud foi traído. Os três homens, os seus guarda-costas que deviam encontrar-se aqui com ele ainda não tinham chegado, mas Marrascaud tratou logo de agir. O oficial da polícia que pretendia ser um criado foi assassinado e 
Marrascaud tomou o seu lugar. O bando tratou de avariar o funicular. Na manhã seguinte Drouet foi assassinado e espetaram-lhe um papel no corpo para mostrar que era Marrascaud. Esperavam que antes das comunicações estarem restabelecidas com o resto do mundo o corpo de Drouet fosse queimado, como sendo o de Marrascaud. Mas um homem tinha de ser reduzido ao silêncio: Hercule Poirot! Foi essa a razão por que eles me atacaram. Obrigado, meu amigo! E Poirot inclinou-se graciosamente para Schwartz, que disse:
Então, o senhor é, na realidade, Hercule Poirot?

Precisamente!

E o senhor não se deixou enganar? Sabia que aquele corpo não era o de Marrascaud?

Claro que sim!

Então porque fez isso?

A face de Poirot tornou-se de repente severa:

Porque queria estar seguro de apanhar o verdadeiro Marrascaud na presença da polícia.

E murmurou baixinho:

Capturar vivo o javali selvagem de Erimanto.

_sec+Rom:5_ V

 OS ESTÁBULOS DE AUGIAS

A situação é extremamente delicada, M. Poirot. Um leve sorriso perpassou pelos lábios de Poirot e

quase que disse:

É sempre assim!

Em vez disso compôs a expressão, mostrando uma discrição extrema. Sir George Cornway prosseguiu gravemente. As palavras saíam-lhe com facilidade a posição do governo extremamente delicada, os interesses do público, a solidariedade do partido, a necessidade de apresentar uma frente unida, o poder da Imprensa, o bem-estar do País...
Tudo soava bem mas nada significava. Hercule Poirot sentia aquela dor peculiar nos queixos que se sente quando alguém tem vontade de bocejar e a boa educação não permite. Tinha sentido o mesmo, lendo os debates 
parlamentares, mas nessa ocasião não tivera necessidade de conter os bocejos.
Decidiu encher-se de paciência. Sentia, ao mesmo tempo, simpatia por Sir George Cornway. O homem, evidentemente, queria dizer-lhe qualquer coisa, mas tinha o hábito de exprimir-se com simplicidade. As palavras haviam-se tornado, para ele, um meio de obscurecer os factos e não um meio de os esclarecer. Era um mestre na arte da frase útil, isto é, da frase que soa bem ao ouvido mas que nada significa.

As palavras surgiam-lhe naturalmente. Sir George, tornou-se bastante corado e deitou um olhar desesperado ao outro homem sentado na cabeceira da mesa.

Edward Ferrier disse:

Está bem, George, eu conto-lhe.

Hercule Poirot desviou os olhos do secretário do ministro do Interior para o primeiro-ministro. Sentiu um interesse profundo por Edward Ferrier, interesse despertado por uma frase dita ao acaso por um homem de oitenta anos. O Professor Fergus Mac Leod, depois de discorrer sobre uma dificuldade química na determinação de um assassínio, deteve-se, por um momento, na política. Quando da reforma do famoso e bem amado John Hammett (agora Lorde Cornorth, seu genro) pediram a Edward Ferrier que formasse um gabinete.

O Professor Mac Leod disse:

Ferrier foi um dos meus alunos. É um homem competente!

Foi tudo o que ele disse, mas para H. Poirot aquilo representava bastante. Se Mac Leod dizia que um homem era capaz, é porque o era.
Isto coincidia, na verdade, com a convicção do público: Edward Ferrier era considerado competente; só isso, mas não brilhante-nem eloquente ou um especial orador; era um homem profundamente capaz, um homem profundamente sabedor. Um homem educado na tradição. Um homem que tinha casado com a filha de John Hammett que tinha sido o braço direito de John Hammett um homem a quem podia ser confiado o encargo do governo do país, mantendo as mesmas tradições de John Hammett. Porque John Hammett era particularmente estimado pelo povo e pela Imprensa de Inglaterra. Representava 
todas as qualidades que são caras aos ingleses. O povo dizia dele: Toda a gente sente que Hammett é honesto. Contavam-se anedotas acerca da simplicidade da sua vida doméstica, da sua paixão pela jardinagem. Correspondente ao cachimbo de Baldwin e ao guarda-chuva de Chamberlain, havia o impermeável de Hammett. Usava-o sempre como um ornamento. Permanecia como o símbolo do clima inglês, da prudência da raça inglesa, do seu amor pelas velhas tradições. Contudo, à firme maneira inglesa, John Hammett era um orador. Falava devagar, pronunciando com facilidade, apresentando aqueles quadros simples e sentimentais que profundamente impressionam o coração inglês. Os estrangeiros muitas vezes criticavam-no como sendo hipócrita e insuportavelmente nobre. Hammett não se importava de maneira alguma em ser nobre; era-o de uma maneira desportiva e agarotada.
Era um homem de aparência distinta. Alto, aloirado, de olhos azuis. Sua mãe era dinamarquesa e ele mesmo tinha sido durante muito tempo Lorde do Almirantado, o que lhe valeu a alcunha de O Viking.

Quando, porém, foi obrigado a retirar-se por falta de saúde, sentiu um profundo mal-estar:

Quem é que lhe sucederia? O brilhante Lorde Charles Delafield? (Brilhante de mais, mas a Inglaterra não precisa de brilho.) Evan Whitter? (Inteligente, mas talvez pouco escrupuloso.) John Potter? (Aquela espécie de homem que se julga um ditador, mas nós não queremos ditadores.) Suspirou-se aliviado quando o sossegado Edward Ferrier assumiu a chefia. Edward Ferrier estava bem. Tinha sido treinado pelo velho e tinha casado com a filha do velho. Ferrier saberia o que havia de fazer.

Hercule Poirot estudou aquele homem de feições calmas e voz baixa, agradável. Edward Ferrier dizia:

Talvez M. Poirot conheça aquele periódico semanal, o X-RayNews!

Por alto disse Poirot, corando ligeiramente.
Então sabe, mais ou menos, do que é que ele trata disse o primeiro-ministro. Parágrafos curtos aludindo a pequenas histórias secretas! Algumas verdadeiras, 
outras insignificantes, mas todas... Calou-se e depois disse com a voz um pouco alterada:
Ocasionalmente, mais alguma coisa?

H. Poirot não respondeu. E Ferrier continuou dizendo:

Há duas semanas que se vêm fazendo alusões a um grande escândalo que está para rebentar, envolvendo pessoas da mais alta categoria no meio político. Sensacionais revelações de corrupção...

Poirot disse, encolhendo os ombros:

Uma partida vulgar! Quando as revelações são feitas usualmente desapontam muitíssimo os curiosos.

Ferrier replicou:

Estas não desapontarão.

Então de que revelações se trata?

Ferrier fez uma pausa e depois começou a falar. Cuidadosamente, metodicamente, contou a história.

Não era uma história edificante. Acusação de vergonhosa chicana, de escamoteação e desfalque dos dinheiros do partido. As acusações eram contra o último primeiro-ministro, John Hammett. Apresentavam-no como um patife desonesto que se aproveitara da posição para se enriquecer.

A voz clara do primeiro-ministro calou-se finalmente. O secretário explodiu:

É monstruoso, monstruoso! O homem que edita estas porcarias devia ser fuzilado!

Poirot perguntou:

E essas assim chamadas revelações vão ser publicadas no X-RayNews?

Vão!

Que medidas tenciona tomar a esse respeito?

Elas constituem um particular ataque contra Hammett. Espera-se que ele leve o jornal aos tribunais, por difamação.

Fará isso?

Não! Ferrier disse:
Porque isso seria muito do agrado do X-Ray News por causa da publicidade que isto lhe -traria. A defesa deles resumir-se-ia a comentários honestos e o que tinham publicado seria verdade. Esse processo seria exaustivo! 
Mesmo que o processo fosse contra eles, os estragos seriam pesados!
Ferrier acrescentou vagarosamente:

Talvez o caso não fosse contra eles.

Porquê?

Sir George respondeu:

Eu realmente acho...

Mas Sir Edward interrompeu-o:

Porque o que eles tencionam publicar é a verdade. Sir George soltou um irritado queixume, ultrajado

por esta franqueza tão pouco parlamentar. E gritou:

Edward, meu querido camarada, não te admitimos, seguramente...

A aparência de um sorriso passou pela face cansada de Ferrier, que disse:

Infelizmente, George, há ocasiões em que a verdade pura tem de- ser contada e esta é uma delas.

Sir George exclamou:

Compreende, M. Poirot, que tudo isto é estritamente confidencial. Nem uma palavra a este respeito deve ser divulgada.

Ferrier interrompeu-o, dizendo:

M. Poirot, entende. O que ele não pode entender é isto: todo o futuro do Partido Popular está comprometido. John Hammett, M. Poirot, representava o partido do povo. Manteve-se, porque ele representa o povo de Inglaterra. Manteve-se pelo que ele representava para o povo inglês: Decência e Honestidade! Ninguém nos considerou brilhantes. Temos tropeçado e lutado com dificuldades. Mas temo-nos mantido pela tradição de cada um fazer o melhor que é possível. Temo-nos conservado também por sermos fundamentalmente honestos. O nosso desastre é este: o homem que era a nossa figura principal, o honesto Homem do Povo, saiu um dos mais pervertidos tipos da nossa geração.

Sir George soltou outro gemido. Poirot, então perguntou:

O senhor não sabia nada a respeito disto?

Outra vez uma amostra de sorriso surgiu no seu rosto triste. E Ferrier disse:
Pode não acreditar, M. Poirot, mas eu, como todas as outras pessoas, fui completamente enganado. 
Nunca tinha compreendido a curiosa atitude de reserva de minha mulher para com o pai. Compreendo agora. Ela conhecia o seu verdadeiro carácter. Suspendeu-se e, depois, continuou:
Quando a verdade começou a vir à luz eu fiquei horrorizado, incrédulo. Insistimos com o meu sogro para que se retirasse com a desculpa da sua precária saúde. E começámos a trabalhar para limpar o lodaçal... Como direi?

Sir George gemeu uma vez mais:

Os Estábulos de Augias! Poirot estremeceu. E Ferrier disse:

Confesso que me assusta esta tarefa verdadeiramente hercúlea para nós. Uma vez os factos tornados públicos pode levantar-se uma onda de revolta em toda a nação. O governo pode cair. Pode haver uma eleição geral com todas as possibilidades de Everhard e o seu partido voltarem para o poder. Conhece a política de Everhard?

Sir George murmurou por entre os dentes:

Um revolucionário, um verdadeiro revolucionário! Ferrier acrescentou gravemente:

Everhard tem habilidade, mas é negligente, conflituoso e desprovido de tacto. Os seus adeptos são inaptos e excitantes. Isto pode, praticamente, vir a ser a Ditadura.

Hercule Poirot abanou a cabeça. Sir George murmurou:

Se tudo isto pudesse ser abafado... Vagarosamente, o primeiro-ministro abanou a cabeça. Era um movimento de derrota.

Não acredita que isso possa ser abafado? perguntou Poirot.

Fui procurá-lo, M. Poirot disse Ferrier, como a última esperança. Na minha opinião este assunto é demasiado importante; muitas pessoas estão já inteiradas dele para que possa ser cancelado com êxito.
«Os dois únicos meios que se apresentam para abafar este escândalo, que são o emprego da força ou o suborno, não estou seguro de que dêem resultado. O secretário do ministro compara a nossa tarefa com a limpeza dos Estábulos de Augias. É necessária a vigilância da corrente 
de um rio, o concurso das grandes forças da natureza, nada menos, de facto, que um milagre.»
Necessita, na verdade, de um Hércules disse Poirot, abanando a cabeça com uma expressão de deleite. E acrescentou: Lembre-se de que o meu nome é Hercule!

Poderá o senhor fazer milagres, M. Poirot? perguntou Ferrier.

Não foi para isso que me procuraram? Por pensar que eu posso fazer milagres?...

Isso é verdade... Imaginei que, se há salvação possível, ela só pode vir de alguma fantástica e sobrenatural sugestão. M. Poirot poderá calcular a situação? John Hammett foi um patife. A lenda de Hammett deve explodir. Pode alguém construir uma boa casa sobre maus alicerces? Eu não sei! Mas sei que quero tentar. Sorriu com subtil amargura. Os políticos desejam conservar-se no seu posto. É sempre assim!

Poirot levantou-se dizendo:

Monsieur, a minha experiência na polícia não me permitiu ter uma ideia muito lisongeira a respeito dos políticos. Se John Hammett estivesse no seu posto não levantaria um dedo, nem sequer o dedo mínimo. Eu, se sei alguma coisa a respeito disso, foi-me dito por um homem que é realmente grande, um dos maiores cientistas e cérebros dos nossos dias. Sei que o senhor é um homem são. Farei tudo o que puder. Inclinou-se e deixou a sala.

Sir George explodiu:

Bem! Danado homem este! Mas Edward Ferrier, ainda sorrindo, acrescentou:

Foi um cumprimento! Quando descia a escada, Poirot foi abordado por uma senhora alta, de cabelo loiro, que lhe pediu:

Por favor, venha à minha sala, M. Poirot.

Poirot inclinou-se e acompanhou-a.
A senhora fechou a porta, indicou-lhe uma cadeira e sentou-se no lado oposto, dizendo calmamente: 
O senhor acaba de estar com meu marido que lhe falou a respeito do meu pai.
Poirot olhou para ela com atenção. Era uma mulher alta, ainda bonita, mostrando inteligência e carácter. Mrs. Ferrier era uma figura muito conhecida. Como esposa de um primeiro-ministro era, naturalmente, uma pessoa de destaque. Como filha de seu pai, a sua popularidade era ainda maior. Dagmar Ferrier representava o ideal popular de uma senhora inglesa. Era uma esposa devotada e uma mãe extremosa e partilhava com o marido do amor pela vida do campo. Interessava-se por todos os aspectos da vida pública que fazem parte das actividades femininas. Vestia bem mas sem pormenores exagerados. Dedicava grande parte do tempo a obras de caridade e tinha fundado uma organização de auxílio às mulheres dos desempregados. Toda a nação tinha os olhos postos nela e era considerada como um dos mais valiosos esteios do partido.

Poirot disse:

Deve estar terrivelmente preocupada, madame!

Oh, nem o senhor calcula quanto estou preocupada. Há muitos anos que receava qualquer coisa.

Não tem nenhuma ideia do que se possa fazer?

Não, não tenho nenhuma ideia! Apenas soube que meu pai não era aquilo que todos supunham. Desde criança que penso que ele era aquilo a que se chama um embusteiro.

Poirot disse com calma:

Tem alguns inimigos, madame? Ela olhou para ele surpreendida.

Inimigos? Penso que não!

E Poirot afirmou convictamente:

Eu... creio que os tem! E continuou:Tem coragem, madame? Há uma grande campanha em movimento contra seu marido e contra a senhora. Deve preparar-se para se defender por si própria.

Por mim não me importa, é somente por Edward que me apoquento!
Um inclui o outro. Lembre-se, madame, que é a esposa de César disse Poirot. 
E viu-a perder a cor. Inclinou-se para a frente e perguntou:
Que pretende dizer-me?

Percy Perry, o editor do X-RayNews, estava sentado por detrás da secretária, fumando. Era um homem baixo com cara de doninha. Com uma voz melíflua, untuosa, dizia:

Damos-lhe a porcaria, vão ver o tiro esplêndido. O seu principal subordinado, um jovem magro e de

óculos, perguntou pouco à vontade:

O senhor não está nervoso? Não espera uma luta forte? Não deles. Eles não têm garra. Nem lhes daria nenhum proveito. Nem mesmo da maneira como os controlámos neste país, no continente e na América!

Acha que eles farão alguma coisa?

Hão-de mandar alguém com falinhas mansas!

A campainha do telefone tocou e ele levantou o auscultador:

Quem? Ele? Mande-o entrar!

Perry pousou o auscultador e sorriu-se:

Eles chamaram o belga para fazer o serviço. Quer saber se jogámos a bola.

Hercule Poirot entrou. Vinha impecavelmente vestido e trazia uma camélia na lapela. Percy Perry disse-lhe, ao vê-lo:

Muito prazer em vê-lo, M. Poirot. Vai até às corridas de Ascot, não?

Sinto-me lisonjeado, e ainda mais: importante disse Poirot. O seu olhar fixou a face do editor.

Perry, então, perguntou friamente:

Que deseja de mim?

Poirot inclinou-se para a frente, bateu-lhe no joelho e com um sorriso aberto disse:

Chantagem.

Que diabo quer você dizer com isso?
Ouvi dizer a uma avezinha que tem havido ocasiões em que você esteve para publicar coisas muito desagradáveis no seu jornal. Consta-me que há certos 
aumentos agradáveis na sua conta do banco para que essas coisas desagradáveis não cheguem a ser publicadas. Poirot recostou-se abanando a cabeça satisfeito.
Sabe que o que está sugerindo significa falso testemunho para prejudicar a reputação de uma pessoa?

Poirot sorriu confidencialmente:

Tenho a certeza de que não leva a mal.

Levo a mal, sim senhor! E no que respeita a chantagem não há prova de jamais ter feito chantagem com alguém.

Não, não estou certo disso. Você compreendeu-me mal. Eu não o estava ameaçando, estava apenas a guiá-lo a uma simples pergunta: quanto é?

Não sei de que está a falar disse Percy Perry.

Um assunto de importância nacional, Mr. Perry. Este e o seu secretário trocaram um olhar significativo. Após uma breve pausa, Percy disse:

Eu sou um aposentado, M. Poirot. Desejo apenas uma política limpa. Oponho-me à corrupção. Sabe qual é o estado da política neste país? Nem mais nem menos como os Estábulos de Augias.

Tiens disse Poirot você também usa a mesma frase, a mesma expressão!

E o que é preciso continuou o editor para limpar esses estábulos é a inundação purificadora da opinião pública.

Poirot levantou-se e disse:

Aplaudo os seus sentimentos! É pena que não tenha falta de dinheiro.

Percy, vendo-o erguer-se, disse apressadamente:

Espere um segundo. Eu não disse isso exactamente...

Mas Poirot já tinha desaparecido.

Dashwood, o alegre jovem do pessoal do Branch, deu uma amigável palmada nas costas de Poirot:

Isto é lodo, só lodo meu amigo!
Não sabia que estava a par das coisas de Percy Perry. 
Aquele danado vampiro! É uma nódoa na nossa profissão. Todos estamos dispostos a aniquilá-lo, se pudermos.
Sucede que estou empenhado neste momento em limpar um escândalo político.

Limpar os Estábulos de Augias!disse Dashwood. Mas isso é demasiado para você, amigo. Apenas espero que isso possa divertir o Times e lavar, de caminho, as Casas do Parlamento.

Você é cínico disse H. Poirot.

Eu conheço o mundo, eis tudo!

Você disse Poirot é justamente o homem que eu procuro. Tem óptima disposição, é bom desportista e aprecia tudo o que é fora do vulgar. E concorda com tudo!

Parou por um instante e, depois, acrescentou:

Tenho um pequeno programa para executar. Se as minhas suposições não estão erradas, há aqui uma sensacional conspiração a desmascarar. Isto, meu amigo, será um golpe para o seu jornal.

Pode ser disse Dashwood alegremente.

Pode envolver uma grosseira conspiração contra uma mulher.

Ainda melhor. O assunto sexo é sempre bem sucedido.

Então, sente-se e preste-me atenção.

O povo murmura... Desde Goose a Frealhers e Little Wimplingto.

Bem, eu acredito. John Hammett foi sempre um homem honesto! Nada pior que estas intrigas políticas.

É o que dizem de todos os tratantes antes de essas intrigas serem descobertas.

Dizem que ele se abotoou com aquele negócio da Palestina Oil. É o que se chama um grande espertalhão!

Fala-se em muitos negócios escuros. Cada um deles o mais sujo possível.
Oh! Você não se convence que Edward tenha feito isso. É um dos da velha escola. 
Sim, mas também não acredito que John Hammett seja um homem menos sério. Não posso acreditar no que dizem todos esses jornais.
A mulher de Ferrier era filha dele. Já ouviu o que se diz a respeito dela?

Atribuem-lhe coisas não menos graves que as do X-Ray News. Neste género:

A mulher de César? Chegou-nos aos ouvidos que uma certa dama altamente colocada na política foi vista no outro dia em lugares muito estranhos acompanhada por o seu gigolô. Oh, Dagmar, Dagmar, como podes ser tão estúpida? Uma voz do povo então disse: Mrs. Ferrier não é dessa qualidade. Isso é uma calúnia indecente. E outra voz diz: Não podemos contar com as mulheres. Nenhuma delas se aproveita.

O povo fala.

Mas, querida, eu acredito que isso seja absolutamente verdade. Isto soube-se por Paul e a este foi-lhe contado por Anddy. Ela é completamente depravada.

Mas portou-se sempre correctamente na abertura dos bazares.

Não passava de disfarce, minha querida. Ela é uma ninfomaníaca. Isto vem tudo no X-Ray News. Verdade ou não, pode ler-se nas entrelinhas.

Não sei como eles descobriram essas coisas.

O que pensa de todo este escândalo político? Dizem que o pai desviava os dinheiros do partido.

O povo fala.

Eu não quero pensar nisto e isto é um facto, Mrs. Rogers. Penso e sempre pensei que Mrs. Ferrier era, na realidade, uma mulher irrepreensível.

. E convence-se de que todas essas coisas terríveis são verdadeiras?
Como estou dizendo, eu nem quero pensar uma 
coisa semelhante a respeito dela. Porque ela abriu um bazar em Pelchester, no passado mês de Junho. Eu estava tão próxima dela como estou deste sofá. E ela tem um sorriso muito agradável.
Sim, mas o que eu lhe digo é que não há fumo sem lume.

Sem dúvida, isso é verdade! Oh, minha querida, isto quer dizer que não podemos acreditar em ninguém.

Edward Ferrier, pálido e abatido, disse para Poirot: Vou pôr uma acção contra tão vil calúnia.

Não concordo com isso disse Poirot.

Mas temos de acabar com estas danadas mentiras.

Está certo de que são mentiras?

Claro que sim!

Que diz a isto a sua esposa?

Por momentos Ferrier olhou surpreendido.

Diz que é melhor não fazer caso... Mas eu não posso proceder assim. Todas as pessoas falam.

Sim, na verdade andam todos a falar nisso! corroborou Poirot.

Então começaram a aparecer pequenas notícias soltas nos jornais. Mrs. Ferrier teve uma ligeira crise de nervos. Foi convalescer para a Escócia. Conjecturas, boatos e informações positivas de que Mrs. Ferrier não estava na Escócia, nunca tinha estado na Escócia, começaram a circular. Histórias escandalosas, histórias segundo as quais Mrs. Ferrier realmente era...

E outra vez o povo falou.

Digo-lhe que Anddy a viu num lugar suspeito! Estava embriagada ou tinha tomado qualquer droga. Estava com um gigolô argentino Ramon. Fique sabendo.
Mais ainda: que Mrs. Ferrier fugira com um bailarino argentino. Tinha sido vista em Paris sob a acção de qualquer droga. Havia muitos anos que ela tomava estupefacientes. Bebia como uma esponja. 
Lentamente, o espírito severo da Inglaterra, ao princípio incrédulo, começou a hostilizar Mrs. Ferrier. Parecia que neste crescente rumor alguma coisa devia existir. Aquela espécie de mulher não devia ser a esposa de um primeiro-ministro. Uma Jezabel é o que ela era. Sim, nada menos que uma Jezabel.
E então vieram os testemunhos da máquina fotográfica: Mrs. Ferrier, num clube nocturno de Paris, recostada, com os braços familiarmente passados sobre os ombros de um rapaz moreno, de pele cor de azeitona e vicioso aspecto. Mas havia mais. Havia outras fotografias que a mostravam seminua, numa praia, com a cabeça recostada nos ombros do aventureiro. E por baixo ostentando, com destaque, legendas deste género:

Mrs. Ferrier tem umas boas férias...

Dois dias mais tarde uma acção por difamação foi posta contra o X-Ray News.

A audiência foi aberta por Sir Mortimer Inglewood, K. C. Ele próprio estava indignado. Mrs. Ferrier era vítima de uma infame conspiração. Uma conspiração que merecia ser comparada a The Queen’s Necklace. Uma conspiração familiar aos leitores de Alexandre Dumas. Aquela conspiração tinha sido congeminada para rebaixar Maria Antonieta aos olhos da populaça. E esta tinha também sido congeminada para desacreditar uma nobre e virtuosa senhora, que no país desempenhava o papel de esposa de César. Mortimer atacou os fascistas e os comunistas, os quais pensavam abalar a Democracia com as mais grosseiras maquinações. E, então, começou a chamada das testemunhas.

A primeira foi o bispo de Nortúmbria.

O Dr. Henderson, bispo de Nortúmbria, era uma das figuras de maior destaque da Igreja Inglesa, um homem de grande santidade e integridade de carácter. Era desempoeirado, tolerante e um distinto pregador. Era amado e reverenciado por todos os que o conheciam.
Encaminhou-se para o lugar e jurou que entre as datas mencionadas Mrs. Ferrier tinha estado no Palácio com 
ele e com a esposa. Pelas suas actividades e boas obras tinha-lhe sido recomendada como um perfeito auxiliar. A sua visita tinha-se conservado em segredo para evitar alguma maçada da Imprensa.
Ao bispo seguiu-se um médico de grande nomeada que afirmou ter ordenado a Mrs. Ferrier, um completo repouso e nada de preocupações.

Um funcionário ao serviço do bispo declarou que, com efeito, tinha atendido Mrs. Ferrier no palácio.

A testemunha que se seguiu chamava-se Thelma Anderson. Um estremecimento agitou o tribunal quando ela se dirigiu para o lugar reservado às testemunhas. Todos notaram a sua extrema semelhança com Mrs. Ferrier.

O seu nome é Thelma Anderson?

Sim!

A senhora é dinamarquesa?

Sim! Tenho a minha casa em Copenhaga!

E anteriormente trabalhou aqui num cabaret?

Assim é!

Diga-nos sem rodeios o que sucedeu no dia 18 de Março passado.

Um senhor encaminhou-se para a minha mesa, um senhor inglês. Disse-me que trabalhava num jornal inglês, o X-Ray News.

Tem a certeza de que ele disse X-RayNews?

Sim, tenho a certeza porque primeiro até pensei tratar-se de uma revista de medicina. Mas não, parece que não é. Então, ele disse-me que estava aqui uma artista de cinema que desejava encontrar uma figurante e que eu era precisamente o tipo. Vou poucas vezes ao cinema e não conhecia o nome que ele nomeou. E contou-me que ela, a tal actriz, tinha grande fama. Que não se sentia bem e que procurava uma pessoa que a substituísse nos lugares públicos e que por isso me pagaria bastante dinheiro.

Que importância lhe ofereceu esse homem?

Quinhentas libras em dinheiro inglês. A princípio não acreditei, pensei tratar-se de alguma fraude. Mas ele entregou-me, logo ali, metade do dinheiro.
E a história continuava no mesmo tom. Ela fora a Paris para fornecer-se de vestidos elegantes e voltara 
acompanhada por uma «escolta». Um belo argentino, muito respeitador, muito bem educado. Era claro que a mulher se tinha divertido. Voara sobre Londres e frequentara aqui algumas boites com o seu argentino de pele cor de azeitona. Fora fotografada em Paris com ele. Alguns dos lugares onde esteve com ele não eram na verdade (e ela concordou) muito recomendáveis. E algumas das fotografias tiradas também não eram muito próprias. Mas estas coisas, segundo lhe tinham dito, eram necessárias para a publicidade. O próprio Sr. Ramon tinha sido muito respeitador.
Em resposta ao interrogatório, a dinamarquesa declarou que o nome de Mrs. Ferrier nunca fora pronunciado e nunca lhe passou pela ideia ligarem a isto o nome dessa senhora. Ela não tinha praticado nenhum mal. Identificou certas fotografias que lhe mostraram com as que lhe tinham sido tiradas em Paris e na Riviera.

Havia uma nota de absoluta honestidade em tudo o que Thelma dizia. Era bastante simpática mas muito estúpida. A sua segurança em tudo aquilo provinha do facto que ela conhecia o assunto, era concludente para todos.

A defesa não foi convincente. Desconfiavam de que tivesse havido negócios com Thelma Anderson. As fotografias foram trazidas para o tribunal de Londres e acreditava-se que eram autênticas. Mas o remate do discurso de Mortimer fez crescer o entusiasmo. Descreveu todas estas coisas como uma grosseira conspiração política para desacreditar o primeiro-ministro e a esposa. Então, toda a simpatia, se estendeu sobre a infortunada Mrs. Ferrier. O veredicto foi lido no meio de cenas inesquecíveis. O casal difamado foi considerado irrepreensível. Mrs. Ferrier, o marido e o pai saíram do tribunal saudados por uma delirante multidão.

Edward Ferrier apertou com calor a mão de Poirot, dizendo:
Agradeço-lhe, M. Poirot, agradeço-lhe milhares de vezes. Bem, isto acabou com o X-RayNews, um grosseiro jornaleco! Estão completamente arrasados. Servem-se 
dele para cozinhar estas nojentas conspirações. Até contra Dagmar, a mais amável criatura do mundo. Agradeço a Deus o facto de o senhor ter podido manejar todas estas coisas de maneira a conseguir que os malvados fossem deitados por terra... Como lhe surgiu a ideia de que eles podiam ter usado uma double?
Não foi ideia nova! Foi empregada com êxito no caso de Jeanne de la Motte, quando encarnou Maria Antonieta.

Eu sei. Tenho de reler The Queen’s Necklace. Mas como encontrou, agora, a mulher que eles empregaram?

Procurei-a na Dinamarca e encontrei-a.

Porquê na Dinamarca? Porque a avó de Mrs. Ferrier era dinamarquesa e ela própria tem esse tipo. E há ainda, outras razões.

A semelhança é chocante. Que diabólica ideia! Poirot sorriu mas nada disse.

Eu pensei isto!...

Edward Ferrier olhou para ele:

Não compreendo. Que quer dizer?

Temos de recuar até à velha história. Desde The Queen’s Necklace até à limpeza dos Estábulos de Augias. Hércules empregou um rio, que é uma das grandes forças da natureza. Modernizando a história: que é a grande força da natureza? O sexo, não é verdade? É o assunto sexo que engendra histórias, que cria novidades. Demos ao povo um escândalo relacionado com o sexo e isso desperta mais interesse que todas as fraudes e chicanas da política. Parou, e depois continuou:

Et bien, essa foi a minha tarefa. Primeiro pôr as minhas próprias mãos na lama como fez Hércules para erguer um dique que pudesse desviar o curso do rio. Um jornalista meu amigo auxiliou-me. Pesquisou na Dinamarca até que encontrou uma pessoa que pudesse encarnar a pessoa que se desejava. Casualmente aproximou-a do X-Ray News esperando que ela pudesse produzir o efeito necessário. Assim foi!
«E, assim, que sucedeu? Lodo, uma grande quantidade de lodo! A mulher de César foi enlameada com ele. Muito mais interessante para todos que os escândalos políticos. E o resultado foi a reabilitação. A reacção! A virtude 
vingada! A mulher pura reabilitada! Uma grande corrente de Romance e Sentimento limpando os Estábulos de Augias.
«Se todos os jornais do país publicassem, agora, notícias dos desfalques de John Hammett ninguém os acreditaria. E podemos deitar abaixo outra conspiração política de descrédito para o governo.»

Edward Ferrier soltou um fundo suspiro. No primeiro momento Poirot esteve perto de ser fisicamente assaltado como nunca o tinha sido:

Minha mulher! O senhor atreveu-se a usar dela... Felizmente que Mrs. Ferrier entrou na sala naquele momento.

Dagmar, tinhas conhecimento do assunto?

Ela sorriu com um gentil e maternal sorriso de devotada esposa.

Nunca me disseste nada!

Mas, Edward, tu não terias consentido que M. Poirot fizesse isto.

É claro que não.

Pois foi isso que nós pensámos.

Nós?

Eu e M. Poirot.

Sorriu para Hercule Poirot e para o marido, acrescentando:

Tive umas boas férias e excelente repouso na companhia do meu querido bispo. Sinto-me, agora, cheia de energia. Querem que vá baptizar o novo navio, em Liverpul, no próximo mês. Penso que teria grande popularidade fazendo-o!

_sec+Rom:6_ VI

AS AVES DO ESTINFALO
Harold Waring foi o primeiro a vê-las regressar do lago. Estava sentado no hotel, no outro lado do terraço. O dia estava bonito e o lago muito azul brilhava sob o sol. Harold, fumando cachimbo, pensava que o mundo é um lugar bastante agradável. As suas preocupações políticas caminhavam bem. Uma secretária com a idade de 
trinta anos era uma coisa prudente. Tinham-lhe contado que o primeiro-ministro dissera a alguém:O jovem Waring irá longe. Harold seria, muito naturalmente, eleito. Era novo, tinha boa aparência, uma boa situação e possuía aquilo que se chama senso prático.
Tinha resolvido gozar umas férias em Hersoslavakia, a fim de estar, em forma para lutar e também para descansar. O hotel de Lake Stempka, ainda que pequeno, era confortável e pouco frequentado. A maioria dos hóspedes compunha-se de estrangeiros. Os únicos ingleses eram uma senhora de idade e a filha casada, Mrs. Clayton. Harold gostava de ambas. Elsie Clayton era bonita, embora um tanto antiquada. Era gentil e um pouco acanhada. Mrs. Rice era o que se chama uma mulher de carácter. Alta, com uma voz profunda e de maneiras dominadoras, tinha um belo senso de humor e era uma boa companhia. Estava muito ligada à filha.

Harold passou algumas horas agradáveis na companhia da mãe e da filha, mas elas não procuravam monopolizá-lo e as relações mantinham-se fáceis e agradáveis entre eles. Havia mais outros hóspedes no hotel mas Harold não dava por eles. De uma maneira geral eram corredores ou membros de um clube de automóveis. Apenas ficavam uma ou duas noites para, depois, se irem embora. Até àquela tarde Harold não tinha visto mais ninguém.

Elas vinham do lago, caminhando vagarosamente. Sucedeu que no momento preciso em que Harold deu por elas uma nuvem encobriu o Sol. Sentiu um pequeno arrepio. Demoradamente, então, fixou-as. Na verdade havia qualquer coisa de estranho naquelas duas mulheres. Ambas tinham um nariz aquilino; pareciam aves e os seus rostos, que eram curiosamente semelhantes, tinham uma expressão parada.

Harold pensou para consigo: parecem aves! E acrescentou: aves de mau augúrio.
As mulheres chegaram ao terraço e passaram junto dele. Não eram novas; talvez andassem pelos quarenta ou cinquenta anos e a semelhança entre ambas era tão nítida que aparentemente pareciam ser irmãs. O olhar não tinha expressão. Quando passaram junto de Harold fixaram-no por um instante com um olhar curioso, investigador, 
quase inumano. A impressão que Harold tinha da sua perversidade tornou-se mais forte. Reparou nas mãos de uma delas: uma mão comprida, semelhante a garras... Apesar de o sol ter voltado, arrepiou-se de novo e pensou: Horríveis criaturas, parecem aves de rapina!...
Afastou tais pensamentos com a chegada de Mrs. Rice. Levantou-se e foi buscar uma cadeira. Com uma palavra de agradecimento, a senhora sentou-se e, segundo o costume, começou a tricotar vigorosamente.

Harold perguntou-lhe, então:

Viu aquelas duas senhoras que acabaram de entrar no hotel?

Metidas numas capas? Sim, passei por elas.

Extraordinárias criaturas, não lhe parece?

Bem! Na verdade são um pouco estranhas! Chegaram ontem, julgo eu. São muito parecidas, devem ser gémeas.

Harold, pouco depois, disse:

Posso estar a fantasiar, mas sinto nitidamente que existe nelas qualquer coisa de funesto.

É curioso! Fixei-as melhor e concordo consigo! Poderemos saber pelo porteiro quem elas são.

Não são inglesas, penso eu.

Oh, não!

Mrs. Rice fixou os olhos em Waring:

Estamos na hora do chá. Se o senhor fosse andando e tocasse a campainha?

Certamente, Mrs. Rice!

E assim fez. Quando voltou para o lugar perguntou à senhora:

Onde se meteu a sua filha, esta tarde?

Elsie? Fomos dar um passeio juntas. Rodeámos o lago e voltámos pelo pinhal. Foi muito agradável.

Aproximou-se um criado e Waring ordenou-lhe que trouxesse o chá. Mrs. Rice continuou tricotando vigorosamente.

Elsie recebeu uma carta do marido. Ela, agora, não pode descer para o chá.
-Do marido? Harold estava admirado. Sabe? Sempre pensei que ela fosse viúva. 
Mrs. Rice lançou-lhe um olhar agressivo e disse secamente:

Não, Elsie não é viúva! E acrescentou com ênfase: Infelizmente!

Harold ficou chocado. Mrs. Rice, abanando a cabeça, disse friamente:

A bebida é responsável por muitas infelicidades, Mr. Waring.

Ele bebe?

Sim, e há muitas outras coisas mais. Não é saudável. É ciumento e tem um singular temperamento irascível. É uma pessoa difícil. Quero muito a Elsie; é a minha única filha. Vê-la infeliz custa a suportar!

Harold disse com sentida emoção:

Ela deve ser uma pessoa muito dócil.

Demasiadamente dócil, talvez,

A senhora quer dizer?...

Uma criatura feliz é mais arrogante! A docilidade de Elsie vem-lhe, penso eu, do senso do fracasso. A vida não tem sido boa para ela.

Harold perguntou com ligeira hesitação:

Como pôde ela casar com um homem assim? Mrs. Rice respondeu-lhe calmamente:

Philip Clayton era uma pessoa atraente. Tinha, e ainda tem, grande charm. Tinha algum dinheiro e não houve ninguém que nos elucidasse acerca do seu verdadeiro carácter. Há muitos anos que sou viúva. Duas mulheres vivendo sós não poderão ser os melhores juizes do carácter de um homem.

Isso é verdade!

Sentiu-se invadido por uma onda de indignação e piedade. Elsie Clayton devia ter vinte e cinco anos, o máximo. Harold recordou a sua amabilidade, os seus olhos azuis, o suave desenho da sua boca. E imaginou, de repente, que este interesse por ela ia além da amizade.

E ela estava ligada a um bruto!
Naquela tarde juntou-se à mãe e à filha, depois do jantar. Elsie envergava um ligeiro vestido cor-de-rosa 
-escuro. As pálpebras, segundo Harold notou, estavam vermelhas. Elsie tinha chorado, certamente. Mrs. Rice disse com vivacidade:
Descobri quem são as suas duas harpias, Mr. Waring. São polacas, educadas e de boa família. Assim me disse o porteiro.

Harold olhou para a sala onde as duas polacas estavam sentadas. Elsie disse com interesse.

Aquelas duas mulheres que ali estão? Com o cabelo tinto de henne? Parecem-me horríveis, não sei porquê.

Harold acrescentou com uma expressão de triunfo:

É isso, justamente, o que eu penso! Mrs. Rice disse com um sorriso:

Eu penso que ambos estão sendo absurdos. Não podemos julgar as pessoas por aquilo que elas aparentam.

Elsie riu e disse:

Tem razão. Em todo o caso, parecem-me dois abutres.

Arrancando olhos dos homens mortos! acrescentou Harold.

Oh! não! gritou Elsie. Harold disse imediatamente:

Desculpe-me!

Mrs. Rice, com um sorriso, disse naturalmente:

De qualquer modo não me parece que elas se atravessem no nosso caminho.

Elsie acrescentou:

Nós não temos segredos criminosos.

Talvez Mr. Harold tenha disse Mrs. Rice piscando os olhos.

Harold riu inclinando a cabeça para trás.

Não tenho segredos, a minha vida é um livro aberto.

E como um relâmpago atravessou-lhe o espírito um estranho pensamento:
«Que loucos, aqueles que saem do bom caminho! Uma consciência limpa é do que todos necessitam, na vida. Sem essa consciência não podemos enfrentar o mundo e dizer a qualquer pessoa que implique connosco 
que vá para o diabo.» Depois sentiu-se, de repente, muito mais alegre, muito forte e mais senhor do seu destino.
Harold Waring, tal como os outros ingleses era um mau linguista. O seu francês era estropiado e com uma entoação inglesa. De italiano e alemão não sabia nada. Até àquele momento, essa falta de habilidade para as línguas não lhe tinha trazido aborrecimentos. Na maior parte dos hotéis do continente tinha sempre encontrado qualquer pessoa que falasse o inglês. Porque havia, pois, de estar aborrecido?

Mas naquele lugar, onde a linguagem dos naturais do país era uma espécie de eslovaco e onde o porteiro apenas falava alemão, era mortificador para Harold ser-lhe necessário que uma das duas senhoras lhe servisse de intérprete. Mrs. Rice, que era apaixonada por línguas, sabia falar um pouco de eslovaco.

Harold decidiu aprender alemão. Resolveu comprar alguns livros alemães e gastava um par de horas todas as manhãs no estudo dessa língua...

A manhã estava bonita. Depois de escrever algumas cartas Harold olhou para o relógio e viu que ainda tinha tempo para vaguear um bocado antes do almoço. Encaminhou-se para o lago, e depois desviou-se enveredando pelo pinhal. Tinha andado talvez uns cinco minutos quando ouviu um som inconfundível. Não muito longe dali, uma mulher soluçava. Harold deteve-se um minuto e, depois, tomou a direcção do som. A mulher era Elsie Clayton e estava sentada numa árvore derrubada; tinha a face escondida entre as mãos e os ombros estremeciam-lhe com a violência da dor.

Harold hesitou um momento e, depois, dirigiu-se para ela dizendo ternamente:

Mrs. Clayton? Elsie?

Ela estacou de repente e olhou para ele. Harold sentou-se a seu lado e disse com verdadeira simpatia:

Posso fazer alguma coisa por si?
Não! Não! Você é muito amável. Mas ninguém pode fazer nada por mim. 
Harold perguntou timidamente:
É alguma coisa acerca do seu marido?

Ela abanou a cabeça. Limpou os olhos e pegou na caixa do pó compacto, tentando dominar-se. Com uma voz tremida disse:

Não quis aborrecer a mãe. Ela fica fora de si quando me vê infeliz. Por isso vim para aqui, para chorar à vontade. Eu sei que é uma estupidez. Chorar não resolve nada. Mas, há momentos em que sentimos que a vida é quase intolerável.

Sinto muito a sua dor disse Harold.

Ela lançou-lhe um olhar agradecido e disse apressadamente:

A culpa foi toda minha. Casei com Philip por minha livre vontade. Deu mau resultado. Apenas me acuso a mim própria.

É muito penoso para si esse estado de coisas disse Harold.

Elsie abanou a cabeça:

Não, eu não me lamento! Não sou corajosa. Sou terrivelmente cobarde. É isso, principalmente, a origem dos meus aborrecimentos com Philip. Fico aterrorizada, absolutamente aterrorizada, quando ele está com as suas fúrias.

A senhora deve deixá-lo! Porque não se divorcia?

Não me atrevo. De resto, ele não me deixaria. E acrescentou:Além disso não tenho razões para tal. Encolheu os ombros. Depois, prosseguiu: Não, tenho de suportar. Como sabe, dedico muito tempo a minha mãe. Philip não pode pensar nisso. Especialmente quando sai fora do normal acrescentou subindo-lhe um rubor às faces. O senhor veja: é que ele é incuravelmente ciumento. Se eu falo com outro homem um pouco mais faz cenas terríveis.
Harold indignou-se. Tinha ouvido muitas mulheres lamentarem-se do ciúme dos maridos; embora lhes manifestasse simpatia, guardava para si a opinião de que os maridos estavam inteiramente justificados. Mas Elsie não era uma mulher assim. Nunca lhe tinha dirigido nem um simples olhar de flirt. Elsie afastou-se dele com um ligeiro tremor. E fixou os olhos no céu: 
Está muito frio. Deve estar próximo da hora do jantar. Com efeito o Sol escondia-se.
Levantaram-se e caminharam na direcção do hotel. Tinham andado, talvez, um minuto quando viram um vulto caminhando na mesma direcção. Reconheceram-no pela capa que usava. Era uma das irmãs polacas.

Passaram por ela. Harold inclinou-se ligeiramente. A mulher não correspondeu, mas os seus olhos fixaram-se neles durante alguns minutos e havia tal expressão de malícia nesse olhar que Harold sentiu subir-lhe um calor às faces. Receou que a mulher o tivesse visto sentado ao lado de Elsie. Se assim fosse, ela provavelmente poderia pensar...

Bem, ela olhou e pensasse o que pensasse... Uma onda de indignação apoderou-se dele. Que mesquinho espírito têm algumas mulheres! Era estranho que a mulher tivesse começado a olhar para eles na altura em que o Sol desaparecera e eles começavam a tremer...

Fosse como fosse, Harold sentiu-se um pouco contrafeito.

Naquela noite Harold foi para o quarto um pouco antes das dez. Tinha chegado o correio de Inglaterra e tinha recebido grande número de cartas algumas das quais necessitavam de imediata resposta.

Vestiu o pijama e um roupão e sentou-se à secretária para se ocupar da correspondência. Tinha escrito três cartas e ia principiar a quarta quando a porta se abriu e Elsie Clayton entrou, cambaleando, no quarto.

Harold saltou sobressaltado. Elsie empurrou a porta e agarrou-se à cómoda. O peito agitava-se-lhe com os suspiros e o rosto estava branco como a cal. Parecia aterrada como se tivesse visto a morte.

O meu marido! Chegou inesperadamente. Creio que vai matar-me. Ele vem para aqui. Não, não o deixe ver-me.

Deu um ou dois passos para a frente movendo-se tão devagar que quase não se sentia. Harold amparou-a com o braço.
Nesse mesmo momento a porta escancarou-se e um 
homem apareceu à entrada. Era um indivíduo de média estatura, espessas sobrancelhas e cabelo preto e liso. Trazia na mão, uma chave de parafusos. Elevou a voz e pôs-se a falar furiosamente. Quase gritava:
A polaca tinha razão. Andas metida com este rapaz!

Não, não, Philip! Isso não é verdade! Não tens razão!

Harold colocou-se entre a Elsie e o marido. Philip avançou para eles e gritou:

Estou enganado? Mas se te encontro neste quarto! Hei-de matar-te!

E com um ligeiro movimento afastou o braço de Harold. Elsie, com um grito, desviou-se para o outro lado e deu uma volta procurando a saída. Mas Philip tinha apenas uma ideia: alcançar a mulher. Por isso dirigiu-se para ela. Elsie, aterrorizada, fugiu do quarto. Philip foi atrás dela e Harold, sem um momento de hesitação, seguiu-os. Elsie precipitou-se para o seu quarto, ao fundo do corredor. Harold ouviu a chave girar na fechadura mas não chegou a tempo de evitar que Philip entrasse. Antes que a fechadura corresse, Philip deu um empurrão na porta. A porta abriu-se e o homem fechou-se no quarto. Harold ouviu os gritos aflitivos de Elsie. Repentinamente entrou, também, no quarto e precipitou-se para eles. Elsie estava encostada à janela. Entretanto Philip avançava para ela brandindo a chave de parafusos. Ela lançou um grito de terror e, então, agarrando um pesado pisa-papéis que estava na secretária, atirou-lhe com ele.

Clayton caiu redondamente no chão como um cepo. Elsie soltou um gemido. Harold estacou petrificado à entrada da porta. A rapariga caiu de joelhos ao lado do marido e ali se conservou.

Lá fora, no corredor, ouviu-se correr a lingueta de uma fechadura.

Elsie ergueu-se e correu para Harold:

Por favor, por favor, volte para o seu quarto. Temo que alguém surja e o encontre aqui suplicou.
Harold abanou a cabeça. Viu claramente a situação; de momento Philip Clayton estava fora de combate. Mas O grito de Elsie podia ter sido ouvido. Se ele fosse encontrado no quarto o facto podia causar embaraço e dar 
origem a algum mal-entendido. Tanto por Elsie como por si próprio não devia suscitar um escândalo. Fazendo o menor ruído possível saiu para o corredor e regressou ao seu quarto. Apenas o tinha alcançado ouviu o ruído de uma porta que se abria.
Sentou-se no quarto, cerca de uma hora, esperando. Não se atrevia a sair. Mais cedo ou mais tarde tinha a certeza de que Elsie apareceria. Ouviu uma ligeira pancada na porta. Correu a abri-la. Não era Elsie mas sim a mãe. Harold ficou surpreendido. Subitamente Mrs. Rice envelhecera alguns anos. O seu cabelo grisalho estava esguedelhado e tinha profundos círculos negros em volta dos olhos.

Harold levantou-se e ofereceu-lhe uma cadeira. A senhora sentou-se respirando com custo.

A senhora está com muito mau parecer. Posso ser-lhe útil nalguma coisa? perguntou Harold.

Ela abanou a cabeça.

Não! Não se trata de mim! Eu estou bem. Foi apenas o choque. Mr. Waring, sucedeu uma coisa terrível!

Clayton está gravemente ferido? Ela comprimiu o seio:

Pior do que isso! Está morto!

Sentiu que o quarto andava à roda. Uma sensação de água gelada correndo-lhe pela espinha, tornou Harold incapaz de falar por um momento.

Morto? perguntou finalmente. Mrs. Rice abanou a cabeça:

Morto! E a sua voz tinha o tom apagado do mais completo cansaço. O canto do pisa-papéis de mármore bateu-lhe nas têmporas e ele caiu para trás e bateu com a cabeça no fogão de ferro. Não sei o que o matou, mas sei que está morto. Já vi a morte as vezes suficientes para a conhecer bem.

Desastre, era a palavra que acudia incessantemente ao espírito de Harold. Desastre, desastre, desastre... Por isso disse com veemência:
Foi um acidente... Vi como tudo se passou: 
Mrs. Rice disse secamente:
É claro, foi um acidente! Eu sei isso. Mas, mais alguém poderá acreditar? Estou francamente perplexa, Harold! Não estamos em Inglaterra.

Harold disse vagarosamente:

Eu posso confirmar o depoimento de Elsie. Mrs. Rice disse:

Sim, e ela pode confirmar o seu, Harold.

O espírito de Harold vivo e cauteloso, mediu a situação. Reviu toda a história e viu a fraqueza da sua posição. Ele e Elsie tinham sido vistos juntos por uma das polacas no pinhal, o que comprometia um tanto as coisas. As polacas não falavam inglês mas podiam compreender alguma coisa. A mulher podia ter compreendido o significado das palavras ciúme, marido se tivesse escutado a conversação. De qualquer modo, era claro que ela tinha dito a Clayton qualquer coisa que lhe despertara o ciúme. Quando Clayton morreu, ele, Harold, estava no quarto de Elsie. Não havia nada que provasse que ele não tinha deliberadamente agredido Clayton com o pisa-papéis. Nada para provar que o marido ciumento os não tinha encontrado juntos. Havia apenas a palavra de Elsie. Poderiam acreditá-la?

Um arrepio de susto percorreu-lhe o corpo. Seguramente, naquele caso uma acusação de assassínio podia levantar-se contra eles. Mas se fossem acusados de culpabilidade haveria um inquérito que seria publicado em todos os jornais.

Um Homem e Uma Mulher Acusados Marido Ciumento A Ascensão de Um Político. Sim, isto poderia significar o fim da sua carreira política. Não poderia sobreviver a um tal escândalo.

Mas não poderemos desembaraçar-nos do corpo? Colocá-lo em qualquer lado?

O olhar atónito e altivo de Mrs. Rice fê-lo corar. Incisivamente, a senhora disse:

Meu caro Harold, isto não é uma história de detectives! Contar com uma coisa dessas é... seria muito estúpido.
Também penso que sim gemeu Harold. Que poderemos, então, fazer? Meu Deus? Que poderemos fazer? 
Mrs. Rice abanava a cabeça desesperadamente. Estava acabrunhada e o seu espírito trabalhava com dificuldade.
Não há nada que possamos fazer? Nada que evite este espantoso desastre? perguntou Harold.

Olharam um para o outro. Mrs. Rice disse com a voz rouca:

Elsie, a minha filhinha! Eu não posso fazer nada. Isto pode matá-la! Ver-se envolvida numa coisa destas! E acrescentou: E o senhor também! A sua carreira, todas as coisas!

Harold tentou acalmá-la dizendo:

Não se preocupe comigo.

Mas, na realidade, ele não pensava assim. Mrs. Rice continuou com amargura:

É tudo tão injusto! Tão completamente falso! Nada houve entre os dois. Eu sei muito bem!

Harold sugeriu:

A senhora poderá dizer que as nossas relações eram perfeitamente correctas.

Mrs. Rice disse com amargura:

Sim, se eles me acreditarem. Mas, o senhor sabe como é este povo!

Harold concordou tristemente. Para o espírito continental haverá, sem dúvida, uma culpada combinação entre mim e Elsie, e todas as afirmações de Mrs. Rice serão tomadas como as de uma mãe que tenta tudo para salvar a filha.

Sim, não estamos na Inglaterra, pouca sorte concordou Harold.

Ah! disse Mrs. Rice, erguendo a cabeça. Isso é verdade... Isto não é a Inglaterra! Não creio que alguma coisa se possa fazer.

Sim? perguntou Harold olhando impacientemente para ela.

Quanto dinheiro tem o senhor, Harold? perguntou Mrs. Rice abruptamente.

Não muito, comigo. Mas posso telegrafar e pedir dinheiro, é claro.

Mrs. Rice disse com crueldade:
Podemos necessitar de uma grande quantia, mas penso que vale a pena experimentar. 
Qual é a sua ideia? perguntou Harold. Mrs. Rice disse com decisão:
Não temos a felicidade de considerar para nós esta morte natural mas há a esperança de fazê-la acreditar oficialmente.

Harold estava esperançado mas ligeiramente incrédulo.

Sim, o gerente do hotel pode estar do nosso lado. Para ele é melhor assim. É minha opinião que nestas pequenas e afastadas regiões dos Balcãs podemos subornar todos e tudo. E a polícia está talvez ainda mais corrompida do que qualquer outra pessoa.

Creio que a senhora tem razão. Mrs. Rice continuou:

Afortunadamente, penso que ninguém ouviu nada. Quem está no quarto a seguir ao de Elsie, do outro lado do seu?

As duas polacas! Mas não podem ter ouvido nada. Philip chegou tarde. Ninguém o viu, a não ser o porteiro da noite. Sabe, Harold, eu acredito ser possível calar tudo isto e arranjar um certificado de morte natural. É uma questão de gratificá-los muito bem e encontrar o homem que nos faz falta; provavelmente, o chefe da polícia.

Harold, sorrindo contrafeito, disse:

Isto é um pouco Ópera Cómica, não é? Bem, apesar de tudo podemos tentar.

Mrs. Rice era a energia personificada. Primeiro, foi subornado o gerente. Harold permaneceu no quarto, afastado de tudo. Ele e Mrs. Rice tinham concordado que a história a contar não devia passar de uma das habituais brigas entre marido e mulher. A juventude e a beleza de Elsie podiam conseguir mais simpatia.
Na manhã seguinte chegaram ao hotel vários oficiais da polícia. Mostraram-lhes o quarto de Mrs. Rice. Saíram ao meio-dia. Harold telegrafou para Londres a pedir dinheiro; além disto não tomou parte nos acontecimentos. Claro que ele não poderia fazer mais nada, porque estas Personagens oficiais não falavam inglês. 
Às doze horas Mrs. Rice foi ao seu quarto. Mostrava-se pálida e cansada, mas badalava-lhe no rosto uma expressão de alívio que denunciava a sua convicção:
Está tudo arranjado!

Graças ao céu! A senhora foi realmente maravilhosa! Parece incrível!

Mrs. Rice disse pensativamente:

Pela facilidade com que tudo correu pode pensar que tudo isto foi normal. Praticamente, eles puseram tudo no bom caminho! E calou-se. No entanto, é lamentável, realmente! acrescentou.

Não é ocasião para nos preocuparmos com a corrupção dos serviços públicos. Quanto custa? perguntou Harold.

O preço é um tanto elevado!

E Mrs. Rice leu a lista dos figurantes.

O chefe da polícia.

O comissário.

O agente.

O médico.

O gerente do hotel.

O porteiro da noite.

Harold fez apenas um simples comentário:

O porteiro da noite não deve ter recebido muito, não é verdade?

Mrs. Rice explicou:

O gerente do hotel sugeriu que a morte não devia ter-se dado no hotel. A história oficial é que Philip teve um ataque de coração no comboio. Ia ao longo do corredor para tomar ar nós sabemos como eles sempre deixam algumas portas abertas e caiu à linha. É maravilhoso o que a polícia pode fazer quando quer!

Bem disse Harold. Graças a Deus que a nossa polícia não é semelhante a esta.

E com a sua superior serenidade britânica desceram para o almoço.
Depois do almoço, Harold, habitualmente, juntava-se a Mrs. Rice e à filha para tomar o café. Decidiu não alterar 
os seus hábitos. Era esta a primeira vez que via Elsie depois da noite anterior. A rapariga estava pálida e era evidente que ainda se ressentia do choque, mas fazia esforços por tornar-se natural, dizendo pequenos lugares-comuns a respeito do tempo e da paisagem. Comentavam um novo hóspede que acabara de chegar, tentando descobrir a sua nacionalidade. Harold pensava que um bigode semelhante àquele devia ser francês. Elsie dizia alemão e Mrs. Rice pensava que podia ser espanhol.
Não havia mais ninguém no terraço além das duas polacas, que estavam sentadas no outro extremo, ambas distraindo-se com um trabalho de fantasia. Como sempre sucedia quando as via, Harold sentiu um arrepio de apreensão passar por ele. Aquelas faces paradas, aquelas narinas arredondadas, aquelas compridas mãos que pareciam garras...

Um groom foi dizer a Mrs. Rice que a procuravam. A senhora levantou-se e acompanhou-o. À entrada do hotel, viu vir ao seu encontro um oficial da polícia em grande uniforme.

Elsie conteve a respiração.

Acha que alguma coisa de mal vai suceder? Harold animou-a rapidamente:

Oh, não, não! Nada disso!

Mas ele próprio sentiu um súbito receio.

A sua mãe tem sido maravilhosa disse Harold.

Eu sei... A mãe é uma grande lutadora. Nunca se conforma com uma derrota. Elsie estremeceu. Mas tudo isto é horrível, não é?

Agora não pensemos mais nisso. Já está tudo resolvido.

Mas não posso esquecer que fui eu que o matei disse Elsie em voz baixa.

Harold interrompeu-a imediatamente:

Não pense mais dessa forma. Foi um acidente. Sabe que assim foi, na realidade.

Ela pareceu sentir-se um pouco mais feliz. E Harold acrescentou:

Tudo isso já lá vai. O passado é o passado. Procure não pensar nisso outra vez.
Mrs. Rice voltou. Pela expressão do seu rosto viram que tudo correra bem. 
Meteu-me um pequeno susto disse ela quase alegremente. Mas tratava-se apenas de umas formalidades, por causa de uns papéis. Tudo corre como deve ser, meus filhos. Saímos da sombra. Penso que podemos mandar vir qualquer licor para nos reconfortarmos.
Chamaram o criado e pediram-lhe que lhes servisse licores. Pouco depois eram servidos. Levantaram os copos e olharam-se:

Pelo futuro! disse Mrs. Rice. Harold sorriu para Elsie e disse:

Pelas suas felicidades!

Elsie sorriu para ele e disse, enquanto levantava o copo.

E por você, pelo seu êxito. Estou certa de que vai ser um grande homem.

Sentiam-se alegres, quase que divertidos. A sombra tinha passado. Tudo estava bem...

Ao fundo do terraço as duas mulheres semelhantes a aves levantaram-se. Enrolaram o trabalho cuidadosamente e encaminharam-se em direcção ao outro grupo. Com uma pequena vénia, sentaram-se perto de Mrs. Rice. Uma delas começou a conversar. A outra olhava para Harold e para Elsie. Nos lábios esboçava-se-lhes um ligeiro sorriso. Não era, pensou Harold, um sorriso muito agradável... E olhou para Mrs. Rice, que estava prestando atenção a uma das polacas; e, se bem que ele não compreendesse uma única palavra, a expressão de Mrs. Rice era bastante clara. Toda a passada angústia e todo o desespero tinham desaparecido. Atendia-as e dizia-lhes breves palavras.

As duas polacas levantaram-se e com pequenas e afectadas vénias entraram no hotel.

Harold inclinou-se para a frente e perguntou gravemente:

Que aconteceu?

Mrs. Rice respondeu-lhe com uma entoação cheia de desespero:
Aquelas duas mulheres estão a fazer chantagem. Ouviram qualquer coisa a noite passada. E agora para se calarem exigem bastante dinheiro; custa-nos isto mil libras mais... ^ 
Harold Waring encaminhou-se para o lago. Havia mais de uma hora que caminhava febrilmente, procurando com este dispêndio de energia física abafar o clamor de desespero que o dominava.
Chegou, por fim, ao local onde tinha visto pela primeira vez as duas velhas medonhas, que nas suas diabólicas mãos tinham a sua vida e a de Elsie.

Malditas sejam! Danado par de diabólicos vampiros.

O rumor ligeiro de tosse obrigou-o a voltar-se. Encontrou-se em face do estrangeiro de bigode farto, que tinha justamente acabado de sair da sombra das árvores.

Harold não soube que dizer. Este homenzinho tinha, certamente, escutado as suas últimas palavras.

Harold disse de uma forma quase ridícula:

Oh, sim, boa tarde!

O outro replicou num inglês correcto:

Mas para si, parece-me que não é uma tarde muito boa?

Bem! Sim, eu... Harold estava outra vez em dificuldades.

O senhor, segundo penso, tem qualquer coisa que o incomoda. Posso prestar-lhe algum serviço? disse o homenzinho.

Oh, não, obrigado, obrigado! Estava apenas falando à toa. Compreende?

O outro, gentilmente, acrescentou:

Mas eu penso, saiba o senhor, que posso ajudá-lo. Acaso me enganarei se disser que os seus cuidados têm relação com as duas senhoras que estavam sentadas no terraço agora mesmo?

Harold, espantado, olhou para ele:

O senhor sabe alguma coisa a respeito delas? E acrescentou: Quem é o senhor?

Como se confessasse o nascimento de uma pessoa de sangue real, Poirot disse modestamente:

Eu sou Hercule Poirot. Poderemos passear um pouco no bosque enquanto o senhor me conta a sua história? Como estou dizendo, penso que posso ajudá-lo.
Até hoje Harold nunca soube o que o tinha levado a 
contar toda a sua história a um homem a quem falara pela primeira vez apenas alguns minutos antes. Talvez uma força superior. A verdade é que contou a Poirot toda a história.
Este olhava-o em silêncio. Uma ou duas vezes abanou a cabeça com gravidade. Quando Harold fez uma pausa o outro disse sonhadoramente:

As Aves do Estinfalo, com bicos de ferro, que comem carne humana e que habitam no lago Estinfalo... Sim, isto concorda muito bem!

Eu peço perdão disse Harold detendo-se. «Talvez», pensou ele, «este curioso homenzinho seja doido.»

Hercule Poirot sorriu:

Estou reflectindo, eis tudo! Na minha profissão tenho de olhar para as coisas. Agora é o seu caso. O senhor está numa posição muito desagradável.

Não preciso que me diga isso! retorquiu Harold com impaciência.

É um caso muito sério, chantagem. Essas harpias querem forçá-lo a pagar, pagar e pagar outra vez!

E se o senhor as afronta que é que podia acontecer? insistiu Poirot.

Harold respondeu com amargura:

Tudo se acumula! A minha carreira arruinada e uma desgraçada rapariga que nunca fez mal a ninguém pode ser condenada! E Deus sabe como tudo isto acabará!

Portanto disse Poirot, alguma coisa deve fazer-se.

Mas o quê perguntou secamente.

Poirot inclinou-se para trás. Com os olhos semicerrados (e outra vez uma dúvida a respeito do seu perfeito juízo atravessou o espírito de Harold) disse:

É o momento das castanholas de bronze.

O senhor está maluco? perguntou Harold. O outro abanou a cabeça respondendo:
Mais non. Empenho-me apenas em seguir o exemplo do meu grande predecessor, Hércules. Tenha paciência durante algumas horas, meu amigo. Talvez amanhã eu possa livrá-lo dos seus perseguidores. 
Harold Waring desceu ao terraço na manhã seguinte e foi encontrar Poirot só, sentado no terraço. A despeito de si próprio, Harold tinha ficado impressionado com as promessas de Hercule Poirot.
Aproximou-se dele e perguntou ansiosamente:

Bem?

Hercule Poirot olhou para ele radiante:

Está bem!

Que quer dizer com isso?

Cada coisa se tem resolvido por si própria, satisfatoriamente.

Mas que sucedeu?

Hercule Poirot disse com um ar sonhador:

Empreguei as castanholas de bronze. Ora, na moderna conversação eu usei fios de metal para enganar. Abreviando: recorri ao telégrafo. As suas Aves do Estinfalo, monsieur, serão enviadas para lugar onde não possam empregar a sua ingenuidade durante estes tempos mais próximos.

Foram apanhadas pela polícia? Foram detidas?

Precisamente!

Harold soltou um profundo suspiro.

Como é maravilhoso! Não pensava que isto pudesse acontecer. Levantou-se. Tenho de procurar Mrs. Rice e Elsie e contar-lhes tudo.

Elas sabem tudo, já!

Oh, bem! Harold sentou-se outra vez. Obriga-me precisamente o que...

Poirot interrompeu-o:

Regressando do lago estavam duas figuras de capas agitadas pelo vento e perfil de aves de rapina.

O senhor quer dizer que elas foram apanhadas quando fugiam?

Hercule Poirot olhou-o de relance:

Oh, aquelas senhoras? Elas são verdadeiramente inofensivas; polacas de boas famílias, como disse o porteiro. A sua aparência não é talvez muito agradável, mas é assim.

Mas, eu não compreendo!
Não, o senhor não compreende! As outras senhoras 
é que foram apanhadas pela polícia: a resoluta Mrs. Rice e a lacrimosa Mrs. Clayton. Elas é que são aves de rapina muito conhecidas. Duas que vivem de chantagem, mon cher!
Harold teve a sensação de que o mundo girava à sua volta. Num fraco tom de voz perguntou:

Mas o homem, o homem que foi assassinado?

Ninguém foi assassinado, não havia nenhum homem!

Mas eu vi-o!

Oh, não! A voz alta e profunda de Mrs. Rice permitia-lhe com facilidade fazer papéis masculinos. Era ela que representava o marido, sem a sua cabeleira grisalha e só com um maquillage apropriado para a ocasião. Poirot inclinou-se para a frente e deu uma palmada nos joelhos do outro:

Deve caminhar na vida não sendo tão crédulo, meu amigo. Fez uma pausa e prosseguiu:

A polícia da região não é tão facilmente subornada. Provavelmente nunca foi subornada; é claro que não, quando se trata de um assassínio. Estas duas mulheres exploram a ignorância que a média dos ingleses tem das línguas estrangeiras. Como fala francês e alemão, é sempre Mrs. Rice que se dirige ao gerente do hotel e toma a cargo o negócio. Mas, que se passa na realidade? O senhor não sabe! Talvez ela diga que perdeu um broche ou qualquer coisa parecida. Uma desculpa para conseguir que a polícia venha e de modo que os ingénuos possam ver. De resto, que sucedeu agora? O senhor telegrafou a pedir dinheiro, uma grande quantia, e passou-o para as mãos de Mrs. Rice que é a encarregada de todas as negociações. Depois de uma pausa, Poirot prosseguiu:

E isto é assim. Mas são ávidas de dinheiro estas duas aves de rapina. Viram que o senhor tinha, sem razão, tomado aversão às duas senhoras polacas. As senhoras em questão aproximaram-se e tiveram com ela uma inocente conversa e Mrs. Rice não pôde resistir e continuou a caçada. Ela sabia que o senhor não podia entender o que diziam.

Harold soltou um fundo suspiro e perguntou:

E Elsie? Elsie?
Hercule Poirot abriu-lhe os olhos: 
Elsie desempenha muito bem o seu papel. Faz sempre assim. É uma experimentada actriz. Em todas as outras coisas é pura, muito inocente.
Ela não desperta o sexo, mas a sensibilidade.

Isto dá sempre resultado com os homens ingleses disse Poirot pensativamente.

Vou tratar de aprender as línguas da Europa. Ninguém me tomará por parvo, nunca mais! disse Harold com um suspiro.

_sec+Rom:7_ VII

 O TOURO DE CRETA


Hercule Poirot olhou pensativamente para aquela visitante. Viu uma face pálida com um queixo proeminente, uns olhos mais cinzentos que azuis, uma cabeleira negro-azulada que tão raramente se vê: tinha toda a aparência de uma grega dos tempos antigos.

Reparou no vestido bem cortado mas fora de moda, no tecido da região, no saco de mão já muito usado e naquela arrogância de maneiras que deixa antever uma rapariga nervosa.

Ah, sim, deve ser uma condessa, mas sem dinheiro. E deve passar-se alguma coisa que não corre bem que a trouxe aqui pensou Poirot.

Diana Marbely. A sua voz era um pouco sacudida. Eu... eu, não sei se pode ou não ajudar-me, M. Poirot. Trata-se, isto é: é uma extraordinária situação!

Está bem! Conte-me o caso, por favor. Diana Marbely, então disse:

Procurei-o porque não sei o que hei-de fazer. Nem sei mesmo se alguma coisa se pode fazer.

Permite-me que seja o juiz do caso? Subitamente o rosto da rapariga tornou-se vermelho:

Eu procurei-o porque o homem de quem eu estava noiva há um ano quebrou o seu compromisso. Fez uma pausa e olhou para ele com desconfiança: O senhor vai pensar que eu sou completamente estúpida!

Vagarosamente Poirot abanou a cabeça:
Pelo contrário, mademoiselle, não tenho dúvidas 
de que é extremamente inteligente. Certamente não faz parte do meu metier encarregar-me de questões amorosas. E sei perfeitamente que a senhora está bem informada a esse respeito. Acontece, todavia, que há qualquer coisa fora do vulgar nesse rompimento, não é assim?
A rapariga abanou a cabeça e disse com uma voz clara, precisa:

Hugh quebrou o seu compromisso porque julga que vai endoidecer. E pensa que as pessoas doidas não devem casar.

Hercule Poirot levantou as sobrancelhas:

E a senhora não concorda?

Não sei... Que é ser doido, afinal? Toda a gente é um pouco louca!

É isso o que se diz, concordou Poirot, cautelosamente.

Apenas porque uma pessoa começa a pensar que tem um ovo cozido ou qualquer coisa no género, não é razão para que a fechem a sete chaves.

Mas o seu noivo não chegou a esse ponto, pois não?

Não tenho razões para ver qualquer coisa de mau em Hugh. Ele está no uso das suas faculdades, eu sei. É uma pessoa de confiança.

Porque pensa ele então que pode endoidecer? Existe, talvez, algum caso de loucura na família?

Com relutância, Diana abanou a cabeça em sinal de assentimento:

A avó dele era doida! E algumas das suas tias-avós também. Mas eu sei que em quase todas as famílias existem casos semelhantes. Umas vezes trata-se de mentalidade atrasada, outras vezes de demasiada inteligência.

Os seus olhos pareciam suplicar qualquer coisa. Poirot olhou-a e disse tristemente:

Sinto muito o seu caso, mademoiselle. A rapariga gritou:

Eu não quero que o senhor me lamente, quero apenas que o senhor faça alguma coisa.

Que deseja que eu faça?
Não sei, mas há nisto qualquer coisa que não está certa. 
Pode contar-me tudo a respeito do seu noivo, mademoiselle?
Diana, então, pôs-se a contar rapidamente:

Chama-se Hugh Chandler. Tem vinte e quatro anos. O pai é almirante, o almirante Chandler. Vivem em Lyde Manor. Pertence à família Chandler desde o tempo da rainha Isabel. Hugh é filho único. Ingressou na armada. Todos os Chandlers são marinheiros. É uma espécie de tradição, desde que Sir Gilbert Chandler embarcou com Sir Walter Raleigh. Hugh foi para a marinha, é claro. Nem o pai quereria ouvir falar noutra coisa qualquer. E todavia foi o pai que insistiu para que ele saísse da marinha.

Quando foi isso?

Há cerca de um ano. Foi inesperadamente!

Hugh Chandler sentia-se feliz na sua profissão?

Absolutamente!

Não houve nenhum escândalo?

Acerca de Hugh? Absolutamente nada! Ele ia muito bem. Hugh não pode entender o pai.

Que razões apresentou o almirante? Diana disse vagarosamente:

Na realidade nunca deu nenhuma razão. O almirante apenas disse que era necessário que Hugh aprendesse a administrar as propriedades, mas isto era apenas um pretexto. George Frobisher também sempre assim pensou.

Quem é George Frobisher?

É o coronel Frobisher. O mais velho amigo do almirante e padrinho de Hugh. Passa a maior parte do seu tempo em Manor.

E que pensou o coronel da decisão do almirante acerca do filho sair da armada?

Ficou confundido! Não pôde compreender. Ninguém compreende!

Nem o próprio Hugh?

Diana não respondeu logo. Poirot esperou um minuto; depois, ela continuou:

Naquela ocasião, possivelmente também ficou surpreendido. Mas agora? Depois?
Não disse nada, absolutamente nada? Diana murmurou com má vontade: 
Hugh, há talvez uma semana, disse que o pai tinha razão, pois que era a única coisa a fazer.
Perguntou-lhe porquê?

Sem dúvida! Mas ele não quis dizer-me.

Tem havido algum procedimento estranho da sua parte desde há um ano para cá? Qualquer coisa que tenha levantado alguma intriga local ou qualquer desconfiança?

Não sei o que o senhor quer dizer com isso! Poirot disse calmamente mas com autoridade na voz:

Será melhor contar-me tudo.

Que deseja que eu lhe conte? Não há nada absolutamente nada do género que o senhor pensa.

Que há então?

Parece-me que o senhor é simplesmente odioso! Nas fazendas acontecem muitas vezes coisas singulares. É a vingança do povo estúpido ou de qualquer pessoa.

Que pessoa, então?

Houve uns rumores acerca de uns carneiros... uns carneiros que apareceram degolados. Oh, foi horrível! Mas todos eles pertenciam a um homem que era muito ríspido. A polícia pensou que era alguma vingança contra ele.

E não puderam apanhar a pessoa que fez isso?

Não! respondeu a rapariga. E acrescentou altivamente: Mas se o senhor pensa...

A senhora não sabe o que eu penso. Diga-me, o seu noivo alguma vez consultou o médico?

Não tenho a certeza de que o tenha feito!

Talvez que isso fosse o melhor que ele tinha a fazer!

Certamente não quereria. Ele detesta os médicos disse Diana.

E o pai?

Penso que o almirante também não acredita muito nos médicos. Diz que eles são comerciantes e embusteiros.

E que pensa acerca do almirante? Ele está bem? É feliz?

Diana respondeu em voz baixa:

Está terrivelmente envelhecido!
De há um ano para cá? 
- Sim! É um farrapo, uma espécie de sombra do que era.
- E aprovava o noivado do filho?

- Oh, sim! A terra da minha família é próxima da sua. Ficou muito satisfeito quando Hugh e eu resolvemos casar.

- E agora? Que diz ele do rompimento do vosso noivado?

A voz da rapariga tornou-se um pouco balbuciante:

- Encontrei-o ontem de manhã. Parecia um espectro. Segurou uma das minhas mãos nas suas e disse: É muito duro para ti minha filha, mas o rapaz tem razão. É a única coisa que ele poderia fazer.

- E só por isso a senhora vem procurar-me?

- Acaso poderá o senhor fazer alguma coisa?

- Não sei! Mas posso tentar ver com os meus próprios olhos o que se passa.
Hugh Chandler impressionou Hercule Poirot mais do que qualquer outra pessoa. Era alto, moreno, bem proporcionado, tinha o queixo voluntarioso, os ombros largos e uma esplêndida cabeça. Desprendia-se dele um ar de força e virilidade. Apenas Poirot chegou a casa de Diana esta telefonou imediatamente ao almirante Chandler e logo ambos se puseram a caminho de Lyde Manor onde o chá os esperava num espaçoso terraço; e não apenas o chá mas também três homens. Um era o almirante Chandler, com os seus cabelos brancos, dando-lhe mais idade do que na realidade tinha, os ombros curvados como se tivesse de suportar o peso do mundo, olhos escuros e sonhadores. Num contraste com ele, o seu amigo coronel Frobisher era um homenzinho seco, duro, de cabelo avermelhado e a branquear nas fontes. Um irrequieto e irascível homenzinho, semelhante a um terrier mas possuidor de uns olhos extremamente penetrantes. Tinha o hábito de franzir as sobrancelhas e baixar a cabeça inclinando-a para a frente, ao mesmo tempo que, com os seus olhos perfurantes, estudava as pessoas. O terceiro homem era Hugh. 
Um belo exemplar, hem? disse o coronel Frobísher. E falou em voz baixa, notando que Poirot observava o homem.
Hercule Poirot abanou a cabeça. Ele e Frobisher estavam sentados junto um do outro. Os três restantes convivas estavam no lado mais afastado da mesa e conversavam todos de uma forma animada mas artificial.

Sim, é magnífico! É um touro jovem, poder-se-ia dizer que é o touro consagrado a Posídon... Um perfeito espécimen da beleza masculina!

Parece-me bastante bem, não é Frobisher suspirou. Os seus pequenos olhos pareciam dirigir-se para todos os lados, porém, fixavam Poirot:

Sei quem o senhor é! disse o coronel.

Não é nenhum segredo. Não procuro passar por incógnito e o seu gesto parecia dizer: Não viajo incógnito!

Após um momento de silêncio Frobisher perguntou:

A rapariga pediu-lhe que tratasse deste assunto, não é?

Que assunto?

Acerca do jovem Hugh... Sim, vejo que sabe tudo acerca deste caso. No entanto não consigo compreender porque é que ela se dirigiu a si... Pensava que isto não era do seu ramo.

Todas as coisas são do meu ramo... Não se admire!

O que eu quero dizer, é que não sei o que ela espera.

«Só aparece de tempos a tempos murmurou. Às vezes passa uma geração ou duas. O avô de Hugh foi o último.»

Poirot lançou um rápido olhar na direcção dos outros três. Diana mantinha uma boa conversação, rindo e troçando de Hugh. Poderia dizer-se que os três não tinham a mais pequena preocupação na vida.

De que género era a loucura desse avô de Hugh? perguntou Poirot.
O velho tornou-se um louco furioso no fim da vida. Até aos trinta anos, foi perfeitamente normal, tanto quanto era possível. Depois começou a tornar-se um pouco estranho. Durante algum tempo ninguém notou. 
até que se começou a murmurar. Porém nada contou publicamente. Mas, bem...e o coronel encolheu os ombros, e... acabou doido varrido. Pobre diabo! Homicida? Teve que se lhe arranjar um certificado médico. Parou por momentos e acrescentou:
Ainda viveu muito tempo... Disso é que Hugh tem medo, claro. É essa a razão porque ele não quer ser observado por um médico. Ele tem medo de que o fechem numa casa de saúde por muitos anos. Não o reprovo; eu faria o mesmo!

É o que pensa o almirante Chandler?

Ficou bastante chocado! Gostava muito do filho, não é verdade? É louco pelo rapaz. A esposa morreu num acidente de barco quando Hugh tinha apenas dez anos. Desde então só viveu para a criança.

E o almirante era muito dedicado à esposa?

Adorava-a. Toda a gente a adorava. Ela foi uma das mais bonitas mulheres que eu conheci. Fez uma pausa e perguntou abruptamente:

Gostava de ver um retrato dela?

Gostaria imenso!

Frobisher levantou-se e disse em voz alta:

Vou mostrar a M. Poirot uma coisa em que ele é perito.

O almirante esboçou um gesto vago. Frobisher dirigiu-se ao terraço e Poirot seguiu-o. Por um momento o rosto de Diana perdeu a sua máscara de alegria e ficou com uma expressão angustiada. Hugh também levantou a cabeça e olhou fixamente o homenzinho de grandes bigodes pretos. Poirot seguiu Frobisher através da casa. Porque vinha de fora, onde o sol brilhava, o interior parecia-lhe tão escuro que mal podia distinguir uma coisa da outra. Mas percebeu que a casa estava cheia de coisas belas e antigas.

O coronel Frobisher seguiu para a galeria dos quadros. Nas paredes cobertas de painéis viam-se retratos dos Chandlers já mortos. Faces sérias e risonhas, homens envergando fatos de corte e uniformes da marinha. Mulheres vestidas de cetim e adornadas com pérolas. Por fim, Frobisher parou em frente de um retrato que estava no fundo da galeria.
Pintado por Orpen disse bruscamente. Os dois 
homens pararam, depois, a olhar para o retrato de mulher alta que segurava pela coleira um cão de caça. Era uma mulher de cabelo castanho e radiante vitalidade.
O rapaz é exactamente a imagem dela, não acha?

perguntou Frobisher.

Em algumas coisas, sim!

Não tem a sua delicadeza, a sua feminilidade, claro. Mas é uma edição masculina do que nela havia de essencial. Calou-se de repente. E depois prosseguiu:

Foi pena ele ter herdado dos Chandlers a única coisa que era dispensável...

Ficaram ambos silenciosos. Havia um ar de melancolia em todos aqueles retratos, como se todos aqueles Chandlers suspirassem pela mancha que havia no seu sangue e que de tempos a tempos aparecia...

Hercule Poirot voltou a cabeça para olhar o companheiro. George Frobisher estava ainda contemplando a bonita mulher que estava na parede. E Poirot perguntou suavemente:

O senhor conheceu-a bem? Frobisher respondeu sacudidamente:

Éramos da mesma idade. Fui como subalterno para a índia quando ela tinha dezasseis anos... Quando regressei ela tinha casado com Charles Chandler!

E também o conhecia bem?

Charles é um dos meus amigos mais antigos. E o meu melhor amigo.

Viu-os muitas vezes depois do casamento?

Costumava passar aqui todas as férias. Como se esta fosse a minha segunda casa; Charles e Carolina tinham sempre o meu quarto preparado... Encolheu os ombros atirando a cabeça para a frente. É por isso que eu estou agora aqui. Julgo que precisam da minha presença. Charles necessita de mim, eu aqui estou.

Outra vez uma sombra de tragédia passou por ele.

E o que pensa de tudo isto? perguntou Poirot. Frobisher conservou-se calado. Uniu as sobrancelhas e disse:
Para ser franco, não vejo o que o senhor poderá fazer neste caso, M. Poirot. Não vejo porque Diana recorreu ao senhor e o trouxe aqui. 
Sabe que o noivado de Diana com Hugh foi desfeito?
Sim, eu sei isso!

E sabe qual foi a razão? Frobisher replicou apagadamente:

Não sei nada a esse respeito. A gente nova resolve essas coisas entre si. Não tenho nada a ver com o assunto.

Poirot interrompeu-o:

Hugh disse a Diana que não deviam casar-se, porque sentia que ia endoidecer.

Poirot notou que a transpiração humedecia a fronte do coronel Frobisher.

Falávamos acerca daquele terrível assunto! Que pensa sobre a decisão do rapaz?

Hugh fez o que era acertado, pobre diabo! Ele não tem culpa, é um caso de hereditariedade, as células do cérebro... Mas ao mesmo tempo, ele soube que o melhor que tinha a fazer era desfazer o noivado. E foi isso precisamente o que fez.

Se eu pudesse convencer-me disso...

Confie em mim! Acredite-me, porque é assim!

Mas o senhor não me disse nada de particular...

Eu disse-lhe que não desejava falar a esse respeito.

E por que razão o almirante Chandler obrigou o filho a deixar a armada?

Porque era a única coisa que tinha a fazer!

Porquê?

Frobisher abanou obstinadamente a cabeça. Insinuosamente, Poirot insistiu:

Isso tinha alguma relação com a história dos carneiros mortos?

Já ouviu dizer alguma coisa a esse respeito? perguntou Frobisher.

Diana contou-me!

Aquela rapariga tinha feito melhor se ficasse calada.

Ela não pensa que isso seja concludente.

Ela não sabe nada.
Que é que ela não sabe? 
De má vontade, sacudida e irritadamente, Frobisher disse:
Bem... Uma vez que o senhor tem de saber... Chandler ouviu um ruído, uma noite. Pensou que alguém podia ter entrado em casa e por isso foi lá fora investigar. Viu luz no quarto do rapaz. Chandler entrou. E viu o filho na cama, vestido e profundamente adormecido, mas com sangue no vestuário. A bacia do quarto estava cheia de sangue. O pai não conseguiu acordá-lo. Na manhã seguinte ouviu dizer que tinham sido encontrados uns carneiros com o pescoço cortado. Interrogou Hugh. O rapaz não sabia de nada a esse respeito. Não se lembrava de ter saído, mas os seus sapatos estavam do outro lado da porta, todos cobertos de lama. Não pôde explicar a existência de sangue na bacia. Não soube explicar nada. O pobre não sabia. Compreende? Frobisher calou-se e pouco depois prosseguiu:Charles procurou-me e falou-me no assunto. Queria saber o que é que se devia fazer. E o caso sucedeu novamente, três noites depois. Que se poderia fazer? Depois disto, está a ver, o rapaz deixou o serviço. Se ele estivesse aqui, perto de Charles, poderia ser vigiado. Mas não era prudente arriscar-se a um escândalo na armada. Sim, a única coisa que havia a fazer era abandonar a marinha.

E de então para cá? perguntou Poirot. Frobisher contestou asperamente:

Não respondo a mais nenhuma pergunta. Não lhe parece que Hugh sabe melhor que ninguém os assuntos que lhe interessam?

Poirot não respondeu. Era sempre contrário a admitir que alguém soubesse mais que Hercule Poirot.

Quando chegaram ao hall, encontraram o almirante Chandler, que vinha do terraço. O velho parou por um momento e a sua silhueta escura destacou-se contra a luz de fora. Reparando nos outros dois homens disse numa voz baixa e áspera:
Oh, estão ambos aqui! M. Poirot, desejo trocar 
uma palavra consigo. Quer acompanhar-me ao meu escritório?
Frobisher saiu pela porta que estava aberta e Poirot seguiu o almirante. Este indicou a Poirot uma das grandes e confortáveis cadeiras do aposento e sentou-se na outra. Poirot tinha ficado impressionado com o nervosismo, a impaciência e a irritabilidade de Frobisher sinais de perturbação de espírito. Com o almirante Chandler experimentou uma sensação de intenso, calmo e profundo desespero...

Com um suspiro Chandler começou a falar:

Aborrece-me que Diana o tenha envolvido neste caso... Pobre criança! Eu sei quanto isto é duro para ela. Mas, bem! Isto são tragédias que só a nós dizem respeito, e o senhor deve compreender, M. Poirot, que não desejamos ver pessoas estranhas metidas no assunto.

Compreendo muito bem os seus sentimentos, é claro!

Diana, pobre criança, não se convence... Eu a princípio também não me convenci. Neste momento, se não tivesse visto tudo, provavelmente não acreditava.

Fez uma pausa e, depois, prosseguiu:

Sabe o que é? É que isto está no sangue. A tara, quero eu dizer.

E o senhor concorda ainda com o noivado? O almirante Chandler corou.

Quer dizer que não pus os pés à parede? Mas, naquela altura, eu não fazia ideia disto. Hugh parecia-se com a mãe. Não tem nada que lhe recorde os Chandlers. Esperava que ele se parecesse com ela em tudo. Desde a infância até agora nunca manifestou o mais ligeiro sintoma de anormalidade. Eu não podia desconfiar que houvesse nele traços de anormalidade, como nos seus antepassados.

Poirot disse com brandura:

E nunca consultou um médico? Chandler respondeu, carrancudo:
Não, não o faço. O rapaz está a salvo junto de mim. Posso olhar por ele. Não consinto que o fechem entre quatro paredes, como se fosse um animal selvagem... 
Ele está a salvo aqui, diz o senhor. E a segurança das outras pessoas?
Que quer dizer com isso?

Poirot não respondeu. Fixou, apenas, os olhos escuros e tristes do almirante Chandler, que continuou:

Cada homem tem a sua tarefa. O senhor encarrega-se dos criminosos! O meu filho não é um criminoso!

Ainda não o é!

Que pretende insinuar?

Estas coisas aumentam... Aqueles carneiros... de início...

Quem lhe falou nos carneiros?

Diana Marbely! E também o seu amigo, o coronel Frobisher.

George teria feito melhor conservando-se calado!

Ele é um velho amigo, não é verdade?

É o meu melhor amigo respondeu o almirante, taciturno.

E era amigo de sua esposa, também? Chandler sorriu:

Sim, George esteve apaixonado por Carolina, creio eu. Quando ela era muito nova. Ele nunca se casou. Penso que foi essa a razão. Ah, eu fui mais feliz, pensava eu. Casei com ela unicamente para perdê-la, depois.

Suspirou e encolheu os ombros.

O coronel Frobisher estava consigo quando a sua esposa se afogou?

Chandler abanou a cabeça.

Sim, ele estava connosco, em Cornwall, quando isso sucedeu. Ela e eu estávamos juntos, no bote. Por acaso, George estava aqui em casa naquele dia. Nunca compreendi como o barco se virou... Deve ter tido um rombo de repente. Tínhamos saído da baía e a corrente era muito forte. Segurei-a enquanto me foi possível... Calou-se emocionado. O seu corpo foi encontrado a boiar dois dias mais tarde. Graças a Deus que nesse dia não tínhamos levado o pequeno Hugh connosco. Foi o que eu pensei. Agora penso que talvez tivesse sido melhor para Hugh se ele estivesse connosco, pobre diabo. Tudo, teria acabado então...

Soltou um desesperado suspiro e continuou:
Éramos os últimos Chandlers, M. Poirot. Não 
haveria mais Chandlers em Lyde, se todos tivéssemos morrido. Quando Hugh ficou noivo de Diana, eu esperava... Bem, é melhor não falar nisso, agora. Graças a Deus que eles não casaram. É tudo o que eu posso dizer!
Hercule Poirot estava sentado no jardim. Ao seu lado sentava-se Hugh Chandler. Diana tinha acabado de deixá-los. O rapaz virou a sua bela e torturada face para H. Poirot e disse:

O senhor tem de a levar a compreender, M. Poirot. Calou-se por uns minutos e depois continuou: Como o senhor vê, ela é uma lutadora. Não aceita isto. Não se convence de que é melhor para ela conformar-se. Acredita que eu estou no meu perfeito juízo.

Enquanto que o senhor tem a certeza de que está doente?

O rapaz fez uma careta e disse:

Presentemente não sinto nada, mas sei que vou piorando. Diana não sabe, isso feri-la-ia. Ela só me vê quando eu estou bem.

E quando tem as crises, que sucede? Hugh Chandler respirou fundo. Depois disse:

Sonho. E quando sonho estou doido. A noite passada, por exemplo. Eu já não era um homem. Principiei por ser um boi, um boi doido, correndo e saltando ao sol com a boca a saber a lama e sangue, a lama e a sangue... Depois era um cão, um grande cão cheio de baba. As crianças batiam-me, fugiam quando eu me aproximava. Os homens procuravam matar-me. Uma pessoa qualquer levou-me um grande balde com água mas eu não consegui beber. Eu não consegui beber... Calou-se por instantes para prosseguir: Depois acordei. E soube que era verdade. Encaminhei-me para o lavatório. Sentia a garganta queimada e muito seca, terrivelmente seca. Eu estava a arder. Mas não podia beber, não podia engulir... Oh, meu Deus, eu não podia beber...
Hercule Poirot apenas fez um aceno. Hugh continuou. As suas mãos apertavam os joelhos. Tinha a cabeça 
inclinada para a frente, os olhos semicerrados como se visse alguma coisa a dirigir-se para ele.
Há coisas que não são sonhos. Coisas que eu vejo quando estou bem acordado. Fantasmas, formas horríveis troçando de mim. Algumas vezes sou capaz de voar, deixo a minha cama e vou através do ar, cavalgando o vento. £ as minhas companhias são demónios!

Tcha, tcha... fez Poirot.

Hugh Chandler virou-se para ele e disse:

Não há dúvida nenhuma. Isto está no meu sangue. É a herança da minha família. Não posso escapar. Graças a Deus descobri a tempo, antes de ter casado com Diana. Suponha que teríamos um filho e que lhe transmitíamos esta terrível coisa.

Hugh pôs a mão no braço de Poirot e implorou:

Tem que fazer com que ela compreenda. Deve dizer-lhe. Ela tem forçosamente que se esquecer. Qualquer dia encontrará outra pessoa. Há o jovem Steve Graham. Está louco por ela e é muito bom rapaz. Ela seria feliz com ele e estaria em boas mãos. Eu quero que ela seja feliz. Graham é um bocado duro assim como a sua família, mas quando eu desaparecer eles ficarão bem.

A voz de Hercule interrompeu-o:

Porque é que eles ficarão bem quando você desaparecer?

Hugh Chandler sorriu e disse:

Há o dinheiro da minha mãe. Como sabe, ela deixou-me uma grande herança. Esse dinheiro que eu recebi da minha mãe deixo-o a Diana.

Porrot recostou-se na cadeira.

Ah!suspirou. Depois disse: Mas o senhor ainda pode viver muitos anos, Mr. Chandler!

Hugh abanou a cabeça e disse com amargura:

Não, M. Poirot, não viverei muitos anos. Então encolheu-se de repente com um arrepio.

Meu Deus! Olhe!E apontou para o ombro de Poirot. Ai, ao pé de si... Um esqueleto, com os ossos a chocalhar. Chamando por mim, acenando-me...
Com as pupilas muito dilatadas fixava a luz do Sol. Inclinou-se para o lado como se tivesse um colapso. Depois, voltando-se para Poirot, perguntou numa voz quase acriançada: 
Não viu nada?
Vagarosamente, Poirot sacudiu a cabeça em sinal de negativa. E logo Hugh Chandler disse com voz rouca:

Eu não me importo muito de ver tais coisas, O sangue é que me aterroriza. O sangue no meu quarto, no meu fato... Nós tivemos, em tempos, um papagaio. Uma manhã apareceu no meu quarto com o pescoço cortado. Eu estava deitado com a navalha de barba na mão, húmida do sangue do animal.

Aproximou-se mais de Poirot e continuou:

Mesmo ultimamente têm aparecido muitas coisas mortas. Em toda a parte, na povoação e nos campos. Ovelhas e cordeirinhos e um cão de gado. O meu pai fecha-me, sempre, à noite, mas às vezes, às vezes a porta está aberta de manhã. Creio que tenho uma chave escondida em qualquer sítio mas não sei onde. Não sei. Não sou eu quem comete esses crimes mas alguém que entra dentro de mim, que me domina, que transforma um homem num monstro raivoso que quer sangue e que não pode beber água...

De repente escondeu a cara entre as mãos. Passado um minuto ou dois Poirot perguntou:

Ainda não compreendi porque é que não consultou um médico.

Hugh Chandler abanou a cabeça e disse:

Não comprende, realmente? Fisicamente sou forte. Tão forte como urn touro. Eu posso viver por muitos e muitos anos, mas fechado dentro de quatro paredes. Isso não posso suportar! Seria melhor acabar de uma vez... Há maneiras, o senhor sabe. Um acidente, o limpar de uma arma... qualquer coisa desse género. Diana comprenderia... É o caminho a seguir.

Olhou em ar de desafio para Poirot, mas este não respondeu. Em vez disso perguntou com brandura:

Que é que você come e bebe?

Hugh Chandler atirando a cabeça para trás riu muito alto:

Pesadelos depois de indigestão? É essa a sua ideia?

Poirot repetiu a pergunta:

Que é que você come e bebe?
O mesmo que todos. 
Nenhum remédio especial? Comprimidos? Pílulas?
Valha-me Deus, não! Pensa realmente que as pílulas curariam as minhas perturbações? perguntou com um sorriso amargo. Não poderá, então, socorrer um espírito doente?

Poirot respondeu secamente:

É o que estou tentando! Há alguém, nesta casa, que sofre da vista?

Hugh fixou Poirot com espanto:

O meu pai sofre bastante dos olhos. E vai várias vezes ao oftalmologista.

Ah! Poirot meditou por um momento ou dois, depois perguntou: O coronel Frobisher passou muito tempo da sua vida na índia, não é verdade?

Sim, esteve no Exército da índia. Conhece profundamente a índia. Fala muito a respeito das tradições nativas e de outras coisas.

Ah! murmurou Poirot outra vez. Depois observou: Vejo que se cortou no queixo.

É verdade, foi um golpe fundo. O meu pai, uma vez, assustou-me quando eu me barbeava. Tenho andado um pouco nervoso, estes dias. Tenho o queixo e o pescoço cheios de cortes. Torna o barbear difícil.

Poirot, calmamente, disse:

Devia usar um creme.

Oh, eu uso. O meu padrinho George deu-me um creme. Mudou de tom e sorrindo disse: Falamos como se estivéssemos num instituto de beleza feminina. Loções, cremes, pílulas, doenças de olhos. Que é que isso quer dizer? Onde quer chegar, M. Poirot?

Poirot respondeu calmamente:

Estou tentando fazer o que posso por Diana Marbely.

Os modos de Hugh modificaram-se. A sua expressão tornou-se grave. Pondo uma mão no braço de Poirot, pediu:
Sim, faça o que poder por ela. Diga-lhe que tem de esquecer tudo. Diga-lhe que não tenha esperanças... Diga-lhe algumas das coisas que eu lhe disse, M. Poirot... Diga-lhe, oh, diga-lhe que por amor de Deus se afaste de mim. É tudo o que ela pode fazer por mim, agora. Afastar-se e tentar esquecer! 
Tem coragem, mademoiselle? Muita coragem? Precisará dela.
Diana gritou aflita:

Então, é verdade? É verdade? Ele está doido? Hercule Poirot respondeu:

Eu não sou um alienista, mademoiselle. Não sou eu quem poderá dizer se Hugh é um homem doido ou um homem são.

Diana aproximou-se dele:

O almirante Chandler pensa que Hugh está doido. O coronel Frobisher também pensa que Hugh está doido. O próprio Hugh pensa que está doido.

E a mademoiselle que pensa?

Eu? Eu digo que ele não está doido. Foi por esse motivo que...

Parou de falar e Poirot perguntou:

Foi por isso que me procurou?

Sim. Não podia ter mais nenhuma razão para procurá-lo, não acha?

Isso disse Poirot é exactamente o que eu tenho perguntado a mim próprio, mademoiselle.

Não o compreendo!

Que é Steve Graham? A rapariga estacou.

Steve Graham? Ah, sim, é uma pessoa qualquer disse. Depois agarrou-se ao braço de Poirot e, ansiosamente, perguntou: Que tem na sua ideia? Que está pensando a esse respeito? O senhor está aqui para me ajudar, para me esclarecer, mas cala-se, cala-se e não me diz nada. O senhor está a meter-me medo, um medo horrível. Porque está o senhor a meter-me medo?

Talvez disse Poirot porque eu também estou assustado!

Diana arregalou os olhos fixando-os, espantada, em Poirot; num abafado murmúrio insistiu:

Que é que receia?

Poirot suspirou profundamente, dizendo:

É mais fácil apanhar um assassino do que prever um assassínio.

A rapariga gritou:
10-VAMP. G. 24 
Um assassínio? Não empregue essa palavra!
Não obstante, emprego-a!

Poirot alterou a voz. Depois disse rápida e autoritariamente:

Mademoiselle, é necessário que nós, eu e a senhora, passemos a noite em Lyde Manor. É a minha opinião. Não pode arranjar as coisas nesse sentido?

Eu, sim, suponho que sim. Mas porquê?

Porque não há tempo a perder! Disse-me que.era corajosa. É agora a altura de mostrar a sua coragem. E nem uma palavra a este respeito! Ela fez um sinal de assentimento com a cabeça; não disse uma palavra e afastou-se.

Poirot seguiu-a até casa. Ouviu a sua voz na biblioteca e as vozes dos três homens. Subiu a larga escadaria. Não havia ninguém no andar superior.

Encontrou facilmente o quarto de Hugh. Ao centro do quarto via-se um lavatório com água quente e fria canalizada. Por cima, numa prateleira de vidro, vários tubos, boiões e frascos. Hercule Poirot deitou-se ao trabalho com rapidez e destreza...

O que ele tinha a fazer não demoraria muito tempo. Tinha acabado de descer as escadas quando viu Diana saindo da biblioteca; pareceu-lhe corada e contrariada.

Tudo está arranjado disse a rapariga.

O almirante Chandler levou Poirot para a livraria e fechou a porta.

Ouça, M. Poirot. Eu não gosto disto! disse secamente.

De que não gosta, almirante Chandler?

Diana insistiu para que o senhor e ela passassem aqui a noite. Eu não desejo ser pouco hospitaleiro... mas...

Não é uma questão de hospitalidade!

Como digo, eu não quero ser pouco hospitaleiro, mas, francamente, eu não gosto disto, eu não quero isto! E não compreendo o motivo por que desejam aqui ficar. Que utilidade resultará daí?

Dir-lhe-ei que vou fazer uma experiência?

Que espécie de experiência?
Isso, desculpe mas não lhe diz respeito, senhor almirante! 
Mas repare, M. Poirot, eu não lhe pedi para vir
aqui.

Poirot interrompeu-o:

Acredite-me, almirante Chandler, eu aprecio e entendo muito bem o seu ponto de vista. Estou aqui única e simplesmente por causa da teimosia de uma rapariga apaixonada. O senhor contou-me algumas coisas. O coronel Frobisher contou-me outras. O próprio Hugh também me contou algumas coisas. Agora, eu desejo ver com os meus próprios olhos o que há de concreto acerca de todo este assunto.

Sim, mas ver o quê? Digo-lhe que aqui não há nada para ver! Mando fechar Hugh à chave no quarto, todas as noites, eis tudo!

E todavia ele diz que algumas vezes a porta não está fechada de manhã.

E o que significa isso?

Nunca encontrou a porta sem estar fechada à chave?

Chandler estava carrancudo.

Sim, mas supunha sempre que me tivesse esquecido de fechá-la. Mas que quer dizer com isso?

Onde deixa o senhor a chave? Na fechadura?

Não! Deixo-a na secretária, ao lado. Eu ou George ou Withees, o criado, tiramo-la dali na manhã seguinte. Dissemos a Withers que Hugh é sonâmbulo e passeia de noite, por isso é que o fechamos... Desconfio que ele sabe mais alguma coisa, mas é um rapaz de confiança. Está em minha casa há muitos anos.

Existe mais alguma chave?

Não, que eu saiba.

Alguém pode ter mandado fazer outra.

Mas quem?

O seu filho pensa que ele próprio tem uma chave escondida em qualquer lado mas ignora onde.

O coronel Frobisher vindo do outro extremo do aposento disse:

Não me agrada isto, Charles... A rapariga... O almirante Chandler disse rapidamente:
Justamente o que eu estava pensando! A rapariga não deve voltar consigo. Venha só o senhor, se quiser. 
Porque não deseja que Miss Marbely passe aqui a noite?
Nestes casos, bem vê...

Calou-se e Poirot aproveitou o silêncio para dizer:

Seu filho quer muito a Miss Diana Marbely.

É justamente por isso! Diabos levem esta história. Tudo se transtorna quando se trata de um doido. O próprio Hugh sabe isto. Diana não deve aqui vir.

No que respeita a isso Diana deve decidir por si própria disse Poirot saindo da biblioteca.

Diana esperava-o lá fora.

Iremos buscar o que precisarmos para a noite e estaremos aqui à hora de jantar.

Enquanto corriam ao longo da estrada, Poirot repetiu a conversa que tivera com o almirante e o coronel Frobisher. Ela riu ironicamente:

Eles pensam que Hugh pode ferir-me?

Como resposta Poirot perguntou-lhe se podiam parar numa farmácia: tinha-se esquecido de pôr na mala a escova de dentes.

A farmácia ficava a meio da rua principal de uma pacata povoação. Diana esperou-o dentro do carro admirando-se que Poirot levasse tanto tempo para escolher uma escova de dentes.

No enorme quarto decorado com pesada mobília de carvalho da época isabelina, Hercule Poirot sentou-se disposto a esperar. Não havia mais nada a fazer do que esperar. Tudo estava devidamente preparado.

Era quase madrugada quando se desenrolaram os acontecimentos. Ouvindo passos lá fora, Poirot correu a fechadura e abriu a porta. Viu dois homens no corredor, dois homens de meia-idade que aparentavam ser muito mais velhos. O almirante mostrava uma expressão severa e terrível. O coronel arrepelava-se e tremia.

Chandler disse simplesmente:

Pode vir connosco, M. Poirot?
Uma figura estranha caída do lado de fora do quarto de Diana Marbely. A luz incidiu numa cabeça esguedelhada, 
de face morena. Hugh Chandler jazia no chão, respirando com dificuldade. Estava de roupão e chinelas. Na mão direita brilhava uma navalha curva, bem afiada. Mas nem toda ela brilhava; aqui e acolá estava coberta de manchas vermelhas.
Hercule Poirot exclamou abafadamente:

Mon Dieu

Frobisher disse com dureza:

Ela está bem. Ele não lhe tocou. Levantou a voz e chamou: Diana! Somos nós, deixa-nos entrar!

Poirot ouviu o almirante gemer e murmurar quase sem fôlego:

Meu rapaz! Meu pobre rapaz!

Ouviu-se correr uma lingueta. A porta abriu-se e Diana apareceu pálida de morte. Gaguejou:

Que foi que aconteceu? Senti qualquer pessoa tentando entrar. Senti e ouvi empurrar a porta, experimentando, arranhando as almofadas... Oh, era terrível... semelhante a um animal...

Frobisher disse secamente:

Dê graças a Deus por estar fechada!

M. Poirot disse-me que me fechasse.

Subam e levem-no para dentro.

Os dois homens pararam e levantaram o rapaz, que estava inconsciente. Diana comprimiu o peito, com um suspiro de agonia.

Hugh? Este é Hugh? O que é isto que tem na mão? As mãos de Hugh Chandler estavam crispadas e humedecidas e mostravam umas manchas vermelho-acastanhadas.

Isto é sangue? perguntou Diana suspirando. Poirot olhou interrogadoramente para os dois homens.

O almirante abanou a cabeça e disse:

Não é sangue humano, graças a Deus! Um gato! Encontrei-o lá em baixo no hall com o pescoço cortado. Hugh, depois, deve ter-se dirigido para aqui.

Para aqui? Diana estava horrorizada. Para mim? Na cadeira Hugh mexeu-se e gemeu. Todos o olharam

fascinados. Depois levantou-se e começou a pestanejar.
Hallo; a sua voz era pesada, rouca. Que aconteceu? Quem sou eu? Reparou na navalha que conservava 
ainda apertada na mão e disse numa voz baixa, enfraquecida:
Que fiz eu?

O seu olhar percorreu todas as pessoas. Por último, deteve-se em Diana, que estava encolhida contra a parede. Perguntou vagarosamente:

Ataquei Diana?

O pai abanou a cabeça e Hugh pediu submissamente:

Contem-me o que aconteceu!

Eles contaram-lhe de má vontade, atabalhoadamente. Essa calma teimosia punha o rapaz fora de si.

Lá fora o Sol subia. Hercule Poirot afastou as cortinas. A claridade entrou no aposento.

A face de Hugh tinha-se recomposto. A voz tornou-se normal. Compreendo... disse com tristeza.

Então levantou-se. Sorriu e espreguiçou-se. A voz era quase natural quando disse:

Está uma bonita manhã, não está? Apetece-me ir para o bosque caçar qualquer coelho.

Saiu do quarto e todos ficaram a olhá-lo. Então o almirante arremeçou-se para a frente. Frobisher segurou-lhe o braço tentando impedi-lo de seguir o filho.

Não, Charles, não. É o melhor caminho a seguir. Para ele, pobre diabo, e para as outras pessoas.

Diana, soluçando, deixou-se cair em cima da cama. O almirante Chandler, com voz sumida, disse:

Tens razão, George! Eu sei que tens razão! O rapaz está decidido...

Frobisher, com a sua voz igualmente abafada, disse:

Ele é um homem!

Fez-se um momento de silêncio e Chandler, depois, exclamou:

Diabos levem isto! Onde está aquele maldito estrangeiro?

Na sala de armas Hugh tinha tirado a espingarda do suporte e estava a carregá-la quando sentiu no ombro a mão de Poirot.
Hercule Poirot disse num estranho acento de autoridade: 
Não!
Hugh olhou-o espantado e disse com voz fraca e ao mesmo tempo irritada:

Tire as mãos de cima de mim. Não se meta neste assunto. Tem de acontecer um acidente, digo-lhe eu! É o único caminho a seguir.

Outra vez Poirot repetiu a mesma ordem autoritária:

Não!

Não imagina que acidente poderia ter acontecido se a porta do quarto de Diana não estivesse fechada. Tinha-lhe cortado a garganta. A garganta de Diana, com esta navalha!

Imagino que nada disso aconteceria. Você não mataria Miss Marbely.

Não matei eu o gato?

Não! Você não matou o gato, você não matou o papagaio, você não matou as ovelhas!

Hugh olhou espantado para ele e perguntou:

O senhor é que está doido ou sou eu? Poirot replicou:

Nenhum de nós está doido!

Nesse momento o almirante Chandler e o coronel entraram, seguidos de Diana.

Hugh disse numa voz fraca e abafada:

Este rapaz diz que eu não estou doido... Poirot acrescentou:

Tenho a felicidade de lhe dizer que você está inteira e completamente em seu perfeito juízo.

Hugh riu. Era o riso de um doido vulgar.

Isto é diabolicamente engraçado. Estar são e cortar o pescoço dos carneiros e de outros animais? Estava são quando matei o papagaio e quando matei o gato?

Garanto-lhe que não matou os carneiros, nem o papagaio, nem o gato.

Quem foi então?

Alguém que tem trazido no coração o desejo de fazê-lo passar por doido. Alguém que lhe tem dado um narcótico muito enérgico. E a faca ensanguentada ou a navalha de barba têm sido postas na sua mão por alguém que depois se lava na sua bacia.
Com que fim? 
Para que você fizesse aquilo que ia fazer quando eu o fiz parar.
Hugh ficou espantado! Poirot virou-se para o coronel Frobisher e disse:

Coronel Frobisher, o senhor viveu muitos anos na índia. Nunca encontrou casos em que as pessoas se tornam completamente enlouquecidas pela administração de drogas?

A face do coronel Frobisher iluminou-se ao responder:

Nunca encontrei nenhum caso desses, mas ouvi falar repetidas vezes. A intoxicação com datura acaba por enlouquecer as pessoas. Exactamente! Bem, o princípio activo da datura é muito semelhante, senão é o mesmo, ao do alcalóide atropina que é também extraído da beladona. Os compostos de beladona são vulgares e o próprio sulfato de atropina é livremente receitado no tratamento dos olhos. Duplicando a receita e aviando-a em lugares diferentes, pode obter-se grande quantidade de atropina sem despertar suspeitas. O alcalóide pode ser extraído e então misturado, por exemplo, a um creme de barbear. Aplicado externamente, pode causar efusão de sangue e ardor enquanto se faz a barba, e assim a droga está continuamente entrando no organismo. Pode produzir certos sintomas, como secura da boca, dificuldade de engolir, alucinação, visão dupla, todos os sintomas, de facto, que Mr. Chandler tem apresentado.

Virou-se para o rapaz e continuou:

E para lhe tirar todas as dúvidas do espírito, posso dizer-lhe que isto não é uma suposição mas um facto. O seu creme de barbear está fortemente impregnado de sulfato de atropina. Examinei uma bisnaga e tirei a prova.

Pálido, chocado, Hugh perguntou:

Quem fez isso? Poirot respondeu:

É o que eu estou investigando desde que aqui cheguei. Tenho estado a procurar qual a razão para um assassínio. Diana Marbely lucraria financeiramente com a sua morte, mas eu não a considero suspeita.

Hugh teve um impulso.
Eu não poderia esperar tal coisa! 
Encarei outra hipótese aceitável. O eterno triângulo: dois homens e uma mulher. O coronel Frobisher estava apaixonado por sua mãe...
O almirante interrompeu-o e pôs-se aos gritos:

George? George? Eu não acredito uma coisa dessas!

Hugh, com um aceno de incredulidade, perguntou:

Quer dizer que o seu ódio podia atingir um filho? Em certas circunstâncias, sim! respondeu Poirot. Frobisher gritou, alucinadamente:

É uma danada mentira! Não o acredites, Charles. Chandler esquivou-se e murmurou para consigo:

A datura... índia! Sim, eu vejo... E eu nunca tinha suspeitado de veneno. Não, com a loucura na família...

Mais oui! A voz de Poirot ergueu-se alta e cortante. Loucura na família! Um louco dominado pelo desejo de vingança, hábil, como os loucos são, escondeu esta loucura durante anos. Girou em volta de Frobisher e continuou; Mon Dieu O senhor devia saber, o senhor deve ter suspeitado que Hugh era seu filho. Porque nunca lhe disse isso?

Frobisher, sufocado, começou a gaguejar:

Eu não sabia, eu não tinha a certeza... Bem vê, Carolina procurou-me uma vez, estava magoada com qualquer coisa, estava numa grande aflição. Eu não sei, eu nunca soube de que se tratava. Ela e eu perdemos a cabeça. Depois de termos prevaricado uma vez, continuámos, continuámos a encontrar-nos. Eu, bem! Eu suspeitava, mas não tinha a certeza. Carolina nunca me disse nada que fizesse suspeitar que Hugh era meu filho. E então, quando esta manifestação de loucura apareceu, tudo estava regulado, pensei.

Poirot disse:
Sim, tudo estava regulado! Mas nunca notou na expressão do rapaz, na maneira de franzir as sobrancelhas no mesmo jeito herdado de si. Mas Charles Chandler viu. Viu há anos e ficou conhecendo a traição da esposa. Penso que ela tinha medo do marido, tinha começado a dar indícios de loucura. E foi isso o que a levou para os seus braços. Para os braços de quem ela sempre gostou. Charles Chandler planeou a vingança. A esposa morreu num acidente de barco. Ambos estavam sós no barco e 
ele soube como o acidente se deu. Então, começou a alimentar o seu ódio concentrado contra o rapaz que usava o seu nome mas que não era seu filho. As suas histórias da índia puseram-lhe na ideia o envenenamento com datura. Hugh, lentamente, tornar-se-ia louco. Levado ao mesmo estado a que o desespero da sua vida o tinha levado a ele. Foi Chandler quem matou os carneiros nos campos. Mas seria Hugh a sofrer a condenação. Calou-se. Pouco depois prosseguiu:
Sabe quando é que eu suspeitei? Quando o almirante se mostrou tão contrário a que o filho fosse observado pelo médico. Em Hugh a relutância em ser observado era compreensível. Mas o pai! Podia haver um tratamento que salvasse o filho; havia, portanto, milhares de razões para que ele consultasse o médico. Mas não, não devia ser permitido ao médico ver Hugh porque podia descobrir-se que Hugh estava são!

Hugh disse muito calmamente:

São... Eu estou são? E encaminhou-se para Diana.

Você é perfeitamente normal. Não há taras na família disse Frobisher.

Hugh... exclamou Diana.

O almirante Chandler pegou na espingarda de Hugh e disse:

Tudo isto é uma série de disparates! Vou dar uma volta pelo bosque e tentar apanhar algum coelho!

Frobisher atirou-se para a frente mas Poirot segurou-o:

O senhor disse, há pouco ainda, que era o melhor caminho...

Hugh e Diana saíram da sala dando-se as mãos.

Os dois homens, o inglês e o belga, viram o último dos Chandlers atravessar o parque e encaminhar-se para o bosque.
Então, eles ouviram um tiro... 
_sec+Rom:8_ VIII

 OS CAVALOS DE DIOMEDES
O telefone tocou.

Hercule Poirot, é o senhor?

Hercule Poirot reconheceu a voz do jovem Dr. Stoddart. Poirot gostava de Michael Stoddart, gostava da tímida fraqueza do seu rir sardónico, divertia-se com o ingénuo interesse que ele dedicava aos assuntos de crime. E respeitava-o como trabalhador incansável e intransigente nas coisas da sua profissão.

Eu não queria incomodá-lo... a sua voz era hesitante.

Mas há alguma coisa que o apoquente? sugeriu Poirot.

Exactamente! A voz de Michael Stoddart parecia alterada. Há qualquer coisa!

He bien! Que posso, então, fazer por si, meu amigo?

A voz de Stoddart soava desconfiada. Gaguejava um pouco quando respondeu:

Eu suponho que deve ser uma coisa importante. Para me levar a pedir-lhe que passe por aqui a esta hora da noite... Mas estou um tanto atrapalhado.

Certamente irei. Está em sua casa?

Não! Na verdade, estou em Mews, que fica um pouco mais longe. Conningby Mews. Número 17. Pode na verdade aqui chegar? O meu reconhecimento será eterno!

Vou imediatamente respondeu Poirot.

Hercule Poirot caminhava ao longo da sombria Mews, olhando para cima, para os números das portas. Passava da uma hora da manhã e a maior parte dos habitantes de Mews parecia ter ido para a cama; apenas havia luz numa ou duas janelas.
Assim que alcançou o número 17, a porta abriu-se e o Dr. Stoddart apareceu olhando para fora. 
Bom amigo! disse ele. Tenha a bondade de subir, sim?
Um pequeno lance de degraus semelhante a uma escadaria dava acesso ao andar superior. Aqui, à direita, havia uma grande e confortável sala com divãs, maples triangulares, almofadas prateadas e uma grande quantidade de copos e garrafas.

Reinava certa confusão e por toda a parte se viam pontas de cigarros e muitos copos partidos.

Ah! disse Poirot. Mon cher Watson, deduzo que houve aqui uma grande reunião!

Foi uma boa reunião disse Stoddart contrafeito. Uma reunião que eu lhe contarei!

O senhor então não fazia parte?

Não! Estou aqui unicamente no uso da minha profissão.

Que sucedeu?

Esta casa pertence a uma mulher chamada Patience Grace, Mrs. Patience Grace.

Isso lembra disse Poirot um encantador nome antigo, oriental.

Não há nada de encantador ou de oriental em Mrs. Grace. Ela tem boa aparência, sob certo aspecto. Já teve dois maridos e agora vive com um rapaz que ela desconfia que procura abandoná-la. Começaram esta reunião bebendo e terminaram com a droga cocaína, para empregar a expressão apropriada. Cocaína é a substância que começa por fazer que as pessoas se sintam grandes e que tudo se passa num agradável jardim. Excita as pessoas e estas sentem-se com uma capacidade duplicada. Tomada em grandes doses, a cocaína provoca grande excitação mental, desilusões e delírio. Mrs. Grace teve uma violenta questão com o rapaz, aliás um tipo antipático chamado Hawker. Resultado: ele deixou-a naquela altura e ela debruçou-se da janela e alvejou-o com um revólver que qualquer pessoa teve a imprevidência de deixar em casa dela.

Hercule Poirot franziu as sobrancelhas.

E atingiu-o?
Não! A bala foi parar a umas jardas de distância, posso dizer-lhe. Atingiu um miserável vagabundo que ia subindo Mews e que andava a remexer nos barris do 
lixo. Apenas na parte superior do braço. Levantou-se um burburinho, é claro! A multidão empurrou-o para aqui impressionada com o sangue que jorrava do braço do homem e veio procurar-me.
Sim?

Tratei de fazer-lhe logo um penso. Não era nada de gravidade. Então um ou dois dos convidados de Mrs. Grace encarregaram-se do assunto e no fim o homenzito consentiu em aceitar um par de notas e disse que não pensaria mais no caso. O pobre diabo lá seguiu... Foi uma grande sorte!

E o senhor?

Eu tive mais algum trabalho a fazer. Mrs. Grace estava, naquela altura, com um autêntico ataque de histerismo. Encarreguei-me dela e levei-a para a cama. Havia ainda outra rapariga, muito nova, que também tive de tratar. Mas nessa altura qualquer pessoa saiu furtivamente o mais depressa que pôde. Fez-se um silêncio.

Então disse Poirot o senhor teve tempo para pensar na situação.

Exactamente disse Stoddart. Se se tratasse de uma vulgar pândega de bêbados não podia terminar assim. Mas com a droga é diferente!

O senhor está bem seguro dos factos?

Oh, absolutamente! Não há que errar. É por certo cocaína. Encontrei alguma numa caixa de laca. Eles cheiram-na, assim, o senhor sabe. A questão é saber de onde ela vem. Recordo-me do senhor me ter dito, no outro dia, que uma nova onda de cocainómanos aumentou os adeptos da droga.

Hercule Poirot acrescentou:

A polícia deve ter interesse em saber da reunião desta noite.

Michael Stoddart disse desanimado:

É justamente isso...

Poirot olhou para ele, subitamente interessado, e disse:

Mas o senhor não está lá muito ansioso que a polícia tome conta do caso?

Michael Stoddart murmurou:
Podem ser envolvidas pessoas que estão inocentes... Seria muito desagradável para elas! 
É Mrs. Patience Grace que o preocupa tanto?
Santo Deus, não! Ela é tão sabida como aparenta sê-lo!

É, então, a outra rapariga? perguntou Poirot. Stoddart respondeu:

É claro, ela é também experiente, de certo modo! Parece-me que ela se descreve a si própria como muito sabida. Mas é ainda muito nova. Um pouco selvagem, isto é, precisamente uma loucura de rapariga.,. Meteu-se numa embrulhada destas por pensar que era original ou moderno ou qualquer coisa parecida.

Um ligeiro sorriso acudiu aos lábios de Poirot, que disse:

E o senhor já tinha encontrado essa rapariga alguma vez antes desta noite?

Michael Stoddart abanou a cabeça. Parecia muito embaraçado:

Andei atrás dela, em Mertonshire. No Hunt Ball. O pai é um general reformado, de carácter irascível, sempre a falar como se fosse um grande senhor. Tem quatro filhas e são todas um pouco selvagens. Guiadas por um pai desta natureza era o que se podia esperar. E vivem num distrito mau, perto de uma fábrica de munições, uma terra cheia de dinheiro e sem nenhum dos antigos sentimentos da gente que trabalha: uma população rica e em grande parte cheia de vícios. As raparigas têm vivido num mau ambiente!

Poirot olhou pensativamente para ele durante alguns minutos e depois disse:

Percebo agora porque é que o senhor deseja a minha presença. Deseja que me encarregue do assunto?

Pode fazê-lo? Sinto que devia fazer qualquer coisa a este respeito mas, confesso, gostava de conservar Sheila Grant afastada da publicidade, caso pudesse ser.

Poderei ver a rapariga?

Venha comigo!

Encaminharam-se para o quarto. Uma voz agitada e vinda da porta da frente chamava:

Doutor, pelo amor de Deus, doutor, sinto que vou endoidecer.
Stoddart entrou no quarto. Poirot acompanhou-o. O quarto de cama era um verdadeiro caos: pó-de-arroz 
espalhado pelo chão, boiões e frascos por toda a parte, os vestidos em desordem... Na cama estava uma mulher de cabelos loiros pintados, com um ar vago e um rosto vicioso. Uma mulher que gritava:
Tenho insectos a rastejarem por cima de mim... Tenho! Juro que tenho! Vou ficar doida. Pelo amor de Deus, dê-me qualquer coisa.

O Dr. Stoddart conservou-se junto da cama. Poirot saiu sossegadamente do quarto. Em frente havia outra porta. Abriu-a e entrou. Era um quarto pequeno, atravancado de mobília. Na cama, uma esbelta e juvenil figura, jazia emocionada. Poirot, nos bicos dos pés, aproximou-se da cama e olhou para a rapariga: tinha uma cabeleira negra, um rosto comprido e pálido e era nova, muito nova. Um raio de luz bateu nas pálpebras da rapariga. Abriu os olhos espantados, assustados. Olhou fixamente, sentou-se e sacudiu a cabeça esforçando-se por atirar para traz a espessa juba dos seus cabelos negros. Parecia uma potra assustada. Encolheu-se um pouco como costumam fazer os animais selvagens quando receiam que qualquer estranho lhes tire a comida.

Quem é o senhor? perguntou a rapariga. E a sua voz era fria e sacudida.

Não se assuste, mademoiselle.

Onde está o Dr. Stoddart?

Este entrou no quarto. Ao mesmo tempo a rapariga disse com uma expressão de alívio na voz:

Oh, você está aqui! Quem é este homem?

É um dos meus amigos, Sheila. Como se sente agora?

Terrivelmente! Muito quebrada... Para que tomei eu aquela droga?

Eu, no seu lugar, não tornaria a fazer tal coisa disse o médico.

Eu... eu não tornarei! Poirot perguntou-lhe então:

Quem lhe deu aquilo a tomar?

A rapariga abriu mais os olhos; o lábio superior franziu-se um pouco:
Estava aqui, na reunião. Todos experimentámos. A princípio foi maravilhoso. 
Mas quem trouxe isso para aqui? insistiu Poirot.
Ela abanou a cabeça:

Não sei... Pode ter sido Tony, Tony Hawker. Mas na realidade não sei nada a esse respeito.

Foi a primeira vez que tomou cocaína? perguntou Poirot amavelmente.

Ela abanou a cabeça em sinal afirmativo.

E será melhor que seja a última disse bruscamente Stoddart.

Sim! Suponho que sim, mas foi maravilhoso.

Agora repare nisto, Sheila Grant disse o Dr. Stoddart. Eu sou médico e sei o que estou dizendo. Uma vez que esta droga tome conta de si você tornar-se-á inacreditavelmente miserável. Tenho visto muitos a quem tal aconteceu. A cocaína arruina as pessoas; arruina-lhes o corpo e a alma. O álcool não passa de um simples piquenique comparado com essa droga. Acabe com isso imediatamente! Acredite-me; isto não tem graça nenhuma. Que pensa que poderá dizer a seu pai quando ele souber da história desta noite?

O pai? A voz de Sheila Grant elevou-se. O pai? E começou a rir. Estou a ver a cara do pai. Ele não deve saber nada disto que se passou esta noite.

Está muito bem disse Stoddart.

Doutor, doutor a voz queixosa de Mrs. Grace vinha do outro quarto.

Stoddart murmurou para consigo qualquer coisa pouco amável e saiu do quarto.

Sheila Grant fixou novamente Poirot. Estava confundida:

Quem é na verdade o senhor? Não estava na reunião?

Não, não estava na reunião! Sou amigo do Dr. Stoddart!

O senhor é médico, também? Não parece um médico!

O meu nome disse Poirot, diligenciando, como de costume, tornar esta simples declaração semelhante ao levantar do pano no teatro, na primeira representação o meu nome é Hercule Poirot!
Esta apresentação não produziu o seu efeito. Poirot 
entristeceu por ver que esta insensibilizada geração nova nunca tinha ouvido falar a seu respeito.
Mas era evidente que a rapariga já tinha ouvido falar nele. Estava espantada, emudecida. E fixava-o, fixava-o.

Costuma dizer-se, com ou sem justificação, que todas as pessoas têm um tio no Brasil.

Também se diz que todas as pessoas têm um primo em Mertonshire. Mertonshire fica a uma razoável distância de Londres; é um sítio onde se pode caçar e pescar e é perto de várias povoações pitorescas mas sossegadas; tem um bom sistema de redes de caminho-de-ferro e novas estradas que facilitam o tráfego automobilístico. Os criados arranjam-se, aqui, mais facilmente que em qualquer outro ponto rural das Ilhas Britânicas. Resultado: é praticamente impossível viver em Mertonshire se não se tiver um grande rendimento.

Hercule Poirot, porque era estrangeiro, não tinha nenhum primo na região, mas já tinha adquirido um grande círculo de amigos e não lhe era difícil ser convidado para visitar aquela parte do país. Tinha escolhido para se hospedar a casa de uma senhora amiga, cujo principal deleite era exercitar a língua falando dos vizinhos. O único inconveniente era que Poirot tinha de ouvir grandes histórias de pessoas que nada o interessavam antes de ouvir falar daquelas em que estava interessado.

As Grants? Oh, sim, são quatro. Quatro raparigas. Suponho que o pobre general não pode ter mão nelas. Que pode um homem fazer com quatro filhas? Lady Carnichel falava com eloquência.

Claro, que pode ele fazer? perguntou naturalmente Poirot.

Era um grande disciplinador, no exército, segundo ele diz. Mas estas raparigas derrotam-no. Não era assim, quando eu era nova. O velho coronel Sandys pediria reforços, para umas raparigas assim. Fez uma grande dissertação sobre as raparigas de Sandys e outras pessoas da sua juventude.
Penso disse Lady Carnichel voltando ao 
primeiro tema isto é, não sei de qualquer coisa que haja realmente de mal a respeito destas raparigas. Suponho que são espíritos desempoeirados e que vão contra as convenções. Não é o que se costuma usar aqui. Nesta região não há aquilo a que se costuma chamar a sociedade da região. É tudo dinheiro, dinheiro, dinheiro! Não se pensa em mais nada nos nossos dias. E ouvem-se as histórias mais esquisitas! O que diz o senhor? Anthony Hawker? Oh, sim, conheço-o! É o que se chama uma pessoa muito desagradável. Mas aparentemente nadando em dinheiro. Costuma aqui vir caçar e oferece reuniões, reuniões muito caras e outras reuniões particulares, também... se é de acreditar no que se diz. Não que eu acredite, porque penso que o povo é muitas vezes mal-intencionado.
Parou por alguns segundos e, depois, prosseguiu:

Sempre se acredita o pior. O senhor sabe, tornou-se quase moda dizer que uma pessoa bebe ou toma drogas. Uma pessoa disse-me, no outro dia, que as raparigas se embriagavam. Na verdade, penso que não é bonito dizer-se isso. E se alguém tem uma maneira de ser diferente ou original diz-se logo que toma droga; ora, isto, também é antipático. Dizem isso a respeito de Mrs. Larkin. Se bem que eu não me interesse com a criatura, acho que isto não é senão falta de senso. Ela é uma grande amiga de Mr. Anthony Hawker. É íntima das Grants dizem que elas vampirizam os homens. Acredito que andem um pouco atrás dos homens, porque não? Isso é natural! E são todas elas umas interessantes raparigas!

Poirot fez uma pergunta:

Mrs. Larkin?

Meu caro senhor, não deve perguntar-me quem ela é. Quem é qualquer pessoa hoje em dia? Dizem que ela se diverte muito e que lhe correm bem os negócios. O marido era qualquer coisa na City. Morreu, não se divorciou. Não há ainda muito tempo que ela para aqui veio. Foi logo a seguir às Grants. Nós sempre pensámos que ela...
A velha Lady Carnichel interrompeu-se. Abriu a boca e os seus olhos cintilaram. Inclinando-se para a frente bateu nos nós dos dedos de Poirot com um aguçado 
corta-papéis que segurava na mão. E não se importando com a expressão de dor que o homem fez exclamou excitadamente:
É essa a razão, sem dúvida! É por isso que o senhor aqui está. O senhor não tem vergonha, o senhor é uma grosseira criatura. Insisto em que me conte tudo a esse respeito.

Mas que posso eu contar a esse respeito?

Lady Carnichel ia novamente agredir os dedos de Poirot que se livrou desviando-se para o lado.

Não se faça parvo, Hercule Poirot! Bem vejo o seu bigode tremer. Sem dúvida, é um crime que o traz aqui. E o senhor está a sondar-me vergonhosamente. Agora deixe-me ver, quem será o assassinado? Quem foi que morreu ultimamente? Apenas a velha Luísa Gimmore. Tinha oitenta anos e também uma hidropisia. Não pode ser essa. O pobre Leo Staverson? Esse partiu o pescoço numa caçada e estava metido em gesso. Esse não pode ser! Talvez não haja assassínio. Que pena! Não posso lembrar-me de nenhum especial roubo de jóias, ultimamente... Talvez o senhor ande na pista de algum criminoso... Será Beryl Larkin? Terá ela envenenado o marido? Talvez seja o remorso que a traz tão aérea!

Madame, madame gritou Poirot. A senhora vai muito depressa. Espere um pouco.

O senhor veio aqui por qualquer coisa, Hercule Poirot!

A senhora está familiarizada com os clássicos, mad ame?

Que têm os clássicos a ver com isto?

Estão bastante relacionados com isto tudo. Eu invejo o meu grande predecessor. Hércules. Um dos Doze Trabalhos de Hércules consistiu em domar os Cavalos Selvagens de Diomedes.

Não me diga que vem aqui para treinar cavalos. Na sua idade e ainda por cima com os seus belos sapatos de cabedal! Não posso pensar que alguma vez na vida o senhor tenha sido um cavaleiro!

Os cavalos são simbólicos, madame! Foram os cavalos selvagens que comeram a carne humana.
Até que ponto esses clássicos eram desagradáveis... 
Sempre tenho pensado que estes antigos Gregos e Romanos eram muito antipáticos. Não posso compreender porque é que os padres são tão apaixonados pelos clássicos uma gente que nunca se entende o que querem dizer e que sempre me tem parecido ser um assunto muito impróprio para os clérigos. Tanto incesto, tantas estátuas nuas isso a mim não faz diferença mas o senhor sabe como os padres são: ficam muito transtornados se as raparigas vão para a igreja sem meias. Deixe-me ver... Onde é que eu ia? Ora esta! Não estou bem certa!
Suponho, se não estou em erro, que a senhora estava justamente a contar-me que Mrs. Larkin tinha assassinado o marido! Ou talvez que Anthony Hawker seja o assassino de Birghton?

A velha olhou para Poirot cheia de esperança, mas a face deste conservou-se impassível:

Poderia ser alguma falsificação! Vi Mrs. Larkin no banco, uma destas manhãs, e notei que tinha justamente acabado de rebater um cheque de cinquenta libras. Pareceu-me, ao mesmo tempo, que havia muito dinheiro em caixa. Oh! Não! Não, isto não está certo; se ela fosse uma falsária teria que pagar por isso, não é verdade? Hercule Poirot, se o senhor continua aí sentado a olhar para mim como um mocho e sem dizer nada atiro-me a si.

Deve ter um pouco de paciência disse Poirot.

Ashley Loddge, a residência do general Grant, não era uma casa muito grande. Ficava situada na encosta de um monte, tinha bons estábulos e um jardim afastado e um pouco ao abandono.
No interior, era aquela espécie de casa a que se pode chamar bem mobilada. Budas de pernas cruzadas olhavam de revés de dentro dos seus nichos; tabuleiros de bronze de Benares e mesas atravancavam o espaço. Elefantes em fila guarneciam o friso da lareira e bronzes mais trabalhados adornavam as paredes. No meio desta mistura anglo-indiana, o general estava recostado, com 
o fato um pouco em desalinho, numa grande cadeira de braços, com uma perna envolvida em ligaduras repousando a outra numa cadeira.
Gota explicou ele. Sempre tive gota, Poirot. Provoca um grande mal-estar! Tudo por culpa de meu pai. Toda a vida bebeu vinho do Porto, e o meu avô a mesma coisa. E quem paga sou eu. Deseja uma bebida? Toque a campainha para um dos criados o vir servir.

Um criado de turbante apareceu. O general dirigiu-se-lhe em hindu e mandou vir whisky e soda. Quando Abdul chegou serviu-lhe uma larga dose o que fez protestar Poirot.

Não posso acompanhá-lo, M. Poirot, tenho medo. Era para o general o suplício de Tântalo. O médico diz que isto é um veneno que me entra no organismo. Suponho que ele não percebe de nada. Os médicos são uns ignorantes chapados. Só lhes agrada privar um homem de todo o seu ali mento e das suas bebidas e obrigá-lo a comer papas para ficar como um arenque fumado. Peixe fumado puh!

Na sua indignação, o general, sem reparar, moveu o pé doente o que o fez soltar um grito de dor acompanhado de uma expressão magoada.

Desculpando-se, na sua linguagem, disse:

Não passo de um urso! Um urso com a cabeça partida é o que sou! As minhas filhas tratam-me muito bem quando estou com a gota. Não tenho de que censurá-las! Não conhece nenhuma delas?

Já tive o prazer de conhecer uma delas. O senhor tem várias filhas, não tem?

Tenho quatro respondeu tristemente o general. Nem sequer um rapaz! Acrescentou piscando os olhos. É uma preocupação, nos dias que correm, só ter filhas!

Ouvi dizer que eram todas encantadoras.

Não são de todo mal, lá isso não! Imagine o senhor: nunca sei o que elas fazem. É muito difícil controlar as raparigas, hoje em dia. Há muita condescendência, demasiada condescendência por toda a parte. Que pode um homem fazer? Não posso fechá-las à chave, não é assim?
Elas são muito populares na vizinhança, creio eu. 
Alguns desses velhos vizinhos não gostam delas. Um homem tem de ser cauteloso. Uma grande quantidade de lobos vestidos de cordeiros ronda por aqui. Uma destas viúvas de olhos azuis quase me ia apanhando. Costuma aparecer por aqui e rosnar como um gatinho: Pobre general Grant, deve ter tido uma vida muito interessante! O general pestanejou e comprimiu o nariz com o dedo. Isto é muito claro, M. Poirot. Bem, suponho que não há pior lugar no mundo. Isto é muito adiantado e barulhento para o meu gosto. Gostava do campo quando ele era campo: sem motores, sem jazz, sem esta infernal e eterna rádio. Nunca desejei ter rádio em casa, e as raparigas sabem isso muito bem. Um homem tem o direito de ter um pouco de paz na sua própria casa.
Habilmente, Poirot levou a conversa a incidir sobre Anthony Hawker.

Hawker? Não conheço! Oh! Sim! Parece-me que sim! Um rapaz de aspecto grosseiro, com os olhos muito junto do nariz? Nunca confiei num homem que baixe o olhar quando nos fala.

É um dos amigos de sua filha, não é?

Não estava ao facto disso! As raparigas nunca me disseram nada!

As suas espessas sobrancelhas uniram-se por cima do nariz e os seus perfurantes olhos azuis cravaram-se no rosto de Poirot.

Diga-me, M. Poirot: que há a esse respeito? Desconfio que o senhor veio aqui para me contar qualquer coisa.

Poirot disse vagarosamente:

Será difícil dizer! Talvez eu também não o saiba. Apenas posso afirmar-lhe isto: a sua filha Sheila, talvez todas as suas filhas, têm alguns amigos pouco recomendáveis.

Estão indo por mau caminho? Já receava isso! Ouvia aqui uma palavra, ali outra. Olhou impressionado para Poirot. Mas que devo eu fazer, M. Poirot, que devo eu fazer?

Poirot abanou a cabeça perplexo. E o general continuou:
Qual é o mau caminho que elas seguem? Poirot respondeu com outra pergunta: 
Já reparou, general Grant, se alguma das suas filhas tem andado de mau humor, excitada ou deprimida, nervosa, de temperamento desigual?
Diabos o levem! O senhor está a falar como se fosse um médico! Não! Não notei nada do que diz!

Isso é uma felicidade disse Poirot gravemente.

Que diabo significa tudo isto?

Drogas!

O quê? a pergunta saiu-lhe num rugido. Poirot naturalmente, cadenciadamente, continuou:

Houve alguém que tentou tornar sua filha Sheila numa adepta das drogas. O hábito da cocaína adquire-se rapidamente. Uma semana ou duas é o bastante. Uma vez adquirido é-se capaz de tudo, paga-se tudo. para ter sempre um fornecimento de cocaína. E é fácil imaginar que grande negócio a pessoa que fornece esta droga poderá fazer.

Poirot ouviu em silêncio as terríveis e coléricas blasfémias que saíam dos lábios do velho. Era como se deitasse a casa abaixo com a descrição do que ele, general, seria capaz de fazer se encontrasse o tratante que tentara viciar Sheila nos estupefacientes.

Poirot interrompeu-o para dizer:

O que nós temos a fazer, primeiro, como diz a sua admirável Mrs. Beaton, é caçar a lebre. Uma vez que tenhamos apanhado o fornecedor de cocaína enviar-lho-emos com todo o prazer, general.

Levantou-se, e depois de ter tropeçado numa das mesas e de ter retomado o equilíbrio, fez uma mesura ao general e murmurou:

Mil perdões! E peço-lhe, general, peço-lhe que não diga a suas filhas, seja o que for a este respeito.

O quê? Vou mas é arrancar-lhes a verdade! É o que eu vou fazer!

É isso exactamente o que não deve fazer. Elas nunca lhe dirão a verdade.

Mas, que diabo...

Asseguro-lhe, general Grant, que tem de se dominar. Isso é vital! Compreende? Vital!
Bem! Entrego isso ao seu cuidado resmungou o general. 
Estava vencido mas não convencido, Hercule Poirot caminhou com cuidado por entre os bronzes de Benares e saiu.
A sala de Mrs. Larkin estava cheia de gente.

Mrs. Larkin preparava um cocktail numa mesa lateral. Era uma mulher alta, de cabelo castanho-claro enrolado atrás, sobre o pescoço. Os olhos eram cinzento-azulados, com grandes pupilas negras. Movia-se com agilidade, com uma espécie de graça sinistra. Parecia ter apenas entrado na casa dos trinta. Porém, uma demorada observação descobriria as rugas aos cantos dos olhos, provando que ela era dez anos mais velha do que aparentava. Hercule Poirot fora ali levado por uma animada senhora de meia-idade, amiga de Mrs. Carnichel. Poirot serviu-se de um cocktail e depois ofereceu outro a uma rapariga que estava sentada à janela. A rapariga era pequena e bonita; no seu rosto rosado pairava uma expressão de desconfiada ingenuidade. Poirot notou que a rapariga estava desconfiada.

Continua bem disposta, mademoiselle? perguntou Poirot.

A rapariga abanou a cabeça e bebeu. Depois perguntou secamente:

Conhece a minha irmã?

A sua irmã? Então, a senhora é uma das Miss Grants?

Sou Pamp Grant!

E onde está a sua irmã?

Foi à caça. Deve regressar cedo!

Conheci sua irmã em Londres.

Eu sei!

Ela contou-lhe?

Pamp abanou a cabeça, e perguntou com dureza:

Sheila estava nalgum aperto?

Então ela não lhe contou tudo? A rapariga perguntou:

Tony Hawker também lá estava?
Antes de Poirot responder a porta abriu-se e Hawker 
e Sheila entraram na sala. Envergavam trajes de caça e Sheila tinha o queixo salpicado de lama.
Hallo, minha gente! Chegámos a horas de uma bebida? A garrafa de Tony está seca.

Poirot murmurou:

Falai no anjo... Pamp Grant acrescentou:

No demónio, é o que o senhor quer dizer!

Acha que Hawker é um demónio? Beryl Larkin aproximou-se dizendo:

Você já está aqui, Tony? Veio da mata de Gelert? Aproximou-se do rapaz e levou-o habilmente para um sofá, junto da lareira. Poirot viu-o virar a cabeça e dirigir um olhar para Sheila antes de acompanhar Mrs. Larkin. Sheila já tinha visto Poirot. Hesitou um minuto e depois dirigiu-se para a janela, perguntando abruptamente:

Então foi o senhor quem esteve ontem lá em casa?

O seu pai falou-lhe nisso?

Abdul fez-me a sua descrição. E eu adivinhei.

O senhor foi ver o meu pai? perguntou Pamp.

Fui, sim. Temos alguns amigos comuns.

Não acredito isso! retorquiu Pamp secamente.

Porque não acredita que seu pai e eu possamos ter amigos comuns?

A rapariga corou.

Não seja estúpido! Desconfio que na verdade não foi essa a razão. Voltou-se para a irmã e perguntou-lhe:

Porque não dizes nada, Sheila? Sheila sobressaltou-se e disse:

Não... não é nada com Tony Hawker, pois não?

Que poderia ser? perguntou Poirot.

Sheila corou e encaminhou-se para a sala onde estavam os outros convivas.

Pamp disse com súbita veemência mas baixando a voz:

Eu não gosto de Tony Hawker! Há, nele, qualquer coisa de sinistro. Nele e também em Mrs. Larkin, quero eu dizer. Olhe agora para eles.
A cabeça de Tony estava junto da de Mrs. Larkin. Parecia que estavam discutindo. A voz dela elevou-se por um momento: 
...mas eu não posso esperar. Preciso disso. agora!
Poirot comentou com um sorrizinho:

Lês femmes! Seja o que for, elas sempre querem isso agora, não é assim?

Pamp não respondeu. A sua face mudou de expressão. Nervosamente, a rapariga amarrotava a camisola de tweed.

Poirot, num tom de conversa, disse-lhe:

A senhora é muito diferente de sua irmã, mademoiselle!

Pamp virou a cabeça impacientada com aquela banalidade e perguntou:

M. Poirot, que é que Tony deu a Sheila? Porque é que ela se está a tornar assim tão diferente?

Poirot olhou-a de frente:

Nunca tomou cocaína. Miss Grant? Ela abanou a cabeça:

Oh, não! Então aquilo é...? Cocaína? Mas isso não é muito perigoso?

Sheila Grant encaminhou-se para eles com um copo de bebida fresca na mão:

O que é que é perigoso?

Falávamos dos efeitos da cocaína, essa droga que lentamente mata a inteligência e o espírito destruindo tudo o que há de verdadeiro e de bom no ser humano.

Sheila Grant susteve a respiração. A bebida caiu-lhe da mão e espalhou-se no soalho. Poirot continuou:

O Dr. Stoddart explicou-lhe claramente, penso eu. que isso é a morte em vida. É muito fácil de experimentar mas muito difícil de nos libertarmos quando se adquire o vício. A pessoa que deliberadamente se aproveita da miséria e da degradação das outras pessoas é pior que um vampiro ávido de carne e de sangue.

Poirot virou as costas. Atrás de si ouviu a voz de Pamp dirigindo-se a Sheila. E ouviu um murmúrio, um fraco murmúrio de Sheila Grant. Mas tão baixo que dificilmente pôde entender a frase inteira.

O frasco...
Poirot despediu-se de Mrs. Larkin e encaminhou-se para a sala de entrada. Em cima da mesa via-se um frasco juntamente com uma peça de caça e um chapéu. 
Levantou-o para ver. Tinha as iniciais: A. H. Poirot murmurou para consigo:
O frasco de Tony está vazio!

Sacudiu-o com cuidado mas não ouviu o menor som de qualquer líquido. Tirou a tampa.

O frasco de Tony não estava vazio, estava cheio de um pó branco...

Hercule Poirot estava no terraço de Lady Carnichel e conversava com uma rapariga.

Você é muito nova, mademoiselle. Quer parecer-me que você e as suas irmãs não sabem o que têm estado a fazer. Tal como os cavalos de Diomedes. têm estado a alimentar-se de carne humana.

Sheila encolheu os ombros e começou a soluçar:

Tudo isto foi horrível. O que o senhor me diz é horrível! E ainda por cima é verdade. Eu nunca tinha pensado nisso antes daquela noite em que o Dr. Stoddart me falou. Ele estava tão grave e foi tão sincero! Só então vi que terrível coisa estava fazendo... Nunca tinha pensado o que isso era. Oh! Era como beber de mais! Algumas pessoas pagam tudo por isso mas eu sinto que não é coisa que faça grande falta.

E agora? perguntou Poirot. Que pensa fazer?

Agora farei o que o senhor diz. Falarei com os outros. Não pensava que o Dr. Stoddart voltasse de novo a falar-me.

Pelo contrário! Tanto eu como o Dr. Stoddart estamos dispostos a ajudá-la a entrar no bom caminho. Pode acreditar-nos. Mas uma coisa terá de fazer-se. Há uma pessoa que deve ser eliminada, totalmente destruída, e só a senhora e as suas irmãs podem destruí-la. Esta é a sua verdade e só a sua verdade pode convencê-lo.

Refere-se a meu pai?
Não a seu pai, mademoiselle. Eu não lhe disse que Hercule Poirot sabe mais qualquer coisa? A sua fotografia foi facilmente reconhecida nos arquivos oficiais. E a senhora é Sheila Kelly, uma persistente contrabandista de cocaína que foi enviada para um reformatório 
há alguns anos. Quando voltou do reformatório aproximou-se de um homem que se chamava a si mesmo coronel Grant e ofereceu-lhe este posto, o lugar de uma filha. Ficariam cheios de dinheiro e poderiam desfrutar de uma bela vida. Todo o seu trabalho era introduzir a droga entre os seus amigos, fazendo sempre crer que qualquer outra pessoa lha tinha dado a si. As suas irmãs estão no mesmo caso. Fez uma pausa e continuou: Ouça agora, mademoiselle. Esse homem deve ser denunciado e condenado!
Sim, e depois?

Poirot tossiu e disse com um sorriso:

A senhora poderá dedicar-se ao serviço de Deus...

Michael Stoddart fixou Poirot e disse cheio de espanto:

O general Grant? O general Grant?

Precisamente, mon cher. Toda aquela mise-enscène, sabe, foi qualquer coisa verdadeiramente fantástica. Mas demasiado frágil. Os Budas, os bronzes de Benares, o criado indiano! E a gota também! Já ninguém sofre de gota. É velho, um velho que tem gota mas não é pai de raparigas de dezanove anos. Calou-se, sorriu e, depois, acrescentou:Todavia, andei acertadamente. Quando saía tropecei propositadamente no pé que sofria de gota e ele nem deu por isso. Oh, sim! É fantástico este general! Tout de même: é uma ideia brilhante! O bem conhecido general reformado do exército anglo-indiano, uma figura cómica que dizia sofrer do fígado e de temperamento irascível, não procurou fixar-se junto dos outros oficiais reformados do exército da índia! Oh! Claro! Foi para um meio afastado, muito mais dispendioso do que o meio onde costumam viver os oficiais reformados, um meio de gente rica, gente de Londres, por isso um bom local para o mercado. E quem suspeitaria das suas atraentes filhas? Se alguma coisa acontecesse, elas seriam consideradas vítimas, pela certa!
Qual foi exactamente a sua ideia quando foi ver esse miserável? Desconfiou dele? 
Sim! Eu apenas queria ver o que sucedia. Não foi preciso esperar muito tempo. As raparigas tinham os seus agentes. Anthony Hawker, uma das vítimas, era um intermediário. Sheila falou-me do frasco que estava no hall. Ela não podia dedicar-se àquilo, sozinha, nem a outra rapariga que rogou a praga e ficou zangada. A própria Sheila se atrapalhou:
Michael Stoddart, passeando de um lado para o outro, disse:

Não desejo perder de vista aquela rapariga. Tenho uma muito pessoal teoria a respeito das tendências criminosas dos adolescentes. Se encontrarem um bom ambiente familiar poderão emendar-se.

Poirot interrompeu-o dizendo:

Meu amigo, tenho o mais profundo respeito pela sua ciência e não duvido de que as suas teorias possam dar resultado no que diz respeito a Sheila Kelly, mas...

Com as outras também!

Com as outras, talvez! Pode ser! A única de quem estou certo que conseguiria alguma coisa é com Sheila. Pode domesticá-la, não duvido. Na verdade ela já está nas suas mãos...

Corando, Michael Stoddart disse:

Que falta de senso com que você fala, Poirot!

_sec+Rom:9_ IX

 O CINTURÃO DE HIPÓLITA

Uma coisa leva a outra», como costuma dizer Hercule Poirot sem muita originalidade. Ele diz, também, que nunca houve coisa que confirmasse mais esta teoria do que o caso do Rubens roubado.

Poirot nunca se interessou muito por esse caso. Primeiro porque Rubens não é um pintor que ele aprecie, depois porque as circunstâncias do roubo foram bastante vulgares. Encarregou-se do assunto para ser agradável a Alexandre Simpson de quem iria ser amigo. E também por uma razão pessoal ligada com os clássicos!
Após o roubo, Alexandre Simpson mandou chamar Poirot e queixou-se. Aquele Rubens fora descoberto 
recentemente. Era uma obra-prima desconhecida mas de cuja autenticidade não havia dúvidas. Estava em exposição nas Galerias Simpson e tinha sido roubado em pleno dia. O caso dera-se quando os desempregados andavam prosseguindo na táctica de se deitarem nas encruzilhadas das ruas ou penetrarem no Ritz. Um grupo deles entrara nas Galerias Simpson empunhando o slogan impresso: A arte é uma luxúria. Alimentem os esfomeados! A polícia fora chamada, pois muita gente se aproximara com grande curiosidade; e foi, apenas, quando os manifestantes foram levados pelo braço da polícia, que se notou que o novo Rubens tinha sido inteligentemente cortado da moldura e também fora levado.
Era uma pintura pequena explicou Mr. Simpson. Um homem podia metê-la debaixo do braço e sair enquanto toda a gente olhava para aqueles miseráveis idiotas. Os homens em questão tinham pago pela parte inocente que tomaram no roubo. Tinham sido presos nas Galerias Simpson mas de nada souberam senão depois. Poirot achou aquilo uma partida engraçada, mas não viu o que poderia fazer. A polícia, declarou ele, devia ser encarregada de tratar de um roubo honesto.

Ouça-me Poirot disse Simpson eu sei quem roubou o quadro e para onde este vai.

Segundo o dono das Galerias Simpson, o quadro tinha sido roubado por uma quadrilha de bandidos internacionais no interesse de um milionário que compra trabalhos de arte a preços ridiculamente baixos. O Rubens iria para França secretamente e passaria a fazer parte das riquezas do tal milionário. A polícia inglesa e a francesa estavam de atalaia, mas Simpson era da opinião que elas podiam falhar e uma vez o quadro em poder desse imundo cão reavê-lo seria mais difícil. Os homens ricos têm que ser tratados com respeito. É nesta altura que você entra. A situação vai ser delicada e você é o homem que serve para isto.
Finalmente, mas sem entusiasmo, Hercule Poirot aceitou o caso. Concordou em seguir imediatamente para França. Não estava muito interessado nesta perseguição, mas devido a ela veio a ligar-se ao caso da estudante desaparecida, que na verdade o interessava bastante. 
A primeira opinião que ele ouviu sobre o caso foi a do inspector-chefe Japp, precisamente quando exprimia a sua aprovação na maneira do seu criado fazer as malas.
Ah disse Japp a caminho da França, não é verdade?

Meu caro disse Poirot, vocês na Scotland Yard estão sempre muito bem informados.

Japp riu-se com prazer e disse:

Nós temos os nossos espiões. Simpson apanhou-o para tratar do caso Rubens. Parece que ele não confia em nós. Bem, isso não tem importância. Mas o que eu quero que você faça é muito diferente. Como você, de qualquer maneira, vai a França achei que de uma cajadada poderia matar dois coelhos. O inspector-detective Ream trabalha em conjunto com os franceses. Você conhece o Heam! É bom rapaz, mas talvez sem grande imaginação. Gostava de ter a sua opinião sobre o assunto.

Mas de que assunto fala?

Uma criança que desapareceu! A notícia veio publicada nos jornais da tarde. Parece que foi raptada. É filha de um pastor que vive em Cranchester. O seu nome é Winnie King.

O inspector, depois, contou a história: Winnie ia a caminho de Paris para se matricular na selecta escola para crianças inglesas e americanas pertencente a Miss Pope. Winnie partiu de Cranchester no primeiro comboio e foi entregue ao cuidado de um membro da sociedade Elder Pisters, que estava encarregado de levar raparigas de uma estação para a outra. Foi entregue na estação de Victoria a Miss Brusham, a mão direita de Miss Pope, e na companhia de mais dezoito crianças que partiam da estação de Victoria. Dezanove crianças atravessaram o canal, passaram a alfândega em Calais, entraram no comboio para Paris e almoçaram no vagão-restaurante. Mas quando, perto de Paris, Miss Brusham as contou descobriu que somente dezoito estavam presentes.

Ah! fez Poirot movendo a cabeça: O comboio parou nalgum sítio?
Parou em Amiens, mas nessa altura as raparigas estavam no vagão-restaurante e todas afirmavam queWinnie estava com elas. Perderam-na de vista, conforme dizem, quando voltaram aos compartimentos. 
Isto é, ela entrou com as outras cinco raparigas na carruagem que compartilhavam. Não suspeitaram nada de anormal. Pensaram que ela tivesse ficado nalguma das outras carruagens reservadas.
Poirot perguntou:

Assim, quando foi, exactamente, a última vez que foi vista?

Cerca de dez minutos depois de o comboio ter deixado Amiens. E Japp tossiu suavemente. A última vez que foi vista foi quando entravam para o toilette.

Poirot murmurou:

Muito natural! E continuou: Mais alguma coisa?

Sim, uma coisa. A cara de Japp tornou-se severa. O chapéu da pequena foi encontrado ao lado dos carris, numa paragem aproximadamente a catorze milhas de Amiens.

Mas sem nenhum corpo?

Nenhum corpo!

E o que é que você pensa? perguntou Poirot.

É difícil saber o que pensar. Como não há sinais do corpo dela, ela não podia ter caído do comboio.

O comboio não parou em mais nenhum lugar depois de ter deixado Amiens?

Não! Afrouxou uma vez por causa de um sinal mas não parou. Não creio que o comboio tivesse afrouxado o bastante para alguém ter saltado sem se magoar. Está a pensar que a pequena se tomou de pânico e tentou fugir? Era o seu primeiro período escolar e, na verdade, podia ter sentido saudades da casa e da família. Mas, por outro lado, ela tinha quinze anos e meio, uma idade sensata. Além disso esteve de muito bom humor durante toda a viagem, falando sempre.

O comboio foi revistado?

Oh, sim! Revistaram-no de lés a lés, antes de chegar à estação Norte. A rapariga não estava no comboio, sem dúvida alguma! Calou-se, e depois, desesperado, acrescentou: Ela desapareceu no ar! Não faz sentido, Poirot. É de endoidecer!

Que espécie de rapariga era ela?

Vulgar, tipo normal, tanto quanto posso imaginar.
Eu quero dizer: como era ela? 
Tenho aqui uma fotografia. Não é, exactamente, uma beleza.
Passou o retrato a Poirot que o estudou em silêncio. A fotografia mostrava uma rapariga alta e magra, com duas tranças espetadas. Certamente não estivera em pose para ser fotografada; fora apanhada desprevenida. Estava a comer uma maçã. A sua boca aberta mostrava os dentes ligeiramente saídos, seguros com um aparelho.

Japp disse:

Parece-me uma criança simples, vulgar. Nestas idades elas são sempre bonitas. Ontem fui ao dentista. Vi, no Sketch, uma fotografia de Mareia Grant, a beleza desta estação. Lembro-me dela aos quinze anos, quando estive em Castle por causa daquele assalto nocturno. Sardenta, envergonhada, com os dentes saídos e os cabelos despenteados. Tornou-se uma beleza numa noite. Não sei como foi isso. Pareceu-me um milagre!

Poirot sorriu:

As mulheres são um sexo milagroso! Mudou de tom e perguntou:

Que sabe acerca da família da pequena? Há alguma coisa que interesse?

Japp abanou a cabeça:

Nada que possa ajudar. A mãe é inválida. O pobre reverendo Canon King é bastante velho. Jurou que a filha estava contentíssima em ir para Paris. Sempre desejou ir a Paris. Queria estudar pintura e música. As alunas de Miss Pope aprendem arte com A maiúsculo. Como você sabe a escola de Miss Pope é muito conhecida. Muitas raparigas da alta sociedade vão para lá. Miss Pope é restrita, muito careira um dragão! e bastante exigente na escola.

Poirot suspirou:

Eu conheço o género. E sobre Miss Brusham, a que se encarregou de levar as crianças para Inglaterra?

Não é muito inteligente! Atemoriza-se porque Miss Pope lhe põe todas as desculpas em cima.

Poirot disse pensativamente:

Não há nenhum rapaz no caso? Japp apontou para a fotografia.

Parece-lhe que pudesse ter um namorado?
Não! No entanto, apesar da sua aparência pode 
ter um coração romântico. Quinze anos não é cedo de mais!
Bem disse Japp. Se um coração romântico a levou a atirar-se do comboio, dedicar-me-ei à leitura de novelas para senhoras! Disse isto e olhou esperançadamente para Poirot. Depois, fixando-o, perguntou:

Nada lhe chama a atenção? Poirot abanou a cabeça e disse:

Por acaso não se encontraram os sapatos da rapariga perto dos carris, não?

Sapatos? Não! Porquê os sapatos? Poirot murmurou:

Era uma ideia!

Hercule Poirot descia para tomar um táxi quando o telefone tocou. Dirigindo-se ao aparelho, levantou o auscultador:

Sim?

Ouviu-se a voz de Japp:

Ainda bem que o apanhei.

Acabou tudo, caro amigo. Tinha um recado na Scotland Yard quando lá cheguei. A rapariga apareceu. Na estrada principal, a quinze milhas de Amiens. Está assombrada e não conseguem tirar-lhe uma história coerente. O médico diz que ela foi narcotizada. Contudo, está bem!

Poirot, vagarosamente, perguntou:

Então, já não precisa dos meus serviços?

É verdade! De facto, lamento tê-lo maçado! Japp riu-se e desligou.

Poirot não riu. Pousou o auscultador vagarosamente. Tinha um ar preocupado.

O inspector-detective Heam olhou curiosamente para Poirot e disse:
Oh! Nunca pensei que estivesse tão interessado! 
Poirot perguntou-lhe:
O inspector-chefe Japp comunicou-lhe que eu o consultaria sobre este assunto, não é verdade?

Heam concordou:

Disse-me que o senhor veio a Paris para tratar de outros assuntos e que nos daria uma ajuda neste mistério. Mas não esperei que viesse agora, pois já está tudo esclarecido. Pensei que estivesse atarefado com os seus próprios trabalhos.

Os meus assuntos podem esperar. É este assunto que me interessa. Você chamou-lhe um mistério e diz que já está esclarecido. Mas o mistério ainda continua.

Bem, senhor, encontrámos a pequena. E não está ferida, que é a principal coisa.

Mas isso não resolve o problema de como vocês a encontraram. Que é que ela diz? Foi observada por um médico, não é verdade? Qual é a opinião dele?

Diz que a rapariga foi narcotizada. Ainda estava com as ideias bastante confusas. Aparentemente não se recorda de quase nada depois que deixou Cranchester. O que aconteceu depois varreu-se-lhe da memória. O médico pensa que ela poderia ter tido leves contusões. Tem uma nódoa negra na cabeça. O médico diz que disso poderia resultar uma falta de memória completa.

O que é muito conveniente para alguém! O inspector Heam disse numa voz duvidosa:

Não acha que ela está a fingir?

E você?

Não tenho a certeza disso. É uma criança, um pouco infantil para a sua idade. Não! Não está a fingir.

Poirot abanou a cabeça:

Mas eu gostaria de saber como foi que ela saiu do comboio. Queria saber quem é o responsável disso e porque o fez.

Quanto ao porquê eu diria que foi uma tentativa de rapto. Eles pensaram em conservá-la para resgate. Não o fizeram. Perderam a cabeça quando deram o alarme e deitaram-na à estrada.

Poirot perguntou cepticamente:

E que espécie de resgate conseguiriam eles de um padre da igreja de Cranchester?
Os dignitários da igreja inglesa não são milionários. 
O inspector-detective replicou jovialmente:
Na minha opinião foi um trabalho muito pobre.

Ah, é essa a sua opinião?

Heam, corando levemente, perguntou:

E qual é a sua?

Eu quero saber como é que a levaram do comboio.

A cara do polícia toldou-se.

Realmente, isso é um mistério. Estava na carruagem tagarelando com as companheiras e cinco minutos mais tarde desapareceu como por encanto.

Precisamente, como por encanto. Quem mais havia na carruagem? Onde estavam os compartimentos reservados para Miss Pope?

O inspector Heam abanou a cabeça:

Aí é que está o importante. É particularmente importante porque era na última carruagem do comboio e assim que todas as pessoas voltaram da carruagem-restaurante as portas que dividem as carruagens foram fechadas, precisamente para impedir que as pessoas se juntassem no restaurante a conversar e a pedir o chá antes de terem arrumado a louça do almoço. Winnie voltou para a carruagem com as outras colegas. A escola tinha reservado três compartimentos.

E acerca das pessoas dos outros compartimentos da carruagem, que sabe?

Heam puxou do seu livro de notas:
Miss Jordan e Miss Butter, duas solteironas de meia-idade em viagem para a Suíça. Nada há contra elas. Muito respeitáveis e muito conhecidas no Hampshire, onde vivem. Dois caixeiros-viajantes franceses, um de Lião outro de Paris. Ambos respeitáveis homens de meia-idade. Um jovem, James Elliot, acompanhado da mulher, bastante interessante. Ele tem má reputação. A polícia suspeita que ande metido em más transacções, mas nada referente a raptos. Contudo, o seu compartimento foi rebuscado e nada se encontrou na bagagem que mostrasse qualquer cumplicidade neste rapto. Nem vejo mesmo como é que ele poderia estar envolvido nisto. Um outro passageiro: uma senhora americana, Mrs. Van Suyder, que viajava para Paris. Não se sabe nada a seu respeito. Parece boa pessoa. E é tudo! 
Poirot, então, perguntou:
E há absoluta certeza de que o comboio não parou em sítio algum depois de ter deixado Amiens?

Absoluta! Parou apenas uma vez, mas não o tempo suficiente para permitir que alguém saltasse sem se magoar ou correr o risco de ser morto.

Hercule Poirot murmurou:

Isso é que torna o problema interessante. A rapariga desaparece no ar justamente antes de Amiens e reaparece do ar justamente depois de Amiens. Mas onde esteve ela durante esse tempo?

O inspector Heam abanou a cabeça:

O assunto posto dessa maneira soa bastante mal. A propósito: disseram-me que você tinha perguntado qualquer coisa acerca dos sapatos. Os sapatos da rapariga. Ela tinha-os calçados. Mas encontraram um par de sapatos nos carris. O sinaleiro encontrou-os e levou-os consigo pois pareciam estar em boas condições. Eram uns sapatos pretos, fortes.

Ah! exclamou Poirot. Deve ter ficado bem contente! O inspector Heam disse com curiosidade:

Não percebo isso dos sapatos. Acha que tem qualquer significado?

Confirmam uma teoria disse Hercule Poirot. Uma teoria de como tudo isto aconteceu por encantamento.
O colégio de Miss Pope, como muitos outros estabelecimentos do mesmo género, estava situado em Neully. Hercule Poirot, observando a fachada respeitável do edifício, foi subitamente envolvido por uma onda de raparigas que saía das aulas. Contou vinte e cinco raparigas vestindo da mesma maneira: casaco e saia azul-escuros, típicos chapéus ingleses de feltro azul, com o distintivo escolhido por Miss Pope em vermelho-dourado. Variavam entre os catorze e os dezoito anos. Gordas e magras, loiras e morenas, desengraçadas e engraçadas. No fim, acompanhada por uma das mais novas, vinha uma senhora espalhafatosa, de cabelo grisalho, que Poirot 
classificou como sendo Miss Brusham. Poirot parou por um momento, seguindo-as com o olhar. Depois, tocou a campainha e perguntou por Miss Pope quando lhe abriram a porta.
Miss Lavinia Pope era uma pessoa muito diferente de Miss Brusham. Miss Pope tinha personalidade. Miss Pope inspirava medo.

O seu cabelo grisalho estava penteado com distinção; o seu vestido era severo, mas chique. Miss Pope era competente e omnisciente. A sala em que Poirot foi recebido era a de uma mulher de cultura. Estava graciosamente mobilada. Jarras com flores e fotografias das alunas que se haviam distinguido na sociedade. Nas paredes viam-se penduradas reproduções de obras-primas dos melhores artistas e também bons quadros e aguarelas. Toda a sala se apresentava esmeradamente arrumada e limpa.

Miss Pope recebeu Poirot com a competência daqueles que raramente falham.

M. Hercule Poirot? Conheço o seu nome, sem dúvida. Suponho que veio aqui por causa daquele infeliz e penoso acontecimento de Winnie King! Foi um acidente bastante desagradável! Miss Pope parecia muito preocupada.

Aceitava o desastre como ele devia ser aceite, tratando-o competentemente e daí reduzindo-o a uma quase insignificância.

Tal coisa nunca tinha acontecido disse secamente. No entanto, parecia querer dizer: E não acontecerá outra vez!

Hercule Poirot perguntou-lhe polidamente:

Era o primeiro período que Winnie passaria neste colégio, não é verdade?

Sim! Exactamente o primeiro período.

A senhora teve, por acaso, previamente alguma entrevista com Winnie e os pais?
Não, recentemente! Há dois anos, passei uns dias perto de Cranchester, em casa do bispo. Durante a minha estada ali conheci os King. Mrs. King, coitada, é uma inválida. Foi nessa altura que conheci Winnie. É uma criança muito bem educada e com vocação para a arte. Eu disse a Mrs. King que seria muito feliz em receber 
aqui a pequena logo que ela terminasse os estudos gerais. O nosso ensino incide na arte e na música. Levamos as alunas à Ópera e à Comédie Française. Assistem frequentemente a prelecções no Louvre. Têm os melhores mestres de música e pintura. O nosso intento é dar-lhes a melhor cultura possível. Miss Pope lembrando-se, de repente, que Poirot não era o pai de uma das suas alunas perguntou abruptamente:
Em que posso ajudá-lo, M. Poirot?

Eu gostava de saber qual é a situação presente de Winnie.

O reverendo King veio a Amiens para levá-la consigo. Foi a melhor coisa que havia a fazer depois do golpe que a pequena sofreu.

Miss Pope, após uma breve pausa, continuou:

Não aceitamos crianças débeis. Não temos pessoal especial para olhar pelas alunas doentes de espírito. Eu própria disse ao reverendo que, na minha opinião, ele faria bem em levar a filha para casa.

Poirot perguntou explicitamente:

Na sua opinião, Miss Pope, que pensa que aconteceu?

Não faço a menor ideia, M. Poirot. Pelo que me contaram, tudo parece inacreditável. Não posso ver de que forma a pessoa encarregada das raparigas possa ser culpada. Excepto, talvez, em que podia ter dado pela falta da aluna mais cedo.

Recebeu uma visita da polícia, não? perguntou Poirot.

Um leve arrepio estremeceu o corpo de Miss Pope que respondeu friamente:

M. Lefarge, da Prefeitura, visitou-me, para saber se eu o poderia ajudar. É claro que não pude. Ele. depois, pediu-me para ver a mala de Winnie, que veio junta com as das outras raparigas. Eu disse-lhe que a mala já tinha sido vista por outro senhor da polícia. Pouco depois, telefonou para cá insistindo em que eu não lhe tinha dado todas as coisas de Winnie. Fui bastante breve com ele, acerca disso. As pessoas não se devem deixar intimidar pela polícia.

Poirot respirou profundamente, dizendo:
Tem uma natureza espirituosa! Admiro-a por isso, 
mademoiselle. Pensa que a mala de Winnie foi desfeita quando chegou?
Miss Pope pareceu um pouco embaraçada:

Rotina! replicou. Nós vivemos numa verdadeira rotina. As malas das alunas são desfeitas quando chegam e as suas coisas arrumadas como eu acho que devem ser. As coisas de Winnie foram tiradas da sua mala, assim como as das outras alunas. Naturalmente a mala foi outra vez feita e devolvida exactamente como tinha vindo.

Exactamente? perguntou Poirot olhando Miss Pope e encaminhando-se, depois, para a parede. Este quadro é, com certeza, a famosa Cranchester Bridge, com a catedral ao fundo.

Acertou, M. Poirot. Winnie pintou, certamente, esse quadro para me oferecer como uma surpresa. Estava na sua mala embrulhado e tinha escrito: Para Miss Pope, da Winnie. Muito amável da parte da pequena.

Ah! disse Poirot. £ o que é que pensa dela como pintora?

Poirot tinha visto muitos quadros da Cranchester Bridge. Era um motivo que se encontrava todos os anos exposto na Academia. Umas vezes a óleo, outras a aguarelas. Já o tinha visto bem pintado, mediocremente pintado e mal pintado. Mas nunca o tinha visto tão mal pintado como o que estava na sua frente.

Miss Pope, sorrindo com indulgência, disse:

Nunca devemos desencorajar as pequenas, M. Poirot. Winnie será estimulada e acabará por fazer melhor trabalho, claro está!

Não seria mais natural se ela o tivesse pintado com aguarelas?

Concordo! Não sabia que ela estivesse tentando pintá-lo a óleo.

Ah! fez Poirot. Dá-me licença, mademoiselle? Desprendeu o quadro e levou-o até à janela. Examinou-o, por uns momentos e, depois, disse:

Peço-lhe, mademoiselle, que me dê este quadro.

Realmente, M. Poirot?
Não pode pretender dizer-me que gosta deste quadro, pois é abominável. 
Concordo que não é muito artístico mas é o trabalho de uma aluna.
Asseguro-lhe, mademoiselle, que é o quadro mais impróprio para ter pendurado nesta sala.

Não compreendo porque diz isso, M. Poirot.

Eu procuro apenas... E tirando do bolso uma garrafa, uma esponja e alguns trapos, acrescentou:

Primeiro vou contar-lhe uma história, mademoiselle. Parece-se com aquela história do Patinho Feio que se transformou num Cisne.

E começou a esfregar afanosamente o quadro. Enquanto trabalhava, o cheiro a terebintina enchia a sala.

Não vai muito às revistas teatrais?

Na verdade, não. Acho-as muito triviais, respondeu Miss Pope.

Triviais, é certo, mas às vezes instrutivas. Eu vi uma artista teatral mudar de personalidade da maneira mais espantosa. Primeiro aparecia como uma cantora de cabaret, encantadora e cheia de charme. Dez minutos depois fazia de criança anémica, vestida com um fato de ginástica, para logo dez minutos depois, ser uma cigana esfarrapada e lendo a sina.

Muito interessante, sem dúvida, mas não vejo...

Estou a mostrar-lhe, a tentar mostrar-lhe apenas o que deve ter acontecido no comboio.

Que aconteceu no comboio?

Winnie, a estudante com as suas tranças loiras, os seus óculos e aquele aparelho nos dentes vai ao toilette. Um quarto de hora mais tarde reaparece como para usar as palavras do inspector-detective Heam uma boa peça de carne. Meias de nylon, sapatos de salto alto, um casaco de peles para tapar o uniforme, um chapéu e uma outra cara. Sim, uma outra cara. Rouge, pó, baton. Quais serão as verdadeiras feições dessa artista tão rápida no disfarce? Realmente, só Deus sabe. Mas a senhora já percebeu como é que aquela desengraçada escolar se transformou quase milagrosamente numa atraente e elegante mulher?

Miss Pope ficou pasmada:

Quer dizer que Winnie se disfarçou em...
Não! Winnie King, não! Winnie foi raptada na sua passagem por Londres. A nossa rápida artista tomou o 
seu lugar. Miss Brusham nunca tinha visto Winnie King: como poderia ela saber que aquela estudante de trança e aparelho nos dentes era Winnie King? Até essa altura está tudo muito bem, mas a impostora não podia de maneira nenhuma chegar até aqui, pois a senhora conhecia a verdadeira Winnie. Assim, num abrir e fechar de olhos, Winnie desapareceu do toilette e aparece como esposa de um homem chamado Jim Elliot, cujo passaporte inclui a esposa. As loiras tranças, os óculos, as peúgas e o aparelho dos dentes são coisas que ocupam pouco espaço. Mas os desengraçados sapatos e o chapéu, o inconfundível chapéu inglês, têm que ser postos noutro sítio qualquer: vão pela janela fora. Mais tarde, a verdadeira Winnie é trazida. Ninguém procura uma criança meio doente e narcotizada que foi levada de Inglaterra para França e deixada na estrada principal. Se lhe foi dada ascopolamina ela lembrar-se-á muito pouco do que aconteceu.
Miss Pope, pasmada, olhando Poirot perguntou:

Mas porquê? Qual seria a razão de uma coisa assim sem senso?

Poirot respondeu gravemente:

A bagagem de Winnie! Essa gente queria-passar qualquer coisa de Inglaterra para França, qualquer coisa pela qual todos os empregados das alfândegas estavam alerta. Na verdade, tratava-se de algo que merecia ser roubado. Mas qual o lugar mais seguro do que a mala de uma estudante? A senhora é muito conhecida, Miss Pope, e o seu famoso colégio também. Na gare do Norte a bagagem das pequeninas estudantes são vistas em conjunto. Pertencem ao bem conhecido colégio inglês de Miss Pope. E depois do rapto nada seria mais natural do que mandar buscar a bagagem da criança dizendo ostensivamente que era da parte da Prefeitura que a solicitavam.

Poirot calou-se e, depois, sorrindo, prosseguiu:

Mas, felizmente, há a rotina de desmanchar as malas quando as alunas chegam ao colégio. Na mala de Winnie vinha um presente para si, Miss Pope, mas não era o mesmo que a pequena Winnie meteu na sua mala.

Fixando Miss Pope, Hercule Poirot acrescentou:
A senhora deu-me este quadro! Observe-o, agora. 
e tem que admitir que não é próprio para a sua selecta escola!
Poirot mostrou a tela. Como por magia a ponte de Cranchester tinha desaparecido. Em seu lugar via-se uma cena clássica a cores escuras e vivas.

Poirot disse suavemente:

O Cinturão de Hipólita! Hipólita dá o seu cinturão a Hércules, um quadro pintado por Rubens. Uma grande obra de arte, mas, de toda a maneira, impróprio para uma sala de desenho de um colégio de meninas.

Miss Pope corou um pouco. E Poirot prosseguiu:

Hipólita tem o cinturão na mão e não usa mais nada. Está nua. Hércules veste uma pele de leão sobre os ombros. A carne de Rubens é rica, voluptuosa...

Miss Pope recuperando a voz disse:

Uma bela obra de arte... Mas, como o senhor disse, há a considerar a susceptibilidade dos pais das alunas. Alguns deles são um pouco obtusos... Compreende o que quero dizer, certamente.

Foi justamente quando Poirot deixava o edifício da escola que o assalto se deu. Sentiu-se rodeado por uma multidão de raparigas magras, gordas, feias e bonitas.

Mon Dieu murmurou ele. Isto é, sem dúvida, um ataque das amazonas.

Uma rapariga alta e loira gritou:

É Hercule Poirot!

Houve um rumor e as raparigas apertaram mais o cerco. Poirot estava completamente cercado. Desapareceu numa onda de jovens e vigorosas raparigas e apenas ouviu vinte e cinco vozes, gritando, cada uma no seu tom a mesma frase:
M. Poirot escreva o seu nome no meu livro de autógrafos. 
_sec+Rom:10_ X

 O REBANHO DE GÉRION


Desculpe-me, M. Poirot, se sou intrometida... Miss Canaby fazia girar as mãos em volta do saco

e inclinava-se para a frente, olhando ansiosamente para Poirot.

Hercule Poirot ergueu as sobrancelhas.

Lembra-se de mim? perguntou ela com ansiedade.

Os olhos de Poirot cintilaram:

Lembro-me de si como uma das criminosas com mais sucesso que tenho encontrado!

Oh! Meu caro M. Poirot! Pode realmente dizer uma coisa dessas? O senhor foi tão amável para mim! Emily e eu falamos muitas vezes de si e quando vemos alguma coisa no jornal a seu respeito fazemos um recorte e guardamo-lo num livro. Para Augustus imaginamos uma nova trapaça. Nós dizemos: Morre por Sherlock Holmes, morre por Henry Merivale, morre por Mr. Fortune, morre por M. Poirot e ele deita-se e fica como um cepo, sem se mexer até lhe dirigirmos a palavra novamente.

Estou muito reconhecido disse Poirot. E como passa ce cher Auguste»?

Miss Canaby voltou as mãos e tornou-se eloquente em louvor de Augustus, o seu pekinois:

Oh! Está mais esperto do que nunca! Percebe tudo! Quer ouvir? No outro dia, eu estava a olhar para um bebé que estava num carrinho quando subitamente senti um puxão. Era Augustus tentando quebrar a trela e passar à frente. Isto não é ser esperto?

Parece que Augustus partilha das suas tendências criminosas!

Miss Canaby não riu. Em vez disso a sua face gorducha tornou-se pesada e triste. Numa espécie de suspiro disse:

Oh! M. Poirot, estou tão aborrecida! Poirot, amavelmente, perguntou-lhe:

De que se trata?
Oh! M. Poirot, estou com medo. estou realmente 
com medo de ser uma miserável criminosa se me é lícito usar tal termo. Ideias que me vêm à cabeça!
Que espécie de ideias?

As mais extraordinárias ideias! Por exemplo, ontem: um dos mais práticos processos para roubar uma estação de correio entrou-me na cabeça. Eu não pensava nisso, mas foi justamente isso que idealizei! E também imaginei outro engenhoso processo para furtar-me ao pagamento de direitos... Estou convencida de que pode ser um bom trabalho!

Provavelmente pode disse secamente Poirot. É esse o perigo das suas ideias.

Estou aborrecida, M. Poirot, muito aborrecida. Tendo sido educada nos mais severos princípios (e isto é mais perturbador que ilegal) sinto-me aborrecida por tais ideias me acudirem ao espírito. A perturbação é, em parte, penso eu, por ter estado ociosa muito tempo. Deixei Lady Hoggin e fui contratada por uma velha senhora para lhe escrever e ler cartas todos os dias. As cartas escrevem-se depressa e mal eu começo a lê-las a senhora adormece, de modo que fico ali sentada com o espírito ocioso. E nós bem sabemos que uso o Demónio faz da ociosidade!

Uhn! Uhn!fez Poirot.

Recentemente li um livro, um livro moderno traduzido do alemão. Lança a mais interessante luz a respeito das tendências criminosas. Cada um deve, segundo depreendi, sublimar os próprios impulsos. E é por isso, realmente, que eu o procuro.

Sim? disse Poirot.

Penso, M. Poirot, que não é uma grande fraqueza ser-se presa de uma excitação. A minha vida tem sido, infelizmente, monótona como um tambor. Levando os pekinois a passear ao campo, muitas vezes penso que é esse o único tempo em que realmente tenho vivido. Muito repreensível, sem dúvida, mas o meu livro diz que ninguém deve recuar em face da verdade. Procurei-o porque espero que seja possível sublimar esta insaciável excitação, empregando-a, se acaso puder seguir esse caminho, ao lado dos anjos.
Ah! É então como uma colega que a senhora se me apresenta? 
Miss Canaby corou:
É uma grande presunção da minha parte, eu sei! Mas o senhor foi tão amável!

Calou-se. Os seus olhos, os seus cansados olhos azuis, diziam alguma coisa, tinham como que a expressão de um cão que espera ser levado a passear.

É uma ideia sim disse Poirot vagarosamente.

É claro, eu não sou esperta explicou Miss Canaby. Mas o meu poder de dissimulação é bom. E acontece, aliás, que qualquer pessoa quando quiser pode deixar o lugar de dama de companhia. E já tenho pensado que o facto de uma pessoa se apresentar sempre como estúpida em geral dá bom resultado.

Hercule Poirot sorriu e disse:

A senhora encanta-me, mademoiselle!

Oh, meu caro M. Poirot, o senhor é muito amável. Então encoraja a minha esperança? Sucede que recebi um legado muito pequeno mas que nos permite, a minha irmã e a mim, mantermo-nos de uma maneira frugal e sem estarmos absolutamente dependentes do que eu possa ganhar.

Deve considerar onde os seus talentos podem ser melhor empregados. A senhora já tem uma ideia, suponho!

Penso que o senhor é que deve julgar das minhas aptidões. Tenho estado preocupada, ultimamente, com uma das minhas amigas. É sobre isso que venho consultá-lo. É claro, o senhor pode dizer que é uma fantasia de mulher velha, pura imaginação. Eu sei que se é propenso, talvez, a exagerar e a ver desígnios onde há apenas coincidências.

Não creio que a senhora possa exagerar, Miss Canaby. Diga-me o que tem na ideia?
Bem, eu tenho uma amiga, uma amiga muito querida, se bem que não a tenha visto muitas vezes nos últimos anos. Chama-se Emmeline Clegg. Casou com um homem no Norte da Inglaterra que morreu há poucos anos, deixando-lhe uma boa fortuna. Ela sente-se infeliz depois da morte do marido e eu receio que ela esteja um pouco louca ou seja uma fanática. A religião pode ser um grande auxílio e amparo, mas para o que eu penso da religião ortodoxa... 
Refere-se à Igreja Grega? perguntou Poirot. Miss Canaby olhou-o chocada:
Oh! Não, sem dúvida! À Igreja de Inglaterra. Se bem que eu não concorde com os católicos, eles são, em todo o caso, reconhecidos, bem considerados. E os Wesleianos e congregacionalistas são todos conhecidos, igualmente, como pessoas respeitáveis. Mas refiro-me a certas seitas que dia a dia aumentam. São uma espécie de apelo ao sentimento, mas tenho dúvidas que por detrás disso exista uma religião sincera.

E a senhora pensa que a sua amiga está sendo vítima de uma dessas seitas?

Sim, certamente que sim! A do Rebanho do Pastor, como eles lhe chamam. A sua sede principal é em Devonshire, uma agradável estância perto do mar. Os que aderem vão ali para fazer um retiro por um período de quinze dias com serviços religiosos e rituais. Têm três grandes festas no ano. A Chegada do Pasto, a Abundância do Pasto e a Ceifa do Pasto!

A última é estúpida, porque ninguém ceifa o pasto

disse Poirot.

Tudo é estúpido disse Miss Canaby com calor.

Todos os aderentes se concentram em volta do chefe do movimento, o Grande Pastor como lhe chamam, um tal Dr. Andersen. Um homem muito bonito, com muito boa presença, creio eu.

O que constitui um atractivo para as mulheres, não é?

É isso que eu receio suspirou Miss Canaby. O meu pai era um homem muito belo e era a pessoa mais difícil da paróquia. Rivalidades na maneira de vestir e a divisão do trabalho da igreja...

A maior parte dos membros do Rebanho do Pastor são mulheres?

Pelo menos três quartos! Os homens que ali estão são todos eles amimados. E é das mulheres que dependem o sucesso do movimento e os fundos para que ele se mantenha.

Ah! disse Poirot, agora entramos no assunto. Francamente, pensa que isso é uma burla?
Francamente, penso que sim. Não acha? Mas há mais. Uma outra coisa me aborrece. Sucede que a minha 
amiga está tão enfronhada na religião que recentemente fez um testamento deixando ao movimento todas as suas propriedades.
Poirot perguntou secamente:

Quer dizer que ela foi sugestionada?

Completamente, não! Isso já estava na sua ideia. O Grande Pastor mostrou-lhe um novo rumo de vida. Assim, tudo o que ela tem será depois da sua morte para o movimento. O que, na verdade, me aborrece é que...

Sim, continue!

Várias mulheres muito saudáveis têm estado entre as devotas. No último ano, três delas, nada menos, morreram.

Deixando à seita tudo o que possuíam?

Sim, exactamente!

E as pessoas das suas relações não protestaram? Penso que deveria ter havido qualquer coisa semelhante a um litígio.

Bem vê, M. Poirot, são, em geral, mulheres sós, que pertencem a esta associação. Pessoas que não têm nem parentes próximos nem amigos.

Poirot abanou a cabeça pensativamente. Miss Canaby apressou-se a dizer:

É claro, eu de modo algum estou insinuando qualquer coisa. Pelo que eu tenho ouvido não há nada de mal nessas mortes. Uma morreu de pneumonia depois de uma gripe e a outra foi atribuída uma úlcera gástrica. Morreram em circunstâncias absolutamente normais o que quer dizer que as mortes não foram em Green Hills Sanctuary, mas nas suas próprias casas. Não tenho dúvida de que tudo está bem, mas, da mesma maneira, eu... Bem, eu não queria que sucedesse qualquer coisa semelhante a Emmie.

Esfregou as mãos e olhou suplicante para Poirot. Poirot calou-se por alguns minutos. Depois falou e a sua voz tinha-se tornado grave e profunda:

A senhora pode dar-me os nomes e as direcções dos membros da seita que morreram ultimamente?

Sem dúvida, M. Poirot.
Mademoiselle, eu penso que a senhora é uma mulher de grande coragem e decisão. Possui grandes 
recursos de cinismo. Pode encarregar-se de tomar a seu cargo um trabalho que pode ser considerado de grande perigo.
Será isso o que eu mais gostarei disse a aventureira Miss Canaby.

Poirot fez uma advertência:

Veja que pode correr um grave risco. A senhora compreende. Se isso é um asilo de mistificadores, é uma coisa muito séria. Acho que é necessário a senhora tornar-se membro do Grande Rebanho. Deve exagerar a importância do legado que acaba de herdar. Deve fazer o papel de uma mulher que não tem nenhum fim na vida. Deve discutir com a sua amiga que a religião que ela adoptou é-um contra-senso. Assim, ela ficará desejosa de convertê-la. A senhora então deixa-se persuadir e entra para o Green Hills. E será uma vítima do poder de persuasão do Dr. Andersen. Penso que posso, com segurança, confiar-lhe esta missão.

Miss Canaby sorriu com modéstia:

Julgo que poderei manejar tudo muito bem!

Bem, meu amigo, tem alguma coisa para mim? O inspector Japp olhou pensativamente para o homem

que lhe fazia a pergunta e tristemente disse:

Nada do que desejava ter, Poirot. Detesto estes sujeitos religiosos de cabelo comprido, são como o veneno. Metem as mulheres em grandes embrulhadas. Mas este camarada deve ser cuidadoso. Não há nada que se lhe possa apontar. Tudo parece um pouco escuro, mas sem prejuízo!

Ouviu alguma coisa a respeito deste Dr. Andersen?

Era um químico que prometia, mas foi corrido de uma universidade alemã. Parece que a mãe era judia. Dedicou-se sempre com entusiasmo ao estudo dos mitos e das religiões orientais e empregava todo o tempo que tinha livre escrevendo vários artigos a esse respeito; alguns deles pareciam-me muito estúpidos.

Assim, é possível que seja um genuíno fanático?
Atrevo-me a dizer que é qualquer coisa muito semelhante a isso. 
E o que há a respeito dos nomes e das direcções que eu lhe entreguei?
Nada feito, ainda! Miss Everit morreu de uma colite ulcerosa. Sabe-se, é positivo, que o médico, neste caso, não se meteu em embrulhadas. Mrs. Loyd morreu com uma broncopneumonia. Lady Western morreu de tuberculose. Já sofria disso há muitos anos, muitos anos antes de se ter dedicado a esta religião. Miss Lie morreu de febre tifóide atribuída a qualquer salada que comeu no Norte de Inglaterra. Três outras adoeceram e morreram nas suas casas. E Mrs. Loyd morreu num hotel, no Sul da França. Pela distância a que estas mortes se deram não há notícia de que estejam relacionadas com o Grande Rebanho ou com o Dr. Andersen, de Devonshire. Deve ser pura coincidência. Tudo absolutamente O. K. e de acordo com o Cocker.

Hercule Poirot suspirou dizendo:

E apesar disso, mon cher, eu sinto que isto é o décimo Trabalho de Hércules, que o Dr. Andersen é o monstro Gérion e que a minha missão é destruí-lo.

Japp olhou para ele ansiosamente: Olhe para isto, M. Poirot. O senhor não tem lido ultimamente nenhum livro original, pois não? Poirot respondeu com dignidade:

As minhas observações são sempre verdadeiras, rectas e precisas.

O senhor pode iniciar uma nova religião de st próprio disse Japp com o credo: Não há ninguém tão esperto como Hercule Poirot. Amen D. C.

É a paz deste lugar que eu acho maravilhosa disse Miss Canaby suspirando profundamente.
Eu digo o mesmo Amy disse Emmeline Clegg. As duas amigas estavam sentadas na encosta de um monte de onde se abrangia, com a vista, o mar profundo e azul. A relva era verde-vivo; a terra, os penhascos e o vale pareciam avermelhados. A pequena estância agora conhecida por Green Hills Sanctuary era um promontório com cerca de seis hectares. Apenas uma estreita 
língua de areia o ligava à terra, de modo que era quase uma ilha.
Mrs. Clegg murmurou com sentimento:

A terra vermelha, a terra de alegria e promessa onde o tríplice destino será cumprido!

Miss Canaby suspirou profundamente e disse:

Eu penso que o Senhor fez tudo isto tão belo só para mostrar o seu poder.

Espera disse-lhe a amiga pelo festival desta noite: a Abundância do Pasto! Poderás ter uma maravilhosa experiência espiritual.

Miss Canaby tinha chegado ao santuário na semana anterior. A sua atitude à chegada tinha sido: Não é isto tudo um contra-senso? Realmente, Emmie, uma mulher sensível como tu, etc., etc. Até à entrevista preliminar com o Dr. Andersen ela tinha conscienciosamente tornado a sua atitude muito clara.

Não desejo sentir que estou aqui com falsas pretensões, Dr. Andersen. Meu pai era um clérigo da Igreja de Inglaterra e eu nunca me afastei da minha fé. Nunca me amparei às doutrinas pagãs.

O corpulento homem de cabelos cor de oiro sorriu para ela com um sorriso incompreensível. Olhou com indulgência para a sua figura rechonchuda, um pouco agressiva, tão honestamente sentada na cadeira e disse:

Minha querida, Miss Canaby, a senhora é amiga de Mrs. Clegg e como tal bem-vinda. E, acredite-me, as nossas doutrinas não são pagãs! Aqui, todas as religiões são bem recebidas e igualmente dignas de respeito.

Não, não o podem ser! disse a resoluta filha do reverendo Thomas Canaby.

Inclinando-se para trás, na cadeira, o mestre murmurou com a sua voz profunda:

Na casa de meu Pai há todas as moradas. Lembre-se disso, Miss Canaby!

Assim que ele se afastou, Miss Canaby disse:

Ele é realmente um homem muito belo e bonito!

Sim disse Emmeline Clegg e maravilhosamente espiritual!

Miss Canaby concordou. Ela própria tinha sentido uma aura de espiritualidade...
Porém, dominou-se a si própria. Ela não estava ali 
para ser presa da fascinação espiritual ou qualquer outra do Grande Pastor. Invocou a visão de Hercule Poirot. Pareceu-lhe muito distante e curiosamente terrena...
Amy disse Miss Canaby para si própria. Tem cautela contigo. Lembra-te do que estás aqui fazendo. Mas, à medida que os dias corriam, sentia-se facilmente dominada pelo encanto de Green Hills. A paz, a simplicidade, a alimentação deliciosa apesar de simples, a beleza dos serviços religiosos com os seus cânticos de Amor e de Adoração, o simples pronunciar das palavras do Mestre invocando tudo o que existia de melhor e de mais elevado na Humanidade... tudo ali a fazia pensar que a luta e a fealdade do mundo ficavam longe. Ali havia unicamente Paz e Amor... E naquela noite seria a grande festa do Verão, a Festa da Abundância do Pasto. E com isto, ela, Amy Canaby, estava quase a tornar-se uma iniciada, uma do Rebanho.

O festival teve lugar numa branca, resplandecente e sólida construção a que os iniciados chamavam o Sagrado Estábulo. Ali se reuniam os devotos antes de se sentarem ao sol. Usavam capas de pele de carneiro e sandálias nos pés. Os braços estavam descobertos. No centro do Estábulo, numa plataforma mais alta, sentava-se o Dr. Andersen. O grande homem de cabelos cor de oiro, barba brilhante e belo perfil nunca tinha parecido mais arrebatador. Estava vestido com um roupão verde e segurava um cajado de pastor, todo de oiro.

Levantou-se e um profundo silêncio se fez na assembleia.

Onde estão as minhas ovelhas? A multidão respondeu:

Estamos aqui, Pastor!

Elevai os vossos corações com alegria e agradecimento. Esta é a Festa da Alegria.

A Festa da Alegria e nós estamos alegres!

Não haverá mais aborrecimentos para vós. Não haverá mais dor. Tudo isto é alegria!

Tudo é alegria...

Quantas cabeças tem o Rebanho?

Três cabeças: uma cabeça de oiro, uma cabeça de prata, uma cabeça de cobre sonoro.
Quantos corpos tem o Rebanho? 
Três corpos: um corpo de carne, um corpo de corrupção, um corpo de luz.
Como podereis entrar no Rebanho?

Pelo sacramento do sangue!

Estais preparados para o Sacramento?

Estamos!

Tapem os olhos e levantem, inclinando para a frente, o braço direito!

A multidão, obediente, tapou os olhos com vendas verdes, fornecidas para esse fim. Miss Canaby, assim como as outras, levantou o braço e inclinou-o para a frente.

O Grande Pastor caminhou ao longo das filas do seu Rebanho. Ouviram-se gemidos e lamentos de dor ou de êxtase.

Miss Canaby disse para si própria, altivamente:

É a maior das blasfémias, tudo isto. Esta espécie de histeria religiosa é deplorável. Conservar-me-ei absolutamente calma e observarei as reacções das outras pessoas. Não posso seguir este caminho! Não posso! O Grande Pastor aproximou-se dela. Sentiu que lhe pegava no braço e erguendo-o sentiu uma dor fina e aguda, como que a picada de uma agulha. Ouviu-se, então, a voz dos Pastores murmurar:

O Sacramento do Sangue, que traz Alegria...

O Grande Pastor afastou-se para, mais de longe, dar uma ordem:

Desvendem-se e gozem os prazeres do espírito! O Sol acabava de descer. Miss Canaby olhou em volta. Com as outras saiu vagarosamente do rebanho. Sentiu-se, de repente, elevada, feliz. Deixou-se cair num macio banco de relva. Porque tinha ela sempre sentido que era uma mulher de meia-idade, abandonada, só? A vida era maravilhosa, afinal. Ela própria era maravilhosa. Tinha o poder do pensamento, do sonho. Não havia nada que ela não pudesse realizar! Uma onda de alegria passou por ela. Observou as devotas que a rodeavam: pareciam ter atingido repentinamente, uma elevada estatura.
Semelhantes a árvores caminhando...disse Miss Canaby para si, com reverência, e ergueu o braço: era um gesto de comando com o qual ela podia dominar o mundo. 
César, Napoleão, Hitler pobres, miseráveis criaturinhas! Eles não pensavam o que ela era capaz de fazer. Amanhã poderia conseguir a Paz no Mundo, a Fraternidade Internacional. Não mais a Guerra, não mais a Pobreza, não mais a Doença! Ela, Amy Canaby, poderia construir e comandar um novo mundo. Mas não havia necessidade de se aborrecer. O tempo era infinito: a um minuto seguia-se outro minuto, a uma hora seguia-se outra hora! Miss Canaby sentia as pernas pesadas, mas o seu espírito estava deliciosamente livre. Podia percorrer todo o universo. Dormiu mas enquanto dormiu, sonhou. Grandes espaços, vastas construções. Um mundo novo e maravilhoso...
Gradualmente, o mundo encolheu. Miss Canaby bocejou. Moveu as pernas dormentes. Que tinha sucedido desde ontem? Na última noite tinha sonhado... Havia lua! Por isso, Miss Canaby pôde distinguir as horas no relógio. O Sol sabia ela que se tinha posto às oito e dez, e faltava um quarto para as dez. Havia apenas uma hora e trinta e cinco minutos? Impossível! É ainda muito para estranhar disse Miss Canaby para si.

Hercule Poirot disse:

A senhora deve obedecer às minhas instruções com muito cuidado. Compreende?

Oh! Sim, M. Poirot, o senhor pode confiar em mím.

Falou das suas intenções de beneficiar o culto?

Sim, M. Poirot. Disse ao Mestre... desculpe-me, ao Dr. Andersen. Disse-lhe, muito emocionada, que uma maravilhosa revelação de tudo me tinha sido feita... tinha começado por zombar e acabava por crer.

«A mim, realmente, parecia-me muito natural dizer estas coisas. O Dr. Andersen, sabe?, tem um magnético encanto!»

Sim, eu percebo disse Poirot secamente.
As suas maneiras são convincentes. Qualquer pessoa sente que ele não liga muita importância ao dinheiro. «Dá o que quiser disse ele com o seu maravilhoso sorriso. Se não pode dar nada não tem importância. 
A senhora será da mesma forma uma das ovelhas do Rebanho.» «Oh, Dr. Andersen disse eu não estou assim tão mal. Acabei de herdar uma soma considerável de um parente próximo e se bem que não me seja possível tocar no dinheiro antes de cumprir as formalidades legais, há uma coisa que desejo fazer imediatamente.» E então expliquei que faria um testamento e que deixaria tudo à Irmandade. Disse-lhe que não tinha parentes próximos.
E ele, graciosamente, aceitou o legado?

Mostrou-se muito desprendido. Disse-me que até lá ainda deveriam passar muitos anos, que eu estava destinada para uma longa vida de alegria e deleite espiritual. Ele realmente falava de uma forma tocante.

Falou-lhe na sua saúde? perguntou Poirot secamente.

Sim, M. Poirot. Disse-lhe que tinha sofrido de uma lesão pulmonar, e que isso me tinha acontecido mais do que uma vez mas que com um tratamento radical, feito há uns anos num sanatório, me considerava curada.

Excelente!

Ainda é necessário dizer que sou muito sensível e que os meus pulmões têm o som de uma campainha que eu não posso ver?

É necessário afirmar isso. E mencionou a sua amiga?

Sim! Disse-lhe confidencialmente que a querida Emmily, ao lado da fortuna que recebera do marido, herdaria brevemente uma soma ainda mais importante, de uma tia que lhe era profundamente dedicada.

Eh bien, isso deve conservar a sua amiga a salvo durante esse tempo.

Oh! M. Poirot, o senhor realmente, pensa que há nisto qualquer coisa que não está bem?

É isso que vou procurar descobrir. Encontrou Mr. Cole no Santuário?

Havia lá um Mr. Cole a última vez que eu lá estive; um homem vulgar. Usava shorts verdes, cor de relva e só comia alface. Era um crente exaltado.
Eh bien, tudo caminha bem. Os meus parabéns pelo trabalho que tem feito. Tudo está agora destinado para o Festival do Outono. 
Miss Canaby, apenas um momento...
Mr. Cole agarrou-se a Miss Canaby. Os seus olhos estavam brilhantes e febris.

Tive uma visão, a mais extraordinária visão! Realmente devo contar-lha.

Miss Canaby suspirou. Estava um pouco assustada com Mr. Cole e as suas visões. Havia momentos em que ela estava verdadeiramente convencida de que Mr. Cole era doido. Achava que estas visões eram muitas vezes embaraçosas. Recordavam-lhe certas passagens daquele moderno livro alemão sobre o subconsciente que ela tinha lido antes de ir para Devon.

Mr. Cole, de olhar brilhante e lábios trémulos, começou a falar excitadamente.

Tenho estado a meditar, a reflectir na Abundância da Vida. Na Suprema Alegria da Unidade! E então, sabe a senhora, os meus olhos abriram-se e eu vi...

Miss Canaby concentrou-se e esperou que a visão de Mr. Cole não fosse como a que ele tinha tido da última vez, que tinha sido aparentemente um casamento ritual na antiga Sumer, entre um deus e uma deusa.

Eu vi! Mr. Cole inclinou-se para ela respirando com dificuldade (e os seus olhos, realmente, pareciam os de um doido). Eu vi o Profeta Elias descendo do Céu num carro de quatro rodas, brilhante como fogo.

Miss Canaby soltou um suspiro de alívio. Elias era muito melhor, não podia ser Elias.

Em baixo continuou Mr. Cole eram os altares de Baal, centos e centos deles. Uma voz gritou para mim: Olha escreve e confirma o que vais ver!

Fez uma pausa e Miss Canaby perguntou polidamente:

Sim?

Nos altares estavam as vítimas desamparadas, esperando pela faca. Virgens! Virgens! Centenas de virgens, jovens, belas, virgens nuas!

Mr. Cole uniu os lábios num beijo. Miss Canaby corou.
Então, chegam os corvos de Odin, voando do norte. Encontraram os corvos de Elias. Todos juntos, descrevem 
círculos no céu, precipitam-se sobre a presa, arrancam os olhos das vítimas que estavam metidas entre paredes e rangiam os dentes. E a voz gritou: Cumpra-se o Sacrifício! Naquele dia Jeová e Odin assinaram a fraternidade do sangue. Então, os sacerdotes caíram sobre as vítimas, levantaram as facas e mutilaram as vítimas!
Dificilmente Miss Canaby conseguiu livrar-se do maçador que se babava numa espécie de sádico fervor.

Dê-me licença, por um momento! desculpou-se ela.

Apressadamente aproximou-se de Lipscomb, o homem que ocupava o cubículo que dava acesso a Green Hills e que providencialmente abriu a passagem.

Desejava saber disse ela se encontrou um broche. Devo tê-lo deixado cair no chão.

Lipscomb, um homem nada influenciado pela suavidade e beleza de Green Hills, apenas resmungou que não tinha visto nenhum broche. Não fazia parte das suas atribuições olhar por essas coisas. Tentou libertar-se de Miss Canaby, mas ela acompanhava-o, continuando a murmurar a respeito do broche, até alcançar uma distância considerável entre ela e o fervor de Mr. Cole.

Naquele momento, o Mestre em pessoa chegou; saía do Grande Estábulo. Miss Canaby, animada pelo seu benévolo sorriso, aventurou-se a falar-lhe, a dizer o que pensava de Mr. Cole. Pensava que Mr. Cole não estava bem, muito bem.

O mestre pôs-lhe a mão no ombro:

A senhora deve expulsar o medo disse ele... O Perfeito Amor não tem medo...

Mas eu creio que Mr. Cole está doido. Aquelas visões que ele tem...

São devidas ao facto de ele ainda ver imperfeitamente... através do espelho da sua Natureza Carnal. Mas chegará o dia em que ele há-de poder encarar a Espiritualidade face a face.

Miss Canaby estava confundida. Sem dúvida, era caso para isso. Animou-se a fazer um pequeno protesto:

E realmente disse ela Lipscomb tem necessidade de ser tão abominavelmente rude?

Outra vez o Mestre teve o seu Celestial Sorriso:
Lipscomb disse ele é um fiel cão de guarda. 
É rude e tem uma alma primitiva, mas é fiel, totalmente fiel.
Deu umas passadas largas. Miss Canaby viu-o parar e pôr a mão no ombro de Cole. Esperava que a influência do Mestre pudesse alterar a maneira de ele compreender futuras visões.

De qualquer modo, só faltava, agora, uma semana para o Festival do Outono.

Na tarde que precedia o Festival, Miss Canaby encontrou-se com H. Poirot numa pequena casa de chá na sonolenta cidadezinha de Newton Woodley. Miss Canaby estava corada e ainda mais ofegante que de costume. Sentou-se sorvendo o chá e partindo uma fatia de bolo de queijo com os dedos.

Poirot fez-lhe várias perguntas a que ela respondeu com monossílabos. Depois, Poirot, perguntou-lhe:

Quantos testamentos haverá por altura do Festival?

Penso que uns cento e vinte. Emmeline está aqui sem dúvida. E Mr. Cole, realmente, tem estado bastante esquisito, ultimamente. Tem visões. Descreveu-me algumas delas. Mas eu espero, espero que ele não esteja doente. Haverá, agora, uma quantidade de novos membros, cerca de vinte novos membros que acabam de aderir.

Bem! A senhora sabe o que tem a fazer?

Fez-se um silêncio antes que Miss Canaby respondesse com uma voz estranha:

Eu sei o que o senhor me disse, M. Poirot...

Três bien!

Então, ”Miss Canaby, disse claramente e distintamente:
Mas não vou fazer isso. A sua voz tornou-se apressada e histérica. O senhor enviou-me para espiar o Dr. Andersen. Suspeita dele coisas de toda a espécie. Mas ele é um homem maravilhoso, um grande professor. Acredito nele com alma e coração! e não vou ser sua espia, M. Poirot. Já sou uma das Ovelhas do Pastor. 
O Mestre tem uma nova mensagem para o mundo e desde então eu pertenço-lhe de corpo e alma. E deixe-me pagar o chá, faça favor.
Com este espectacular desacordo, Miss Canaby colocou na mesa um xelim e três pence e saiu da sala de chá.

Non, d’un nom disse Poirot.

A criada disse-lhe duas vezes, antes que ele percebesse, que lhe estava apresentando a conta. Poirot fixou o olhar interessado de um homem que estava na mesa a seguir, corou, pagou a conta e saiu.

Ia furioso.

Mais uma vez o rebanho estava reunido no Grande Estábulo. Tinham sido cantadas as Perguntas e Respostas Rituais.

Estão preparadas para o Sacramento?

Estamos.

Vendem os olhos e levantem o braço direito!

O Grande Pastor, imponente no seu roupão verde, movia-se entre as filas dos que esperavam. O comedor de alface, o visionário Mr. Cole, a seguir. Miss Canaby, soltou um grito de dorido êxtase como se uma agulha lhe tivesse espetado a carne.

O Grande Pastor parou perto de Miss Canaby. Com as mãos tocou-lhe no braço...

Não, o senhor não faz isso! Nada disso... Eram palavras inacreditáveis, sem precedentes. Ouviu-se um rugido de raiva. As vendas verdes foram tiradas dos olhos para verem uma coisa inacreditável: o Grande Pastor debatendo-se nas garras do homem da pele de carneiro, Mr. Cole, auxiliado por outra devota.

Com um rápido assento profissional o ex-Mr. Cole disse:
Tenho aqui ordem para o prender. E devo avisá-lo de que alguma coisa que o senhor diga pode ser usada como prova no julgamento. Apareceram, então, mais figuras à porta do Grande Rebanho, figuras de uniforme azul. Alguém, então, gritou: É a polícia! Levam o Mestre! Prenderam o Mestre! 
Todas as pessoas estavam chocadas, horrorizadas... Para elas o Grande Pastor era um mártir, sofrendo como sofrem todos os grandes mestres vítimas da ignorância que por toda a parte os rodeia...
Entretanto, o inspector-detective Cole cuidadosamente embrulhava a seringa hipodérmica que tinha caído das mãos do Grande Pastor.

Minha distinta colega!

Poirot apertou calorosamente a mão de Miss Canaby e apresentou-a ao inspector-chefe Japp.

Um trabalho de primeira classe Miss Canaby disse o inspector. Teria sido impossível realizá-lo sem a sua colaboração, é um facto.

Oh! não! Miss Canaby estava transtornada. É uma grande amabilidade dizer isso. Tenho medo, sabe, tenho medo de ter realmente gostado de tudo aquilo. Senti tal excitação ao representar o meu papel! Estive quase convencida algumas vezes. Realmente sentia que era uma daquelas mulheres enlouquecidas.

Foi nisso que se baseou o seu êxito disse Japp. A senhora foi real. E só assim se podia apanhar aquele senhor! É um astucioso patife!

Miss Canaby virou-se para Poirot:

Foi um momento terrível, na casa de chá. Eu não sabia o que fazer. Tinha chegado ao ponto culminante.

A senhora foi magnífica disse Poirot com entusiasmo. Por momentos pensei que a senhora ou eu tínhamos perdido o juízo. Pensei por um minuto o que a senhora mistificava.

Foi um choque disse Miss Canaby. Justamente quando eu ia fazer-lhe confidências, vi no espelho aquele Lipscomb que guarda a entrada do Santuário. Estava sentado na mesa ao lado da minha. Não sabia se tinha sido por acaso ou se ele me tinha seguido. Como digo, fiz o melhor que podia no momento culminante e espero que possa entender-me.

Poirot sorriu:
Eu compreendi! Havia só uma pessoa sentada 
suficientemente perto para poder ouvir o que dizíamos e assim que deixei a loja consegui arranjar as coisas para poder segui-lo quando ele saiu. Quando se aproximou do Santuário compreendi que podia confiar em si e que a senhora não me deixaria ficar mal. Mas estava assustado porque o perigo para si era cada vez maior.
Mas... mas havia realmente algum perigo? O que é que estava na seringa?

Japp perguntou a Poirot:

Quer você explicar-lhe ou explico-lhe eu? Poirot disse gravemente:

Mademoiselle, este Dr. Andersen tem aperfeiçoado um esquema de exploração e assassínio, assassínio científico. A maior parte da sua vida foi dedicada a investigações bacteriológicas. Com um nome diferente, tem um laboratório em Sheffield. Faz culturas de vários bacilos. E uma das práticas dos festivais é injectar nos seus adeptos uma pequena mas suficiente dose de Cannabis Indica, que é também conhecida pelo nome de haxixe ou bhang e proporciona a ilusão de grandes e indiscritíveis alegrias. É isso o que atrai os devotos para ele. São as Alegrias Espirituais que ele promete.

A mais extraordinária disse Miss Canaby, na verdade a mais extraordinária das sensações!
É uma personalidade dominadora e poderosa. Isso constitui um grande êxito: uma personalidade dominadora, o poder de criar a histeria em massa e as reacções produzidas por esta droga. Mas tem em vista um segundo desígnio. As mulheres sós, no seu grande fervor e gratidão, fazem testamento deixando o seu dinheiro ao Culto. Uma a uma as mulheres vão morrendo. Morrem nas suas próprias casas em circunstâncias normais. Sem ser técnico vou tentar explicar-lhe. É possível fazer culturas intensificadas de determinadas bactérias. Os bacilos Com communis, por exemplo, provoca a colite ulcerosa. O bacilo da febre tifóide pode ser introduzido no organismo. Do mesmo modo, o Pneumococus. Existe também a tuberculina, que é inofensiva para uma pessoa saudável, mas que estimula uma lesão tuberculosa antiga. Percebe a esperteza do homem? Estas mortes podem dar-se em diferentes partes da região com médicos diferentes tratando do doente sem correr o risco de provocar suspeitas. 
Ele usava também, penso eu, uma substância que tem o poder de intensificar a acção de bacilos escolhidos.
É um demónio, se os demónios ainda existem disse Japp.

Poirot continuou:

Segundo as minhas ordens a senhora disse-lhe que fora uma tuberculosa. Era tuberculins que ele tinha na seringa quando Cole o deteve. A senhora é uma pessoa saudável, por isso teria sido uma picada inofensiva, e foi essa a razão por que eu insisti para lhe falar na tuberculose. Andava até horrorizado não fosse ele escolher outro bacilo, mas respeitava a sua coragem e deixei-a correr o risco.

Oh, tudo correu bem disse Miss Canaby, polidamente. Eu não penso em perigos. Apenas tenho medo dos touros no campo e coisas assim parecidas. Mas tem absoluta certeza de poder condenar esta terrível criatura?

Japp fez uma careta.

Absoluta evidência. Apreendemos, no laboratório, as culturas e tudo o que lá estava. Poirot acrescentou:

Pode-se dizer que ele já cometeu assassínios em larga escala e que não foi por a mãe ser judia que foi demitido daquela universidade, na Alemanha. Fez disso apenas uma história para contar quando aqui chegou e ganhar as simpatias. De resto, segundo penso, é um ariano de puro sangue.

Miss Canaby suspirou.

Ouest-ce qu’il y a? perguntou Poirot.

Estava pensandodisse Miss Canaby, no maravilhoso sonho que eu tive na noite do Primeiro Festival. Era haxixe, suponho. Tinha arranjado um mundo tão bonito! Nem guerra, nem pobres, nem doenças, nem fealdade...

Deve ter sido um belo sonho disse Japp com inveja.

Miss Canaby levantou-se:

Tenho de regressar a casa. Emily deve estar ansiosa. E o querido Augustus tem sentido muito a minha falta.

Hercule Poirot disse com um sorriso:
Receia talvez que, assim como ele, a senhora tivesse ido morrer por Hercule Poirot! 
_sec+Rom:11_ XI

 AS MAÇAS DAS HESPÉRIDES


Hercule Poirot olhou pensativamente para o rosto do homem que estava sentado por detrás da secretária de mogno. Reparou nas suas sobrancelhas espessas, no seu queixo voluntarioso, nos seus penetrantes olhos sonhadores. Compreendeu, pelo olhar daquele homem, porque é que ele se tinha tornado o grande potentado das finanças que era. E olhando as suas delicadas e bem modeladas mãos, compreendeu, também porque é que Emery Power tinha atingido tanto renome como grande coleccionador e era conhecido, além Atlântico, como um profundo entendedor de obras de arte. A sua paixão pela arte foi-se desenvolvendo ao mesmo tempo que a sua paixão pela história. Não era suficiente, para ele, que uma dada peça fosse bela; exigia, também, que tivesse consigo uma tradição.

Emery Power expunha as suas ideias. A sua voz era calma, era uma voz distinta mas mais directa do que muitas de grande volume.

Sei que o senhor agora não se encarrega de muitos casos, mas penso que poderá tomar conta do meu.

É, então, um caso de muita urgência?

É de grande urgência para mim.

Poirot conservava-se numa atitude de curiosidade; assim, com a cabeça ligeiramente inclinada para o lado, parecia um pintarroxo pensativo.

O outro continuou:

Trata-se de recuperar uma obra de arte. Para ser exacto, uma taça dourada da Renascença. Parece que essa taça foi usada pelo papa Alexandre VI, Rodrigo Bórgia, que às vezes a apresentava a algum dos seus convidados para beber. Esse convidado, M. Poirot, habitualmente morria.

Uma bonita história disse Poirot.
Ao seu passado associava-se, sempre, a violência. Foi roubada mais do que uma vez. A morte acompanhava-a desde sempre. Uma onda de sangue seguiu-a através das idades. 
Por causa do seu intrínseco valor ou por qualquer outra razão?
O seu valor intrínseco é, na verdade, considerável. O seu lavrado é raro; diz-se ter sido feito por Benevenuto Cellini. O desenho representa uma árvore em volta da qual se enrola uma serpente de pedrarias e as maçãs que pendem da árvore são formadas por belas esmeraldas.

Poirot murmurou com um crescente interesse:

Maçãs?

As esmeraldas são, particularmente, finas; só há rubis na serpente, mas o verdadeiro valor da taça é a sua real associação com os factos históricos. Foi posta à venda pelo Marchese di San Veratino, em 1929. Os coleccionadores cobriam os lances uns dos outros e eu finalmente segurei-a pela quantia de trinta mil libras.

Poirot levantou as sobrancelhas e murmurou:

Sem dúvida, uma soma principesca! O Marchese di San Veratino esteve com sorte.

Quando eu desejo uma coisa tenho posses para pagá-la, M. Poirot disse Emery.

Poirot retorquiu naturalmente:

O senhor, sem dúvida, conhece aquele provérbio espanhol que diz: Toma aquilo que desejares e paga por isso, disse Deus.

Por momentos, o milionário franziu a testa. Um clarão de raiva iluminou-lhe o olhar ao mesmo tempo que disse friamente:

O senhor está a caminho de ser filósofo, M. Poirot!

Cheguei à idade da reflexão, monsieur.

Sem dúvida, mas não é a reflexão que me restitui a taça.

Pensa que não?

Creio que deve ser necessário agir. Poirot abanou a cabeça placidamente:

Muitas pessoas laboram no mesmo erro. Mas, peço-lhe perdão, Mr. Power, se me afastei do assunto para que fui chamado. O senhor disse que comprou a taça no Marchese de San Veratino?

Exactamente! O que tenho a dizer é que foi roubada antes de estar na minha posse.
Como sucedeu isso? 
O Palácio do Marquês foi assaltado de noite e oito ou dez peças de considerável valor, incluindo a taça, foram roubadas.
E que fizeram para resolver o caso?

A polícia, é claro, encarregou-se disso. O roubo foi considerado como trabalho de um conhecido bando internacional. Dois elementos desse bando, segundo creio: um francês chamado Dublay e um italiano chamado Ricovetti, foram apanhados e condenados. Algumas das coisas de valor roubadas foram encontradas na posse deles.

Mas não a taça do Bórgia?

A taça do Bórgia, não! Há, tanto quanto a polícia pode descobrir actualmente, três homens ligados ao roubo. Dois deles, justamente, mencionaram um terceiro, um irlandês chamado Patrik Casey. Este último era um esperto ladrão nocturno. Foi ele que disse que tinham roubado as coisas. Dublay era o cérebro do bando e planeava os golpes. Ricovetti conduzia o carro e esperava pelas coisas que iam descendo para ele.

E as coisas roubadas repartiam-nas em três partes?

Possivelmente! Os artigos que foram recuperados eram os de menor valor. Parece-lhe possível que as peças mais notáveis tenham sido levadas para longe daqui?

E o terceiro homem, Casey, nunca foi entregue à Justiça?

Não, no sentido que quer dizer. Já não era muito novo. Os seus músculos estavam mais cansados do que em forma. Duas semanas mais tarde caiu do quinto andar de uma construção e teve morte instantânea.

Onde estava ele?

Em Paris! Estava a preparar-se para roubar a residência de um banqueiro milionário.

E a taça nunca mais foi vista?

Exactamente, nunca mais foi vista!

E nunca foi posta à venda?

Estou convencido de que não. Posso dizer que não só a polícia mas também alguns agentes particulares têm estado alerta.

Que dinheiro pagou?
O Marchese é uma pessoa muito escrupulosa. 
Ofereceu-se para restituir o dinheiro visto que a taça fora roubada da sua casa!
Mas o senhor não aceitou?

Não!

E porquê?

Eu lhe digo: porque prefiro encarregar-me eu próprio do assunto.

Quer dizer que se tivesse aceitado a oferta do Marchese, a taça recuperada tornar-se-ia propriedade dele, ao passo que assim, é realmente sua?

Exactamente!

Que motivos o levaram a tomar essa atitude? Com um sorriso, Emery Power respondeu:

Vejo que o senhor aprecia esse ponto. Bem, M. Poirot, é simples! Pensei que sabia quem tinha a taça em seu poder naquela ocasião.

É curioso! E quem a tinha?

Sir Reuben Rosenthal! Ele não era apenas um coleccionador, era nessa altura meu inimigo pessoal. Fomos rivais em vários negócios e em todos eu sempre me saí melhor. A nossa rivalidade chegou ao ponto culminante na disputa da taça do Bórgia. Cada um de nós estava decidido a possuí-la. Era mais ou menos um ponto de honra! Os nossos representantes no leilão cobriam os lances um do outro.

E o último lance do seu representante conquistou o tesouro...

Não precisamente! Tomei a precaução de ter um segundo agente. Escolhi ostensivamente o representante de um negociante de Paris. Nenhum de nós, compreende, desejava ceder ao outro, mas permitir a uma terceira pessoa adquirir a taça era um assunto muito diferente.

De facto, une petite deception!

Exactamente! Mas mal terminou o leilão Sir Reuben descobriu que tinha sido enganado.

Poirot sorriu. Era um sorriso revelador:

Agora compreendo a sua situação. Julga que Reuben, resolvido a não ser derrotado, determinou deliberadamente o roubo?

Emery Power levantou uma das mãos:
Oh! Não, não! Não seria tão imprevidente como isso. O caso resume-se nisto: pouco depois, Sir Reuben 
teria comprado uma taça da Renascença de origem não especificada...
Cuja descrição teria sido conhecida pela polícia?

A taça não tinha sido colocada completamente à vista da assistência.

Julga que teria sido suficiente para Sir Reuben saber que a possuía?

Sim! Além do que, se eu tivesse aceitado a oferta do Marchese, teria sido possível a Sir Reuben fazer um arranjo particular com eles permitindo assim que a taça passasse legalmente para a sua posse.

Parou um minuto e continuou:

Mas, iludindo a propriedade legal, haveria ainda possibilidade de reaver a minha propriedade?

Poirot disse abstractamente:

Quer dizer: o senhor teria arranjado as coisas de maneira a que a taça fosse roubada a Sir Reuben?

Roubada, não, M. Poirot. Tentaria apenas recuperar o que era meu.

Depreendo que não teve êxito.

Por uma razão muito simples: a taça nunca esteve em poder de Rosenthal.

Como é que sabe?

Houve recentemente uma luta de interesses num negócio de óleo. Os meus interesses e os de Rosenthal, agora coincidem. Somos aliados e não inimigos. Eu falei-lhe abertamente sobre o assunto e ele disse-me que a taça nunca havia estado em seu poder.

E o senhor acredita nele?

Acredito!

Poirot perguntou pensativamente:

Então, há quase dez anos que têm lutado sem razão para tal?

O outro respondeu com amargura:

É o que nós temos feito!

E agora: vão recomeçar? O outro assentiu.

É aqui que eu entro em acção? Sou o cão que o senhor põe numa pista já muito velha!

Emery Power respondeu com secura:
Se o assunto fosse fácil não teria sido necessário 
mandá-lo chamar. Claro, se pensa que é impossível acertou na palavra.
Poirot levantou-se e disse:

Não conheço a palavra impossível, monsieur. Pergunto apenas a mim próprio: é este assunto suficientemente importante para que eu me encarregue dele?

Emery Power, sorrindo outra vez, disse:

Tem, pelo menos, este interesse: peça o que quiser pelo seu trabalho.

O homenzinho olhou para o homenzarrão:

Tem assim tanto empenho nessa obra de arte? Certamente que não!

Ponha o caso desta maneira: assim como você, eu não aceito a derrota.

Poirot inclinou-se e disse:

Sim! Posto dessa maneira... eu compreendo!

O inspector Wagstaffe estava interessado.

A taça Veratrino? Sim, lembro-me disso! Estive encarregado desse assunto. Falo um pouco de italiano e fui à Itália para me avistar com os Macarronis. Nunca mais apareceu, até hoje, uma coisa tão estranha.

Qual é a sua opinião? Uma compra particular? Wagstaffe abanou a cabeça:

Duvido! Mas, claro, é vagamente possível!...

Não na minha opinião. É muito mais simples do que isso. A coisa foi escondida e o único homem que sabia onde se encontrava está morto.

Refere-se a Casey?

Sim, a esse mesmo!

Talvez a tivesse escondido algures na Itália ou pode ter sucedido tê-la levado para fora do país às escondidas. Mas escondeu-a, e onde quer que foi posta ainda lá se encontra.

Poirot suspirou:
É uma teoria romântica. Pérolas escondidas em moldes de gesso. Qual é a história? O Busto de Napoleão, não é verdade? Mas neste caso não são jóias! É uma 
taça de oiro, sólida e grande. Difícil de esconder, não acha?
Wagstaffe disse vagamente:

Não sei, mas suponho que era fácil de esconder. Debaixo do soalho, ou coisa parecida.

O Casey tinha casa própria?

Sim, em Liverpul! disse Wagstaffe, com um trejeito. E ali não encontraram nada debaixo do soalho. Assegurei-me disso.

E a respeito da família?

A mulher era uma senhora decente e estava tuberculosa. Muito preocupada com a vida que o marido levava. Era muito religiosa, uma fervorosa católica, mas nunca se decidiu a deixá-lo. Morreu há um par de anos. A filha seguiu-lhe os passos, fez-se freira. Com o filho foi diferente. Tal pai tal filho! A última vez que ouvi falar dele causava êxito na América.

Poirot escreveu no caderno de notas a palavra América e disse:

Será possível que o filho de Casey saiba onde é o esconderijo?

Não acredito que ele o soubesse. Já se teria descoberto se assim fosse.

A taça podia ter sido derretida. Mas não sei. O seu grande valor para os coleccionadores... Há uma grande quantidade de negócios estranhos com os coleccionadores.

Às vezes disse Wagstaffe acho que os coleccionadores não têm moral de espécie alguma.

Ah! fez Poirot. Você surpreender-se-ia se Sir Reuben estivesse implicado nisto a que você chama negócios estranhos?

Wagstaffe fez um trejeito e respondeu:

Não me surpreenderia. Ele não é muito escrupuloso quando se trata de obras de arte.

E sobre os restantes membros do bando, que sabe o senhor?

Ricovetti e Dublay sofreram grandes penas. Imagine que eles só devem ser soltos por estes dias.

Dublay é francês não é?

É! Era o cérebro do bando.
Havia mais algum membro no bando? 
Havia uma rapariga conhecida por Red Kate! Arranjou emprego como criada de uma senhora de idade, descobriu tudo acerca de um roubo em que os objectos tinham sido escondidos. Após uma breve pausa acrescentou: Creio que foi para a Austrália.
Mais alguém?

Um rapaz chamado Hugh Heam, também suspeito de pertencer ao bando. É comerciante. Tem a sede principal do seu negócio em Istambul mas não tem nenhuma loja em Paris. Não há nada provado contra ele. Mas ele é um freguês difícil.

Poirot suspirou. Olhou para o seu livrinho de notas onde havia escrito as palavras América, Austrália, França, Turquia... e murmurou:

Pode pôr uma facha em volta do mundo.

Perdão? disse o inspector Wagstaffe.

Estava a pensar disse Poirot que uma volta ao mundo parece estar indicada.

Era hábito de Poirot discutir os casos com o seu competente criado George. Quer dizer que Poirot deixava escapar certas observações às quais George podia replicar com a sabedoria que tinha adquirido no decorrer da sua carreira, de servidor de um senhor.

Se tivesses de enfrentar a necessidade de fazer investigações em cinco partes diferentes do mundo que é que tu farias?

Bem senhor, pelo ar vai-se mais depressa, se bem que algumas pessoas digam que provoca o enjoo... Por mim, não posso dizer nada.

Qualquer pessoa pergunta a si próprio disse Hercule Poirot o que teria feito Hércules?

O senhor refere-se ao homem da bicicleta?
Ou... prosseguiu Poirot uma simples pergunta: que fez ele? E a resposta, George, é que ele viajou energicamente. Mas foi forçado, no fim, para obter informações como hoje se costuma dizer umas de Prometeu outras de Nero. 
Ah! Sim? Nunca ouvi falar desses senhores. É alguma agência de viagens, M. Poirot?
Hercule Poirot, encantado com o som da própria voz, continuou:

O meu cliente Emery Power exige apenas uma coisa: acção! Mas é inútil dispensar energia numa acção desnecessária. Há uma regra doirada na vida, George: nunca faças tu mesmo o que os outros podem fazer por ti. Especialmente acrescentou Poirot levantando-se e caminhando para a estante quando não se olha a despesas!

Tirou da estante um maço de papéis marcados com a letra D e abriu na palavra:Agência de Detectives Dignos de Confiança.

O moderno Prometeu! continuou Hercule Poirot. Agradeço-te, George, que copies para mim alguns nomes e direcções: Messers Hankerton; Messers Laden and Bosher, Sidney; Signor Giovanni Mezzi, Roma; M. Nahum, Istambul; Messers Roger et Franconard, Paris. Agora, faz-me o favor de ver quais são os comboios para Liverpul.

Sim, senhor; o senhor vai a Liverpul?

Posso ter de ir de um momento para o outro. É possível que vá, até, mais longe. Mas não por enquanto!

Três meses mais tarde Hercule Poirot estava sentado na ponta de um rochedo, olhando o oceano Atlântico. As gaivotas levantavam-se e mergulhavam com gritos prolongados e melancólicos. O ar estava leve e húmido.
Hercule Poirot tinha sentido, o que é frequente naqueles que vêem pela primeira vez a Inishgowlan, que tinha alcançado o fim do mundo. Nunca, na sua vida, tinha imaginado uma coisa tão remota, tão abandonada, tão desolada. Tinha beleza, melancolia, calma; a beleza de um longínquo e inacreditável passado. Aqui, no Oeste da Irlanda, os romanos nunca tinham marchado tramp, tramp, tramp: nunca tinham fortificado um campo, nunca tinham construído uma estrada boa e útil. Uma terra onde o 
senso prático e o caminho ordenado da vida eram desconhecidos.
Hercule Poirot olhou para a biqueira dos seus sapatos de coiro e suspirou. Sentiu-se desamparado e completamente só. A vida que estava habituado a fazer não era apreciada neste lugar.

Os seus olhos percorreram, uma vez mais, a desolada linha da costa e, depois, viraram-se para o mar. Aqui ou ali, segundo rezava a tradição, ficavam as ilhas de Blest, a Terra da Juventude...

A macieira, a canção e o oiro... disse de si para consigo.

E repentinamente acordou. Tinha-se quebrado o sortilégio. Era outra vez Poirot, com os seus sapatos de cabedal e o seu fato cinzento-escuro de gentleman.

Não muito longe ouviu o som de uma campainha. Reconheceu aquela campainha. Era um som que lhe tinha sido familiar desde a infância. Começou a caminhar ao longo do rochedo. Passados dez minutos avistou uma construção. Estava cercada por uma parede alta com um grande portão de madeira. Hercule Poirot aproximou-se do portão e bateu. Havia uma grande aldraba de ferro. Então, puxou cautelosamente um arame de ferro ferrugento e o som áspero de uma campainha ouviu-se lá dentro.

Um postigo abriu-se para o lado e apareceu um rosto. Era um rosto desconfiado, emoldurado numa touca branca e engomada. Tinha um pequeno bigode no lábio superior, mas a voz era de mulher, voz que Hercule Poirot classificou como sendo de uma femme formidable.

É aqui o Convento de Santa Maria de Todos os Santos?

A femme formidable respondeu com dureza:

E que outra coisa poderia ser?

Hercule Poirot não tentou responder e disse:

Gostaria de ver a madre superiora.

A criatura não estava muito resolvida mas no fim cedeu. Afastaram-se as trancas, a porta abriu-se e Poirot foi conduzido a uma sala vazia onde os visitantes eram recebidos.

Uma freira sorriu-lhe sem razão, balançando o rosário que tinha preso à cintura.
Hercule era um católico de nascença. Compreendia 
o ambiente em que se encontrava. Quando a madre superiora apareceu, Poirot disse-lhe:
Peço desculpa pela maçada, ma mère, mas deve estar aqui uma religieuse que no mundo se chamava Kate Casey.

A madre superiora concordou fazendo um sinal com a cabeça e disse:

A irmã Mary Ursula, em religião. Poirot, então, explicou:

Há certas coisas que precisam de ser esclarecidas. Julgo que a irmã Mary Ursula me poderá ajudar. Ela tem informações que podem ser valiosas.

A madre superiora abanou a cabeça. Com a sua face tranquila, com a sua voz calma e remota disse:

A irmã Ursula não poderá ajudá-lo!

Mas eu asseguro-lhe que... Poirot parou de repente.

Então a madre superiora disse:

A irmã Mary Ursula morreu há dois meses!

No bar do hotel de Jimmy Donovan, Poirot sentava-se desconfortavelmente com as costas encostadas à parede. Não se poderia chamar a isto um hotel. A cama estava partida e a janela do quarto tinha também dois vidros partidos, deixando entrar aquele ar da noite que Poirot detestava. A água quente que pediu estava morna e a refeição que havia comido causava-lhe curiosas e dolorosas sensações no estômago.

Havia mais cinco homens no bar; falavam sobre política. Poirot não compreendia a maior parte das coisas que eles diziam. De resto, também não se interessava. De repente, sentiu um deles sentar-se ao seu lado. Era de uma classe um pouco diferente dos outros. Tinha a marca de um homem da cidade.

Com muita dignidade, o homem disse:
Afirmo-lhe que o cavalo Pride de Pegeen não tem nenhuma probabilidade de ganhar. Acredite-me... toda a gente devia acreditar no que eu digo. Sabe quem eu sou? Atlas é o meu nome, Atlas do Dublin Sun... Levei toda a 
temporada a dizer que o cavalo não ganharia... Não ganhei no cavalo Girl de Larry? Vinte e cinco libras contra uma! Siga o que Atlas diz e não poderá errar!
Poirot olhou para ele com uma estranha reverência e, depois, disse com a voz trémula:

Mon Dieu Será um presságio?

Tinham passado algumas horas. A Lua mostrava-se de tempos a tempos espreitando coquetemente por detrás das nuvens, Poirot e o seu novo amigo já tinham caminhado algumas milhas. O primeiro coche. Atravessou-lhe o espírito a ideia de que havia sapatos melhores que os seus de cabedal, para caminhar no campo. George tinha-lhe dado a entender que uns sapatos grossos eram mais apropriados para andar no campo. Porém, Poirot não fizera caso. Gostava de ver os pés bem calçados. Mas agora, caminhando ao longo deste carreiro pedregoso, convenceu-se de que havia outros sapatos.

É este o caminho que o padre me indicaria? Não terei eu um pecado mortal na minha consciência?

Você está somente restituindo a César o que é de César disse Poirot.

Tinha chegado ao muro do convento. Atlas preparava-se para fazer a sua parte. Com um gemido exclamou que estava completamente arrasado!

Hercule Poirot falou-lhe com autoridade:

Esteja calado. Não é o peso do mundo que você vai suportar, é apenas o peso de Hercule Poirot.

Atlas, olhando fixamente duas notas novas de cinco libras disse cheio de esperança:

Talvez amanhã de manhã já me lembre como as ganhei. Receio que o padre O’Reily me repreenda.

Esqueça-se de tudo, meu amigo. Amanhã o mundo será seu.

Atlas murmurou:
E em que cavalo apostarei eu? No Working Lad! É um grande cavalo, um bonito cavalo. Em Sheila Royne! Aposto nela sete contra um. Calou-se e, depois, acrescentou: 
É fantasia minha ou ouvi-o mencionar o nome de um deus pagão? Hercule, disse o senhor? Deus seja louvado! Realmente há um cavalo de nome Hercule que corre amanhã.
Meu amigo disse Poirot, aposte o seu dinheiro nesse cavalo. Eu digo-lhe que Hercule não poderá falhar!

E foi certo, no dia seguinte, inesperadamente, o vencedor foi o cavalo Hercule, de um tal Mr. Rosslyn.

Hercule Poirot desfez o pacote que estava elegantemente embrulhado. Primeiro o papel castanho, depois o algodão e por fim o papel de seda. Na secretária, em frente de Emery Power, colocou uma reluzente taça de oiro. Gravada nela via-se uma árvore com maçãs de esmeraldas. O milionário suspirou profundamente e disse:

Os meus parabéns, M. Poirot.

Hercule Poirot inclinou-se. Emery Power estendeu a mão acariciando a taça com os dedos e num tom de voz profundo exclamou:

Minha!

Hercule Poirot concordou:

Sua!

O outro suspirou. Recostou-se e perguntou:

Onde a encontrou?

Encontrei-a num altar respondeu Poirot. Emery Power fixou-o pasmado e Poirot continuou:

Uma filha de Casey era freira. Estava para tomar os últimos votos quando o pai morreu. Era uma rapariga ignorante, mas devota. A taça estava escondida em casa do pai, em Liverpul. Levou-a para o convento como penitência pelos pecados do pai. Ofereceu-a para ser usada em glória de Deus. Acho que as freiras nunca descobriram o seu valor. Tomaram-na, provavelmente, como uma relíquia de família, aos seus olhos era um cálice e como tal a usavam.

Emery Power, entusiasmado, exclamou:

Que história extraordinária! Que é que o levou ao convento?
Poirot encolheu os ombros: 
Talvez, um processo de eliminação. E havia ainda o facto extraordinário de que ninguém tentou jamais desfazer-se da taça. Isso dava a entender que ela se encontrava num lugar onde as coisas materiais não tinham valor. Lembrei-me que a filha de Patrick Casey era freira e...
Bem, dou-lhe outra vez os meus parabéns disse Power com alegria. Diga-me quanto lhe devo e passo-lhe um cheque.

Hercule Poirot respondeu:

Não me deve nada!

O outro fixou-o, pasmado.

Que significa isso?

Quando era pequeno leu, alguma vez, contos de fadas? Nelas o rei dizia sempre: Pede-me o que quiseres!

Então sempre pede qualquer coisa.

Sim, mas não dinheiro! apenas um simples favor!

Bem! E que é? Quer uma informação sobre a bolsa?

Não, isso seria também dinheiro, mas de outra forma. O meu pedido é mais simples do que isso.

Que é, então?

Hercule Poirot colocou as mãos sobre a taça:

Devolva isto ao convento!

Fez-se um silêncio. Depois Emery Power perguntou:

Está doido?

Poirot abanou a cabeça:

Não, não estou doido! Veja, eu mostro-lhe uma coisa...

Levantou a taça e com o dedo carregou nas maxilas da cobra que estava enrolada na árvore. O fundo da taça deslocou-se mostrando o pé oco.

Vê? Esta era a taça em que o papa Bórgia bebia. Através deste buraco o veneno passava para a bebida. Você mesmo disse que a história desta taça era diabólica. Violência e sangue e paixões diabólicas acompanharam sempre quem a possuía. Talvez alguma desgraça lhe aconteça.

Superstição!
Possivelmente! Mas porque tem tanto empenho em possuir esta peça? Certamente que não é só pela sua 
beleza. Nem pelo seu valor. O senhor tem uma centena, talvez um milhar de coisas belas e raras. Quere-a para satisfazer o seu orgulho. O senhor estava resolvido a não ser derrotado, Eh bien, não foi derrotado. Ganhou! A taça está em seu poder. Mas porque não há-de ter agora um gesto grande, um gesto supremo? Mande-a para onde há dez anos ela tem estado em sossego. Deixe que a sua maldição seja ali purificada. Pertenceu uma vez à Igreja, deixe-a voltar para a Igreja. Deixe-a mais uma vez sobre o altar, purificada e absolvida como nós esperamos que as almas dos homens sejam também purificadas e absolvidas dos seus pecados.
Inclinou-se para a frente e, após uma breve pausa, prosseguiu:

Permita-me que lhe descreva o lugar onde a encontrei: o Jardim da Paz, dando para o mar ocidental, para um esquecido Paraíso de Juventude e Eterna Beleza. E continuou, descrevendo em simples palavras o remoto encanto de Inishgowlan.

Emery Power recostou-se, com a mão sobre os olhos, e disse finalmente:

Nasci na cosia ocidental da Irlanda. Deixei a terra quando era rapaz para ir para a América...

Poirot, gentilmente, interrompeu-o:

Eu sei!

O milionário levantou-se. Os seus olhos voltaram a ter a mesma expressão de astúcia. E, então, um fraco sorriso lhe assomou nos lábios:

Você é um homem estranho, M. Poirot. Faço-lhe a vontade. Leve a taça para o convento como oferta minha. Um presente bastante caro. Trinta mil libras. E que terei em troca?

Poirot respondeu gravemente:

As freiras rezarão missas por sua alma.

O sorriso do ricaço abriu-se era um sorriso ávido, faminto:

No fundo, pode ser uma colocação de dinheiro. Talvez a melhor que eu tenha feito até hoje!

No locutório do convento, Hercule Poirot contou a sua história e restituiu o cálice à madre superiora.
Diga-lhe que agradecemos e que rezaremos por ele disse a religiosa. 
Ele precisa das vossas preces respondeu Poirot.
Então, é um homem infeliz? Poirot respondeu:

Tão infeliz que já se esqueceu o que significa a palavra felicidade. Tão infeliz que não sabe que é infeliz.

A freira murmurou suavemente:

Ah! É um homem rico!...

Poirot nada disse pois sabia que não havia mais nada a dizer...

_sec+Rom:12_ XII

 A CONQUISTA DE CÉRBERO


Hercule Poirot, balançando de um lado para outro, no metropolitano, atirado ora de encontro a um corpo ora a outro, pensava para si que havia pessoas a mais no mundo! Certamente, havia pessoas a mais no mundo subterrâneo de Londres àquela hora da tarde, às seis e meia da tarde. Calor, barulho multidões, proximidade os desagradáveis apertos de mãos, braços, corpos, ombros... Cercado e apertado por estranhos, pensava ele desgostoso um lote de estranhos simples e desinteressantes. A humanidade vista assim, em massa, não era atraente. Poucas vezes se via uma cara brilhando de inteligência, poucas vezes se via une femme bien. Que fúria atacava as mulheres para assim tricotarem num comboio cheio de gente? Mas as mulheres conseguiam fazê-lo! Se acontecia arranjarem lugar, aparecia logo uma linha cor de camarão e imediatamente se ouvia o clique-clique das agulhas.

Nem repouso, pensava Poirot, nem graça feminina. O seu espírito antiquado revoltava-se contra o esforço e a pressa do mundo moderno. Todas estas jovens que o cercavam, eram tão iguais e sem encanto, tão faltas de feminilidade rica e sedutora! Ah! Ver uma femme du monde cherie simpática, spirituelle, uma mulher com curvas amplas, uma mulher extravagantemente vestida! Antigamente havia dessas mulheres... Mas, agora, agora...
O comboio parou numa estação. Uma onda de pessoas saiu, empurrando Poirot contra um par de agulhas 
de tricot. Uma outra onda entrou, apertando ainda mais. O comboio pôs-se novamente em marcha com um esticão. Poirot foi atirado contra uma mulher gorda, carregada de embrulhos pesados; disse Pardon e chocou com um homem cuja mala o magoou. Sentiu que o seu bigode começava a tremer. Quel enter! Felizmente sairia na estação seguinte. Cerca de mais umas cem pessoas saíram também nessa estação que era Picadilly Circus. Como uma onda enorme tivesse inundado a plataforma, Poirot encontrou-se outra vez apertado na escada que o levaria à superfície da terra. Eis-me fora pensou Poirot das regiões infernais... Doía-lhe o joelho que tinha apanhado com uma mala quando subia as escadas.
Nesse momento uma voz pronunciou o seu nome. Poirot levantou os olhos. Nas escadas que desciam deparou-se-lhe uma figura do passado. Uma mulher de formas cheias. Na cabeça, de farta cabeleira ruiva, usava um chapéu enfeitado de pequenos pássaros e peles exóticas cobriam-lhe os ombros; tinha a boca vermelha, completamente aberta e a sua voz estrangeirada ecoou com fragor. Tinha bons pulmões.

-É isso! gritou! Mas é isso! Mon cher Hercule Poirot! Devemos encontrar-nos novamente, insisto. Mas o destino é menos inexorável que o comportamento de duas escadas movendo-se em sentido contrário. Firmemente, sem demora, Hercule Poirot tinha sido levado para cima enquanto a condessa Vera Rossakoff era levada para baixo. Torcendo-se para o lado, inclinando-se na balaustrada, Poirot gritou desesperadamente:

Chère madame... Onde poderei encontrá-la?

A resposta chegou fracamente, vinda das profundezas. Parecia, naquele momento, estranhamente distante:

No Inferno!
Poirot pestanejou e tornou a pestanejar. De repente cambaleou. Sem dar por isso tinha alcançado o andar superior e tinha-se esquecido de seguir como devia ser. A multidão passava apressada a seu lado. Um pouco mais adiante outra multidão comprimia-se na escada que descia. Poderia juntar-se-lhe? Que tinha querido dizer a condessa? Sem dúvida que viajar nas entranhas da terra, àquela hora de movimento, era o Inferno. Se tinha sido 
isso o que a condessa queria dizer não podia deixar de concordar com ela...
Resolutamente, Poirot introduziu-se na multidão que descia e desceu outra vez às profundezas. No princípio da escada nem sinal da condessa. Poirot ficou sem saber que cor de luz devia seguir.

Tinha a condessa optado pela Bakerloo Line ou pela Picadilly Line? Poirot foi a todas as plataformas em volta. Andou no meio das multidões que deixavam ou tomavam os comboios, mas em lado nenhum descobriu a vistosa figura russa, a condessa Vera Rossakoff.

Cansado, derrotado e desanimado, Hercule Poirot, uma vez mais, subiu à superfície e embrenhou-se na multidão de Picadilly Circus. Chegou a casa numa excitação terrível. O infortúnio dos homens pequenos a desejarem mulheres grandes e vistosas! Nunca tinha conseguido escapar à fascinação fatal que a condessa exercia sobre ele. Embora quase vinte e cinco anos tivessem passado desde a última vez que a tinha visto ainda sentia a sua magia. Embora a pintura que ela agora usava fizesse recordar o pôr do Sol de um cenário, para Poirot ela representava ainda a mulher sumptuosa e atraente que ainda fazia ferver o sangue do pequeno burguês. A maneira hábil dela roubar as jóias ressuscitou a velha admiração que sempre tivera por ela: encontrara-a outra vez e de novo a perdera!

No Inferno, tinha ela dito. Os seus ouvidos não o teriam enganado? Teria ela mesmo dito isso?

Que quereria ela significar com aquela palavra? Referia-se aos metropolitanos de Londres? Ou deveriam tomar-se as suas palavras no sentido religioso? Mesmo que o seu modo de vida a destinasse ao Inferno, a sua cortesia russa não devia sugerir-lhe que Hercule Poirot também estivesse destinado a ir para o mesmo lugar. Não! Ela devia referir-se a qualquer coisa muito diferente. Hercule Poirot estava pasmado. Que mulher tão misteriosa! Outra qualquer teria gritado: no Ritz ou no Claridge! Mas Vera Rossakoff tinha gritado acerbamente: Inferno!
Poirot suspirou, mas não se considerou derrotado. Apesar da sua perplexidade, adoptou, na manhã seguinte, 
o caminho mais fácil e directo; e aconselhou-se com a sua secretária, Miss Lemon.
Miss Lemon era inacreditavelmente feia mas muito eficiente. Poirot, para ela, não era ninguém em particular, era simplesmente o seu patrão.

Miss Lemon apresentava-lhe sempre um trabalho impecável. Os seus pensamentos e sonhos particulares estavam agora concentrados num novo sistema de arquivo que ela vagarosamente aperfeiçoava no interior do seu espírito.

Miss Lemon, posso fazer-lhe uma pergunta?

Certamente, M. Poirot! Mios Lemon parou de escrever e aguardou atentamente.

Se uma amiga lhe pedisse para se encontrarem no Inferno, que faria você?

Miss Lemon como de costume não pensou. Sabia, como é hábito dizer, responder a todas as perguntas.

Acho que seria aconselhável telefonar para lhe reservarem uma mesa.

Poirot olhou-a abismado. E, gaguejando, perguntou:

Telefonaria para lhe arranjarem uma mesa? Miss Lemon assentiu e puxou o telefone para junto de si:

Para hoje à noite? E tomando o silêncio de Poirot como assentimento, marcou o número rapidamente:

Temple Bar 14578? Fala do Inferno? Faz favor de reservar uma mesa para dois. M. Hercule Poirot. Onze horas.

Poisou o auscultador e os seus dedos tocaram nas teclas da máquina. Notava-se uma fraca expressão de impaciência nas suas feições. Já fiz o que devia parecia dizer a sua expressão. Agora, o patrão podia deixá-la continuar o trabalho. Mas Hercule Poirot precisava de uma explicação:

Mas, no fim de contas, que quer dizer isso do Inferno? perguntou ele.

Miss Lemon mostrou-se surpreendida:

Oh!, não sabe, M. Poirot? É um clube que está na moda, dirigido por uma russa. Posso arranjar tudo muito facilmente para o tornar sócio, ainda hoje.
Em vista de ter perdido bastante tempo (na sua opinião) atirou-se às teclas da máquina com rapidez. 
Às onze daquela noite, Poirot entrou num clube sobre cuja porta se via um anúncio luminoso. Foi recebido por um homem de farda vermelha que tomou conta do seu sobretudo. Indicou-lhe umas escadas que conduziam ao andar inferior. Em cada degrau estava escrita uma frase. A primeira dizia:
A minha intenção foi boa... A segunda:

Limpa bem a ardósia e começa de novo. A terceira:

Posso desistir quando quiser.

Eram as boas intenções que suavizavam o caminho para o Inferno. Hercule Poirot murmurou: C’est bien imagine, ca!

Desceu as escadas. Ao fim destas havia um tanque com água e lilazes escarlates. Sobre o tanque havia uma ponte em forma de barco pela qual Poirot passou. À sua esquerda, numa espécie de caverna de mármore sentava-se o maior, o mais feio e o mais preto cão que Poirot jamais tinha visto. E estava sentado, muito direito, esmagriçado e imóvel. Talvez não fosse real, pensou Poirot cheio de esperança. Mas naquele momento o cão virou a cabeça terrível e feroz e do fundo das entranhas saiu-lhe um gemido baixo e prolongado.

Era um gemido aterrorizador.

Poirot viu, então, um cesto enfeitado com biscoitos para cães, no qual se lia: Sopas para Cérbero! Os olhos do cão estavam fixos nos biscoitos. Mais uma vez se ouviu o seu rugido. Poirot, apressadamente, tirou um biscoito e atirou-o ao cão. Abriu-se uma boca cavernosa ouvindo-se, então, um estalido quando os poderosos maxilares do animal tornaram a fechar-se. Tinha aceitado a sopa. Poirot continuou o seu caminho. A sala não era grande. Havia umas mesinhas espalhadas e um espaço no meio para se dançar. Era uma sala iluminada por lâmpadas verdes e com quadros nas paredes e, ao fundo, uma grande grelha sobre a qual cozinheiros vestidos de diabo, com caudas e chifres, faziam os seus cozinhados.
Poirot reparou nisto tudo antes que a condessa Vera Rossakoff, com a sua natureza impulsiva de russa, aparecesse com um resplandecente vestido de noite escarlate e lhe estendesse as mãos. 
Ah!, sempre veio, meu querido meu muito querido amigo. Que alegria em vê-lo outra vez! Depois de tantos anos quantos? Não falemos nisso! Para mim, parece-me que foi ainda ontem. Você não mudou, não mudou nada!
Nem você, chère amie, disse Poirot curvando-se

sobre a mão da condessa.

No entanto, ele tinha, agora, a consciência de que vinte anos são vinte anos... A condessa Rossakoff podia ser descrita como uma ruína, mas como uma ruína espectacular. Ainda conservava a exuberância e o vigor pelos prazeres da vida. E sabia, melhor que ninguém, como lisongear um homem.

Levou Poirot para a sua mesa, onde se sentavam mais duas pessoas.

O meu amigo, o meu célebre amigo Hercule Poirot anunciou ela. É o terror dos malfeitores. Eu, uma vez, também tive medo dele, mas agora levo uma vida da mais virtuosa e extrema estupidez. Não é verdade? O homem velho e alto a quem ela se dirigia replicou:

Não diga isso, condessa.

O professor Liskeard, anunciou a condessa. Aquele que sabe tudo a respeito do passado e que me deu valiosas sugestões para estas decorações.

O arqueólogo teve um leve arrepio.

Se eu soubesse o que você pretendia fazer! murmurou ele. O resultado é apavorante!

Poirot observou os quadros com mais atenção. Olhando de frente, Orfeu com a sua banda de jazz, tocava, enquanto Eurídice olhava esperançadamente para a grelha. Na parede oposta viam-se Osíris e ísis destroçando um barco de recreio egípcio. Na parede da frente, alguns jovens nus divertiam-se tomando banho.

O País dos Jovens, explicou a condessa, e acrescentou no mesmo sopro e completando as apresentações: E esta é a minha pequenina Alice.

Poirot curvou-se para o segundo ocupante da mesa, uma jovem grave vestindo saia e casaco. Usava óculos com aros de tartaruga.
Ela é muito, muito esperta, disse a condessa Rossakoff. É formada em psicologia e sabe a razão por 
que todos os lunáticos são lunáticos. Não, como você pensaria, porque são malucos. Não, há muitas outras explicações. Eu acho isso muito estranho!
A jovem chamada Alice sorriu amável mas um pouco desdenhosamente. Numa voz firme perguntou ao professor se gostaria de dançar. Este pareceu lisongeado mas hesitante:

Minha jovem senhora, só sei dançar valsas!

Isto é uma valsa disse Alice pacientemente. Levantaram-se e dançaram, mas não dançavam bem. A condessa Rossakoff suspirou. Seguindo o fio dos seus pensamentos murmurou:

Sim, ela não é realmente feia...

Não tira partido de si mesma respondeu Poirot sentenciosamente.

Francamente disse a condessa não percebo a juventude desta época. Já não procuram agradar. Na minha mocidade sempre escolhia as cores que me iam bem. Fazia salientar o peito, apertava bem a cintura, tingia o cabelo com um tom mais interessante.

Puxou a madeixa que caía sobre a testa: era inegável que ela, pelo menos, tentava, e bastante, agradar.

Contentarmo-nos com o que a natureza nos dá é estúpido. E também arrogante! A pequena Alice escreve palavras compridas a respeito do sexo, mas quantas vezes me pergunto se um homem a convida para ir passar, um fim-de-semana a Brighton! O que escreve não passa de palavras compridas acerca do trabalho e do bem-estar dos trabalhadores e do futuro do Mundo. Tem muito valor mas pergunto: É divertido? E veja em que estado esta juventude tem posto o mundo! Tudo regulamentos e proibições. Não era assim, na minha juventude!

Agora me lembro: como está o seu filho, madame?

No último momento substituiu «filho» por «rapazinho», lembrando-se que já tinham passado vinte anos. A face da condessa iluminou-se num entusiasmo maternal:
O anjo amado! Tão crescido, tão jeitoso! Está na América. Constrói pontes, barcos, hotéis, armazéns, caminhos-de-ferro, tudo o que os americanos apreciam. 
Poirot parecia um pouco surpreendido:
Que é ele, então? Engenheiro ou arquitecto?

Que importância tem isso? perguntou a condessa. Ele é adorável! Só trabalha com vigas de ferro, maquinismos, e outras coisas importantes. Coisas que eu nunca compreendi. Adoramo-nos um ao outro. E por causa dele, adoro Alice. Sim, estão noivos. Encontraram-se num avião, num barco ou num comboio, amaram-se e tudo no meio de conversas sobre o bem-estar dos trabalhadores. Quando ela vem a Londres vem ver-me e eu aperto-a nos braços. A condessa cruzou os braços no seu amplo seio. E eu digo: Você e Niki amam-se, por isso eu também a amo, mas se o ama porque o deixa na América? Ela fala sobre o seu «emprego» e sobre o livro que está a escrever, a sua carreira e, francamente, eu não compreendo, mas digo sempre: deve ser-se tolerante! E acrescentou num só fôlego: E que pensa, mon cher, de tudo isto que eu imaginei?

É muito bem imaginado disse Poirot olhando com aprovação à sua volta. É muito chic!

A sala estava cheia e sentia-se aquele ar de sucesso que não podia ser negado. Viam-se casais lânguidos em fatos de gala, boémios com calças de bombazina, senhoras com fatos práticos. Os músicos vestidos de diabo tocaram languidamente. Não havia dúvida, aquilo era o Inferno.

Temos aqui todas as espécies disse a condessa. Está como deve ser, não é verdade? Os portões do Inferno estão abertos para todos!

Excepto, naturalmente, para os pobres sugeriu Poirot. A condessa riu: Não nos ensinaram que é difícil para um rico entrar no Reino dos Céus? Naturalmente deverá ter prioridade no Inferno.

O professor e Alice voltaram para a mesa, A condessa levantou-se:

Tenho que falar com Aristides.

Trocou algumas palavras com o chefe dos criados, um Mefistófeles magro, e, depois, foi de mesa em mesa falando com os convidados.
O professor limpando a testa e sorvendo um golo de vinho observou: 
A condessa tem personalidade, não tem? Sente-se que tem!
Desculpou-se e foi a outra mesa falar a um amigo. Poirot, só, ao lado da severa Alice, sentiu-se um pouco embaraçado quando encontrou os seus olhos azuis e frios. Achou-a bonita mas pouco acessível:

Ainda não sei o seu último nome murmurou ele.

Cunningham! Dr.a Alice Cunningham! Creio que conhece Vera há muito.

Há, talvez vinte anos!

Como é natural, acho-a um caso interessante disse Alice Cunningham. Naturalmente interesso-me por ela porque é a mãe do homem com quem vou casar, mas ela também me interessa sob o ponto de vista profissional.

Na verdade?

Sim! Estou a escrever um livro sobre psicologia criminal. Acho a vida nocturna deste lugar muito inspiradora. Há alguns tipos de criminosos que vêm aqui regularmente. Discuti com eles a sua vida passada! Sem dúvida que conhece todas as tendências criminosas de Vera. Bem, quero, quero dizer que ela rouba!

Sim, eu sei isso respondeu Poirot um pouco surpreendido.

Como sabe, ela rouba sempre coisas brilhantes. Nunca rouba dinheiro. Rouba, sempre, jóias. Em criança foi muito amimada e tratada com indulgência mas muito vigiada. A sua vida era terrivelmente estúpida, estúpida e sã. A sua natureza pedia drama, pedia castigo. Isso é a raiz da sua indulgência para com o roubo. Quer a importância, a notoriedade de ser punida!

A sua vida não deve ter sido sã e estúpida como membro do ancien regime na Rússia, durante a revolução objectou Poirot.

Uma expressão divertida passou pelos olhos azuis de Miss Cunningham:

Ah, um membro do ancien regime? Ela disse-lhe isso?
Sim, ela é indiscutivelmente uma aristocrata disse Poirot firmemente lutando contra certas desagradáveis 
recordações acerca das extravagantes aventuras da juventude da condessa, contadas por ela própria.
Uma pessoa só acredita no que deseja acreditar

observou Miss Cunningham, deitando-lhe um olhar profissional.

Poirot sentiu-se alarmado. Sentiu, num momento, que ela ia dizer-lhe qual era o seu complexo. Decidiu levar a guerra para o campo do inimigo. Apreciava a convivência da condessa Rossakoff, em parte devido à sua origem aristocrática e não ia estragar o seu prazer por causa de uma rapariguinha de óculos, com olhos de ganso cozido e um diploma de doutora em psicologia!

Sabe o que eu acho espantoso? perguntou ele. Alice Cunningham não admitia em palavras o que não sabia. Contentou-se em esperar pela sua explicação com um olhar aborrecido e indulgente. Poirot continuou:

Admira-me que você, que é jovem e que podia parecer bonita, se desse a esse trabalho. Bem, o que admira é que você não se dá realmente a esse trabalho. Usa um casaco grosso e uma saia com bolsos grandes, como se fosse jogar o golfe. Mas isto aqui não é campo de golfe. Além disso na cave subterrânea a temperatura é de sete graus Fahrenheit. O seu nariz está quente e brilha, mas não lhe põe pó. O baton que põe nos lábios não acentua as suas curvas! Você é uma mulher, mas não chama a atenção para o facto de ser uma mulher. E eu pergunto-lhe: Porque não? É uma pena!

Por um momento, Poirot teve a satisfação de ver Alice Cunningham com um ar humano. Viu mesmo um brilho de zanga nos seus olhos, mas reganhou imediatamente a sua atitude de desprezo.

Meu querido M. Poirot, receio que esteja fora da moderna ideologia. O verdadeiro é que interessa e não os enfeites.

Levantou os olhos quando um rapaz bonito e moreno se dirigiu para eles.
Este é o tipo mais interessante que conheço disse ela com entusiasmo. Paul Varesco! Vive à custa de mulheres e tem os mais depravados desejos. Quero que ele me diga mais alguma coisa sobre a nurse que tomou conta dele quando tinha três anos. 
Um momento depois Alice dançava com o rapaz, que, aliás, dançava divinalmente.
Quando ambos passaram perto da mesa. Poirot ouviu-a dizer:

E depois do Verão em Bognor ela deu-lhe como brinquedo um guindaste...

Um guindaste? Sim? Isso é muito sugestivo! Permitiu-se especular dizendo que esperava que o interesse de Miss Alice Cunningham pelos criminosos tivesse um dia como resultado que o seu corpo mutilado fosse encontrado num bosque solitário. Não gostava de Alice, mas era suficientemente honesto para compreender que o motivo do seu desagrado era devido ao facto de ela não se ter deixado impressionar por Hercule Poirot.

Então, viu qualquer coisa que momentaneamente afastou Alice do seu espírito. Numa mesa oposta à sua sentava-se um rapaz loiro. Vestia casaca e as suas maneiras mostravam que tinha um vida fácil e de prazeres. Em frente dele sentava-se uma rapariga de aspecto caro. Olhava para ela de uma maneira estúpida e enfatuada. Quem olhasse para ele diria: «Que rico mandrião.» No entanto, Poirot sabia muito bem que o rapaz não era rico nem mandrião. Era, de facto, o detective inspector Charles Stevens e pareceu a Poirot que ele estava ali em serviço.

Na manhã seguinte Poirot fez uma visita à Scotland Yard, ao seu velho amigo inspector Japp. A reacção de Japp às suas perguntas foi inesperada.

Sua velha raposa disse Japp com afecto. Surpreende-me a maneira como você consegue essas coisas!

Mas eu, asseguro-lhe, que não sei nada, nada mesmo. É apenas uma pergunta frívola.

Japp disse que Poirot podia dizer isso aos marinheiros.
Deseja saber tudo a respeito da boite Inferno? Bem, aparentemente é igual às outras. Devem estar a fazer muito dinheiro, embora as despesas sejam elevadas. Quem ostensivamente dirige aquilo é uma russa, chama-se a si própria condessa de qualquer coisa. 
Estou relacionado com a condessa Rossakoff disse Poirot friamente. Somos velhos amigos!
Mas ela não é senão um boneco disse Japp. Não empregou ali nenhum dinheiro. Deve ser o chefe dos criados, Aristides Papopoulo, quem tem ali interesse, mas nós não acreditamos que aquilo realmente lhe pertença. De facto, não sabemos a quem pertence.

E o inspector Stevens vai lá para descobrir isso?

Oh, você viu o Stevens? Um felizardo fazendo um trabalho daqueles à custa do contribuinte. Ele já descobriu alguma coisa!

Suspeitam que haja alguma coisa para descobrir?

Estupefacientes! Drogas em larga escala! E os estupefacientes são pagos não com dinheiro, mas em pedras preciosas.

Ah, sim?

A coisa é assim: Lady Blank, ou a condessa de qualquer coisa, encontra-se em dificuldades financeiras, mas em qualquer dos casos não quer tirar grandes somas de dinheiro do banco. Mas ela tem jóias, talvez herança de família! Estas são levadas para um lugar qualquer para serem limpas ou colocadas. Então, ali, as jóias são tiradas do estojo e substituídas por diamantes falsos. As pedras verdadeiras são vendidas aqui ou no Continente. É tudo muito simples: não há nem roubo nem queixas. Ou melhor: mais tarde descobre-se que uma tiara ou um colar são falsos. Lady Blank é toda inocência e medo. Não pode compreender como ou quando foi feita a substituição. O colar nunca esteve fora das suas mãos! Manda a polícia atrás de criadas despedidas, das mulheres-a-dias ou dos limpa-janelas duvidosos. Mas nós não somos assim tão estúpidos como estas aves da sociedade pensam. Tivemos vários destes casos uns a seguir aos outros. E encontrámos um factor comum todas as mulheres mostravam sinais de estupefacientes, nervos, irritabilidade, contorções, pupila dos olhos dilatada, etc. Assim a pergunta era: De onde conseguiam elas as drogas e quem estava à cabeça de tudo isto?

E, pensa, que a resposta é a boite Inferno?
Julgámos que aí é que é o quartel-general. Já descobrimos o lugar onde fazem a substituição das pedras uma casa chamada Golconda, Ltd. É aparentemente 
respeitável: imitações de pedras valiosas. E há um tal chamado Paul Varesco... Ah, vejo que o conhece!
Vi-o no Inferno.

Aí é que eu gostaria de o ver, no próprio lugar. O tipo não é tão mau como o fazem! Mas as mulheres, mesmo as mulheres decentes, comem da sua mão! Ele tem qualquer relação com a Golconda, Ltd., e tenho a certeza de que ele é o homem que está por detrás do Inferno. É o ideal para os seus fins: toda a gente ali vai, mulheres de sociedade, criminosos profissionais.. É o melhor lugar para encontros!

Pensa que a troca de jóias por estupefacientes se faz ali?

Sim! Nós sabemos a parte que a Golconda toma nisto, mas queremos, também, saber a outra, a parte dos estupefacientes. Queremos saber quem fornece a droga e de onde vem.

E tem alguma ideia sobre o caso?

Eu, penso que é a mulher russa, mas não temos provas. Há algumas semanas atrás pensávamos que tínhamos descoberto qualquer coisa. Varesco foi à Golconda escolher umas pedras e voltou direito para o Inferno. Stevens vigiava mas não o viu passar, a droga. Quando Varesco saiu agarrámo-lo, mas não encontrámos nele as pedras. Fizemos uma rusga ao clube, revistámos toda a gente. Resultado: nem pedras nem estupefacientes.

Um fiasco, não? Japp fez uma careta:

íamos quase metendo-nos num sarilho, mas felizmente, na rusga, apanhámos Peverel, o assassino de Battersea. Uma sorte. Suspeitava-se que ele tivesse fugido para a Escócia. Um dos nossos agentes reconheceu-o pelas fotografias. Tudo está bem quando acaba bem. Nós ficámos mal e a boite desde aí tem tido mais enchentes do que nunca.

Mas isso não avança na questão dos estupefacientes. Talvez haja um esconderijo no edifício!disse Poirot.
Deve haver mas nós não conseguimos encontrá-lo. Revistámos o lugar de alto a baixo. E aqui entre nós: houve uma busca não oficial. Não tivemos também 
sucesso nesta rusga. O homem ia sendo despedaçado por aquele maldito cão que dorme no edifício.
Ah, Cérbero?

Sim. Estúpido nome para um cão. Ir buscar o nome a um pacote de sal!

Cérbero murmurou Poirot pensativamente.

Porque não investiga o problema, Poirot? sugeriu Japp. É difícil, mas vale a pena. Detesto esse mercado de drogas, destrói o corpo e a alma das pessoas. Aquilo realmente é o Inferno!

Poirot murmurou pensativamente:

Sim, eu darei uma volta. Sabe qual foi o décimo segundo Trabalho de Hércules?

Não faço ideia.

A Captura de Cérbero. É apropriado, não é?

Não sei de que está a falar, meu amigo, mas lembre-se: cão que come homens!

Japp recostou-se e riu estrondosamente.

Queria falar-lhe muito a sério disse Poirot.

Era cedo e o clube estava quase vazio. A condessa e Poirot sentavam-se numa mesa perto da porta.

Mas eu não me sinto capaz disso protestou ela. La petite Alice, está sempre séria e, entre nous, acho isso bastante aborrecido. Meu pobre Niki, que alegria irá ele ter? Nenhuma.

Eu tenho por si muita afeição continuou Poirot firmemente. Não a quero ver no que se chama um sarilho.

Mas é absurdo o que você está para aí a dizer! Tenho o mundo na mão. O dinheiro entra facilmente.

É a dona deste clube?

Os olhos da condessa tornaram-se um pouco evasivos:

Certamente! replicou ela.

Mas tem um sócio... Não tem?

Quem lhe disse isso? perguntou a condessa asperamente.

O seu sócio é Paul Varesco?

Oh! Paul Varesco! Que ideia!
Ele tem um recorde de crimes muito grande. Sabe que há criminosos que frequentam este lugar? 
A condessa rebentou a rir.
Oh, bon bourgeois! Sei isso perfeitamente! Então não vê que isso é metade dos atractivos deste lugar? Estes jovens de Mayfair cansam-se de ver sempre pessoas da sua qualidade à volta deles. Eles veem cá só para ver os criminosos: o ladrão, o chantagista, talvez mesmo o assassino, o homem que estará nos jornais de domingo na próxima semana. É excitante que eles pensem que vêem a vida! O mesmo faz o comerciante próspero, que vende durante a semana ceroulas, meias e coletes! E, então, o mais excitante é que ali a uma mesa, cofiando os bigodes, está o inspector da Scotland Yard. O inspector é um inspector com cauda.

Então, sabia isso disse Poirot suavemente. Os seus olhos encontraram os dele e ela sorriu:

Mon cher ami, não sou tão simples como supõe!

Também negoceia aqui em estupefacientes?

Ah, canoir E a condessa acrescentou rispidamente: Isso seria a abominação!

Poirot olhou-a por uns momentos e depois suspirou:

Acredito-a disse. Mas nesse caso é ainda mais importante do que nunca que me diga a quem pertence realmente este clube.

Pertence-me a mim respondeu ela bruscamente.

Nos jornais, sim! Mas há alguém por trás de si!

Sabe, mon ami, que o acho muito curioso? Não o achas muito curioso, Dou Dou?

A sua voz tornou-se um arrulho quando disse as últimas palavras e atirou o osso de pato do seu prato ao enorme cão negro, que o apanhou num fechar de maxilares.

Que é que você chama a esse animal? perguntou Poirot divertido.

C’est mon petit Dou Dou!

Mas isso é um nome ridículo!

Mas ele é adorável! É um cão-polícia e faz tudo, tudo! Olhe...
Vera levantou-se, olhou à sua volta e agarrou de repente um prato com um bife suculento e que tinha sido posto naquele momento numa mesa ao lado. Dirigiu-se para a casota de mármore, pôs o prato em frente do cão 
e ao mesmo tempo disse algumas palavras em russo. Cérbero olhou em frente. O bife parecia não existir.
Não são coisas de minutos! Se for preciso ele ficará assim horas e horas.

Nesse momento, disse uma palavra e, como um relâmpago, Cérbero baixou o comprido pescoço e o bife desapareceu como por encanto.

Vera Rossakoff abraçou o cão afectuosamente e, voltando-se para Poirot, disse:

Veja como ele é meigo. Eu, a Alice e os amigos, sim, os seus amigos fazem o que quiserem dele. É só dizer-lhe uma palavra e presto! Asseguro-lhe que rasgaria um polícia, por exemplo, em pedaços. Sim, em pedacinhos! E rebentou a rir.

Poirot interrompeu-a apressadamente. Enganou-se no senso de humor da condessa. O inspector Stevensons podia realmente estar em perigo.

O professor Liskeard quer falar consigo.

Tirou-me o bife queixou-se ele. Porque é que me tirou o bife? Era um bom bife!

Quinta-feira à noite, amigo disse Japp. É quando o balão vai ao ar. É o pombo do Andrews, claro está! É o corpo da polícia encarregado dos narcóticos, mas ele ficará satisfeito que você se junte a ele.

Não, obrigado, não quero nenhum desses seus xaropes. Tenho que tomar conta do meu estômago. Aquilo ali é uísque? A isto é que se chama uma bebida!

Pousando o copo continuou:

Penso que já resolvemos o problema. O clube tem outra saída e nós encontrámo-la!

Aonde?

Atrás do fogão. Parte dele desloca-se!

Mas certamente vocês a veriam.
Não, meu amigo. Quando a rusga começou as luzes apagaram-se. Alguém mexeu no contador. Ainda levámos alguns minutos para as acender outra vez. Ninguém saiu pela porta principal que estava a ser vigiada, mas agora está esclarecido que alguém podia ter saído pela passagem secreta durante a rusga. Examinámos a casa que está nas traseiras e aí está como descobrimos o truque. 
E o que se propõem fazer? Japp piscou o olho:
Isso estará de acordo com o plano: a polícia aparece, as luzes apagam-se e alguém estará à espera do outro lado da passagem secreta, para ver quem sai. Desta vez apanhámo-los!

Mas porquê quinta-feira? Japp piscou novamente o olho:

 Golconda está muito bem fornecida, agora. Na quinta-feira, irão entrar lá as esmeraldas de Lady Carrigron.

Permite-me disse Poirot que eu faça um ou dois pequenos arranjos?

Sentado na sua habitual mesa perto da entrada, Poirot, na noite de quinta-feira estudava os arredores. Como de costume o Inferno estava cheio.

A condessa apresentava-se, como sempre, provocante e mais pintada do que o usual, se possível fosse. Estava muito russa naquela noite; batia as mãos e ria às gargalhadas. Paul Varesco já tinha chegado. Envergava um casaco estreito e tinha um cachecol ao pescoço. Parecia vicioso e atraente. Afastando-se de uma mulher gorda, de meia-idade, carregada de diamantes, inclinou-se para Alice Cunningham, que sentada a uma mesa, escrevia atarefadamente num pequeno caderno de notas e convidou-a para dançar. A mulher gorda deitou um olhar zangado a Alice e olhou para Varesco com adoração. Não havia adoração nos olhos de Alice: brilhavam com um puro interesse científico e Poirot apanhou alguns fragmentos da sua conversa, quando passaram, dançando, por ele. Já tinha passado o assunto da nurse e agora pedia informações acerca da matrona da escola preparatória de Paul. Quando a música parou, sentou-se ao pé de Poirot parecendo feliz e excitada.

Muito interessante disse ela. Varesco será dos casos mais curiosos do meu livro. O simbolismo é acertado. Você pode dizer que ele é um tipo acabado de criminoso, mas pode curar-se.

Poder regenerar um libertino tem sido sempre uma das mais queridas aspirações da mulher.
Alice Cunningham olhou-o friamente: 
Não há nada de pessoal nisto, M. Poirot.
Nunca há disse Poirot nada de pessoal! É um desinteressado altruísmo que me anima, mas o objecto é sempre um membro atraente do sexo oposto. Está, por acaso, interessada em saber qual foi a minha escola ou qual foi a atitude da matrona para mim?

Você não é um criminoso disse Alice.

Sabe distinguir o tipo criminal quando vê algum?

Certamente que sei!

O Prof. Liskeard juntou-se a eles e sentou-se ao pé de Poirot.

Estão a falar a respeito de criminosos? Devia estudar o código penal de Hammurabi, M. Poirot. 1800 anos a. C. É interessante, mesmo muito interessante. O homem que é apanhado a roubar durante um incêndio será atirado ao fogo.

Olhou com prazer para o fogão eléctrico.

E há outras leis sumárias mais antigas. Se uma mulher casada diz ao marido: vós não sois meu marido, será atirada ao rio. Mais barato e mais fácil do que ir com uma acção de divórcio para os tribunais. Mas se um marido diz à mulher que ele só tem que lhe pagar uma certa quantidade de dinheiro ninguém o atira ao rio...

A mesma história de sempre, Alice. Uma lei para o homem e outra para a mulher.

As mulheres, sem dúvida, apreciam mais o valor monetário, disse o professor pensativamente. Sabe acrescentou ele, gosto deste lugar. Venho aqui todas as noites. Não tenho que pagar. A condessa arranjou-me isto muito amável da parte dela em consideração ao meu conselho sobre as decorações. Não tenho nada a ver com isto. Não tive a mínima ideia porque ela me fazia perguntas. Ela e o artista compreenderam mal. Espero que ninguém saiba jamais que tive a mais pequena ligação com estas coisas horríveis. Nunca seria capaz de suportá-lo. Ela é uma mulher encantadora, muito parecida com uma babilónia. As babilónias sabiam de negócios!
As palavras do professor morreram num barulho inesperado. Ouviu-se a palavra polícia. As mulheres levantaram-se e houve uma confusão de barulho. As luzes e o fogão eléctrico apagaram-se. A voz do professor 
continuou tranquilamente a recitar vários trechos das leis de Hammurabi.
Quando as luzes reapareceram, Poirot já estava a meio caminho dos degraus. Os polícias que estavam à porta saudaram-no, saiu para a rua e encaminhou-se para a esquina. Mesmo ao virar da esquina, encostado à parede, estava um homenzinho malcheiroso, de nariz encarnado que lhe segredou ansioso:

Estou aqui, chefe. Já posso fazer o meu trabalho?

Sim, vai!

Há uma quantidade de polícias por aqui!

Não faz mal, já lhes falei a teu respeito.

Espero que eles não interfiram.

Eles não interferirão. Tens a certeza de que és capaz de fazer o que te foi dito? O animal em questão é grande e feroz.

Ele não será feroz para mim disse o homenzinho confiadamente. Não, com o que eu tenho aqui qualquer cão me seguirá até ao Inferno por isso.

Nesse caso murmurou Poirot, tenho que pôr-te fora do Inferno.

Logo de manhã o telefone tocou. Poirot levantou o auscultador.

A voz de Japp disse:

Você pediu-me que lhe telefonasse.

Pois, eh bien?

Nenhuma droga, mas apanhámos as esmeraldas.

Aonde?

No bolso do professor Liskeard.

O professor Liskeard?
Também se surpreende? Francamente, não sei o que pensar. Ele parecia tão admirado como um miúdo. Fixou as pedras pasmado e disse que não tinha a menor ideia de como é que elas tinham ido parar ao seu bolso, e, com os diabos, acredito que ele dizia a verdade. Varesco podia tê-las lá posto facilmente quando as luzes se apagaram. Não concebo que um homem como o velho Liskeard esteja ligado a negócios desta espécie. A única coisa em que ele gasta dinheiro é em livros, a maior parte deles em segunda mão. Não enquadra nesta história. Começo a pensar que estamos errados nisto tudo e que nunca houve nenhum estupefaciente naquele clube. 
Houve sim, meu amigo. Eles estiveram lá nessa noite. Diga-me, passou alguém pela passagem secreta?
Sim, o príncipe Henry de Scandenberg e o seu intendente. Só ontem chegou a Inglaterra. Vitamian Evans, o ministro do Gabinete. O diabo é ser ministro, tem que se ter cuidado. Lady Beatrice Viner foi a última. Está para casar depois de amanhã com o vaidoso duque de Leomnister. Não acredito que algum destes nobres estivesse envolvido nisto.

Você, pensa acertadamente. No entanto, a droga esteve no clube, alguém conseguiu tirá-la de lá.

Quem?

Eu, mon ami disse Poirot suavemente. Pousou o auscultador cortando a voz de Japp, quando a campainha tocou. Foi abrir a porta. A condessa Rossakoff entrou.

Se não fôssemos amigos e já velhos era comprometedor eu vir cá exclamou. Como vê aqui estou, como dizia no seu bilhete. Suponho que um polícia anda atrás de mim, mas ele pode ficar na rua. E agora, meu
amigo, que deseja?

Poirot amavelmente ajudou-a a tirar o casaco de peles.

Porque pôs aquelas esmeraldas no bolso do professor Liskeard? perguntou ele. Ce n’est pas gentille cê que vous avez fait lá!

Os olhos da condessa abriram-se muito.

A minha intenção foi pôr as esmeraldas no seu bolso.

No meu bolso?

Certamente! Dirigia-me apressadamente para a mesa onde você habitualmente se senta, mas as luzes apagaram-se e suponho que por inadvertência as pus no bolso do professor.

E porque queria pôr as esmeraldas roubadas no meu bolso?

Pareceu-me, compreende, que tinha que pensar rapidamente a melhor coisa a fazer!

Realmente, Vera, você é ímpagable!
Mas, meu querido amigo, pense. A polícia chega, as luzes apagam-se e uma mão tira a minha carteira da mesa. Eu puxei-a e senti através do veludo que havia 
qualquer coisa dura dentro. Meti a mão e pelo tacto vi que eram jóias e compreendi, num instante, quem lá as tinha posto. Ah, compreende? Pois claro, é aquele lagarto, aquele monstro, aquele embusteiro, aquele miserável filho de um porco do Paul Varesco.
O homem que é seu sócio no Inferno?

Sim! Sim, é esse, e é ele quem levanta o dinheiro. Até hoje nunca o traí. Eu confiava! Mas agora que esse duas-caras experimentou embrulhar-me com a polícia, ah!, agora, posso dizer o seu nome:Sim, conto tudo!

Acalme-se disse Poirot, e venha comigo para a outra sala.

Abriu a porta. Era uma sala pequena e parecia por momentos estar cheia com o cão. Cérbero, já parecia grande nas salas espaçosas do Inferno. Na sala de trabalho aconchegada de Poirot, parecia que não havia mais nada senão Cérbero. Estava lá também o homenzinho malcheiroso.

De acordo com o plano, aqui estamos, chefe, disse o homenzinho numa voz rouca.

Dou Dou! gritou a condessa. Cérbero abanou a cauda mas não se moveu.

Deixe-me apresentá-la a Mr. Williams Higgs. Um mestre na sua profissão. Durante o brouhaha de ontem à noite continuou Poirot, o Sr. Higgs induziu Cérbero a segui-lo, para fora do Inferno.

Você induziu-o? A condessa olhou incredulamente para o homenzinho.

Mas como?, como?

Higgs baixou os olhos corando.

Não gostaria de dizê-lo em frente de uma senhora. Mas há coisas a que os cães não resistem. Um cão pode seguir-me onde quer que eu deseje. Claro está, que não daria o mesmo resultado com cadelas. Isso é diferente. A condessa voltou-se para Poirot:

Mas porquê?

Poirot respondeu vagarosamente:

Um cão, treinado para esse fim, levará qualquer pacote até que lhe seja ordenado que o deixe. Conservá-lo-á, se for preciso, muitas horas.
É capaz de dizer ao seu cão que deixe cair o que ele segura? 
Vera Rossakoff olhou, voltou-se e disse duas palavras rápidas. Os grandes maxilares de Cérbero abriram-se. Então é que foi realmente alarmante. A língua de Cérbero parecia querer sair-lhe da boca.
Poirot adiantou-se e apanhou um pacotinho que estava dentro de uma caixa de borracha. Desembrulhou e dentro havia pó branco.

Que é isso? perguntou a condessa rapidamente. Poirot respondeu:

Cocaína. Uma pequena quantidade no valor de milhares de libras para quem tivesse vontade de as dar... O suficiente para trazer a ruína e a miséria a centenas de pessoas.

Vera parou de respirar e gritou:

E o senhor pensa que eu... Mas isto não é assim! Juro-lhe que isto não é verdade! Há muitos anos divertia-me tirando jóias, bibelots e pequenas curiosidades. Tudo ajuda qualquer pessoa a viver, compreende? Era a minha tendência, porque não? Porque deverá uma pessoa fazer uma coisa de preferência a outra?

A senhora distingue o bem do mal, disse Poirot. Ela continuou:

Mas drogas... isso, não! Porque isso causa miséria, dor, degeneração! Não tinha ideia, não tinha a mais pequena ideia que o meu encantador, tão inocente, tão agradável Inferno, fosse usado para aquele fim!

Eu concordo consigo a respeito do estupefaciente disse Mr. Higgs. Narcotizar um cão é uma porcaria, isso é! Nunca tinha encontrado nada neste género!

Mas, diga-me que me acredita, meu amigo implorou a condessa.
Mas sem dúvida, eu acredito-a! Não me incomodei eu bastante para condenar o principal organizador deste comércio de estupefacientes? Não realizei eu o décimo segundo Trabalho de Hércules e não trouxe Cérbero do Inferno para provar o meu caso? Porque, digo-lhe, não gosto de ver os meus amigos acusados sem razão. Sim acusados sem razão, porque seria a senhora a sofrer as consequências se as coisas corressem mal! Claro que as esmeraldas teriam sido encontradas no seu saco de mão se alguém (assim como eu) não tivesse sido suficientemente esperto para suspeitar de um esconderijo 
na boca de um cão selvagem. Eh bien, o cão é seu não é? Acontece que ele aceita la petite Alice, ao ponto de obedecer às suas ordens, também! Sim, a senhora podia ter aberto os olhos! Desde o primeiro dia antipatizei com aquela rapariga, com a sua gíria científica, a sua capa e a sua camisola com grandes bolsos. Sim, bolsos. É pouco natural que qualquer mulher possa desdenhar assim a sua aparência! E o que me indicou nela que era uma acusação fundamental, fundamental para mim, foram os bolsos. Bolsos em que ela podia tirar jóias, uma pequena troca facilmente realizada enquanto dançava com o cúmplice, que ela pretendia considerar apenas como um caso psicológico. Mas que truque! Ninguém suspeitava da seriedade da cientista, com uma formatura em medicina e aqueles óculos. Ela pode fazer contrabando da droga e induzir os seus ricos pacientes a adquirirem o hábito e realizar o dinheiro suficiente para um clube e arranjar que ele seja dirigido por alguém, como diremos, com uma pequena fraqueza no seu passado. Mas ela não despista Hercule Poirot; pensa que pode enganá-lo com as conversas sobre nurses e vestuário! Eh bien, fui ensinado por ela. As luzes apagaram-se. Rapidamente, levantei-me da mesa e fui colocar-me perto de Cérbero. Na escuridão ouvia-a chegar. Abriu a boca do cão e introduziu-lhe o pacote e eu, delicadamente, sem ela dar por isso, com uma tesourinha cortei um pedacinho de uma das suas mangas.
Dramaticamente mostrou um pedaço do tecido.

Veja o senhor é o mesmo material. E posso dá-la a Japp para ele o adaptar ao lugar de onde foi tirado, fazer a captura e mostrar uma vez mais a esperteza da Scotland Yard.

A condessa fixou Poirot estupefacta. De repente soltou um lamento semelhante a um grito de socorro no nevoeiro.

Mas, o meu Niki, o meu Niki! Isto será terrível para ele! Fez uma pausa e depois perguntou:

O senhor não crê isso?

Há muitas raparigas na América disse Hercule Poirot. E acrescentou:
E a não ser por a senhora sua mãe poder estar na prisão na prisão com os cabelos cortados sentada numa cela e cheirando a desinfectante! 
Ah, mas o senhor é maravilhoso, maravilhoso! Atirando-se para a frente apertou Poirot nos braços,
abraçou-o com fervor verdadeiramente eslavo. Mr. Higgs olhava. O cão Cérbero batia com a cauda no soalho.

No meio desta cena de alegria ouviu-se o tocar de uma campainha.

Japp! exclamou Poirot desembaraçando-se dos braços da condessa.

Seria melhor talvez passar à outra sala disse a condessa.

Escapou-se pela porta de comunicação. Poirot encaminhou-se para o lado da porta da entrada.

Meu Deus suspirou ansiosamente Mr. Higgs. é melhor ver-se ao espelho, não acha?

Poirot assim fez e recuou. Baton e rouge ornamentavam-lhe a face, numa mistura fantástica.

Se é Mr. Japp da Scotland Yard pode pensar o pior seguramente disse Mr. Higgs.

Enquanto a campainha retinia de novo e Poirot tentava febrilmente tirar o baton das pontas do bigode acrescentou:

O que tenho eu a fazer? Veja isto, também. O que se há-de fazer a este cão do Inferno?

Se bem me lembro disse Poirot, Cérbero voltou para o Inferno.

Justamente como quiser disse Mr. Higgs. De facto, eu tive uma ideia a seu respeito... Todavia, não é ainda o género de coisas de que eu gosto de me encarregar. E penso no que esse bicho pode custar-me em ossos ou carne de cavalo. Come muito mais do que um leão pequeno, creio eu.

Do Leão de Nemeia à Captura de Cérbero murmurou Poirot. Está completo.

Uma semana mais tarde Miss Lemon apresentou uma conta ao patrão:

Desculpe, Mr. Poirot. Devo pagar Isto? Leonora, Florista. Rosas Vermelhas. Onze libras, seis

xelins e seis pence. Enviado para a Condessa Vera Rossakoff, Inferno 13, End. St. W. C.

Como as rosas, vermelhas estavam as faces de Hercule Poirot. Corou, corou até às meninas dos olhos.
Perfeitamente em ordem, Miss Lemon. Um pequeno, sim, um pequeno tributo para uma ocasião. 
O filho da condessa acaba de ficar noivo, na América, da filha do patrão, um magnate do aço. Rosas vermelhas, se bem me recordo, são as flores que ela prefere.
Muito bem disse Miss Lemon. São muito caras nesta época do ano!

Há momentos disse Poirot em que não se devem fazer economias.

Cantarolando, encaminhou-se para a porta. O seu andar era alegre, vivo. Miss Lemon esqueceu a sua habitual maneira de ser. Todo o seu instinto feminino despertou.

Deus louvado murmurou ele. Eu pasmo... Realmente, na sua idade!... Certamente que não...

_sec+NA:FIM_